No desfecho da Antiguidade persiste Alexandria, a cidade que se divide na fronteira do Egipto e da Literatura, e cujo rumor ou sentimento das ruas vive enquanto eco na obra de Konstantinos Kaváfis, tendo-se tornado ali um «mito em progresso». Menos celebrada do que vivida, nas suas passagens secretas, nos cabarés e esconsos cafés, esta ressurge como o recreio de um custoso encanto e remorso, ficando a dever o seu cosmopolitismo ao amparo que ofereceu às diversas comunidades de origem europeia que nela se fixaram. Esse cruzamento de culturas e espíritos terá produzido o enlevo que se respirava no intervalo «do puritanismo e estupidez» de uma sociedade que, apesar de tudo, não perseguia aqueles que buscavam o prazer além do que aos outros parece bem. Foi isto o que permitiu ao poeta viver com alguma discrição uma vida dupla.
De dia, e ao longo de três décadas, trabalhava como funcionário do Serviço de Irrigação do Ministério das Obras Públicas local; à noite, depois de jantar com a mãe – a quem chamava afectuosamente «a Gorda» e (sendo o mais novo de nove irmãos) com quem viveu até esta morrer –, com a cumplicidade do último dos criados que a família reteve dos anos de abastança, escapulia-se para os bairros mais deslaçados e lúbricos, onde buscava a companhia de rapazes. É curioso pensar que o mais influente dos poetas gregos da era moderna nunca teria alcançado a glória póstuma de que hoje goza caso não se tivesse resignado a uma vida que, à superfície, parece tudo menos inspiradora e estimulante. É mais fácil admirá-lo hoje, nas páginas do Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, como nas de outros romancistas ingleses que, fascinados por ele, levaram, na ficção, a sua presença muito além do dia da sua morte, em 1933, o mesmo dia em que 70 anos antes tinha nascido. É esta a presença com que nos cruzamos ainda nessa cidade «onde a cada passo se aperta/ O nó corredio: coração sepultado na tumba de um corpo,/ Coração inútil, gato, quanto tempo ainda/ Será preciso ficar confinado entre as paredes/ Das ruelas de um espírito banal?» (isto na recriação que Durrel deixou do poema ‘A Cidade’, nas páginas de Justine).
A igreja para perdoar, o hospital para morrer
Aos 35 anos, depois da morte da mãe, Kaváfis viveu por um tempo com um dos irmãos, e, os últimos 25 anos, passou-os num apartamento de dois andares na Rua Lepsius, uma zona bem menos afluente do que aquela em que a família havia residido até à altura em que a Kaváfis & Filhos – a antes muito lucrativa empresa de importação e exportação – faliu. Nesse apartamento, onde à semelhança do que aconteceu em Campo de Ourique com aquele onde viveu Fernando Pessoa – e esta é só uma das variadas coincidências e paralelos entre os dois maiores vultos do século passado nas letras portuguesa e grega – funciona hoje um museu em honra de Kaváfis. E há um século, a vista da sua varanda estendia-se sobre um antigo bairro grego que em si misturava os aspetos mais condignos e imorais da cidade: um hospital, a igreja patriarcal de St. Saba, e, mesmo por baixo do prédio do poeta, um bordel. Sobre esta feliz confluência terá Kaváfis dito o seguinte: «Que melhor sítio poderia eu encontrar para viver? Em baixo, o bordel serve os apetites da carne. Além temos a igreja para perdoar os nossos pecados. E ali temos o hospital onde iremos morrer».
Kaváfis não escondia a sua homossexualidade, mas em vida não publicou um só livro, e os poemas «sensuais», como lhes chamava, onde os seus encontros são rememorados a uma luz dessas que, como dentes, deixam feridas nos lábios da memória, foram distribuídos apenas entre um círculo de amigos, fosse em folhas volantes, cadernos ou pastas que confiava a público tão selecto, guardando até ao fim a possibilidade de os reaver para substituir as antigas versões dos poemas por novas. Aqui, a tabacaria não oferece a sua montra à pusilânime vida que se vinga poeticamente numa intrepidez metafísica à Álvaro de Campos. Aqui, a maior lição é o modo como a ilicitude do desejo irá indicar o caminho à arte, ser origem dos vigorosos versos que anos mais tarde serão a prova imortal de uma vida que, afinal, soube consumar-se: «Junto à montra iluminada/ de uma tabacaria, estavam eles entre outros muitos./ Por acaso cruzaram-se os olhares,/ e o ilícito desejo da sua carne/ com timidez exprimiram indecisos./ Logo, uns passos nervosos pelo passeio –/ até que sorriram, com ligeiro aceno.// E então, na carruagem, com a capota fechada…/ o sensual contacto dos corpos; as mãos juntas, juntos os lábios».
O maior conhecedor da poesia grega entre nós
É a tradução de Manuel Resende aquela que agora seguimos, retirada de 145 Poemas, edição dada à estampa no passado mês de outubro com selo da Flop. Mesmo tratando-se de uma dessas empreitadas fantasistas vindas de quem já no nome deita a língua de fora ao fracasso, com uma modesta tiragem de 500 exemplares, e ficando-se pelas estradas secundárias no que respeita à circulação dos livros, não precisou de mais de quatro semanas para ficar esgotada. Um pequeno êxito contra os anúncios incessantes de que a poesia não tem já qualquer retaguarda, ou seja, aquele conjunto de leitores que, pela sua mera existência, garantem o sustento dos serviços mínimos no que toca à edição de poesia. Este sinal de vida terá, no entanto, ficado a dever-se menos a um reagrupar dessas últimas forças, e mais ao elã desta poesia, bem como às provas dadas do tradutor, também ele poeta, reconhecido como o maior conhecedor da poesia grega moderna entre nós.
Depois, e apesar de haver já uma edição completa dos poemas que Kaváfis deixou ultimados – a esta faltam nove, e não pode haver sinal mais claro do empenho de Resende que, após dedicar 25 anos da sua vida a esta tradução, assume que para esses poemas não conseguiu satisfazer o grau de exigência que se impôs –, mesmo se tínhamos já as noventa e tal excelentes versões de Jorge de Sena, traduzidas a partir de outras línguas que não o grego, e as versões seguras e de alto valor arqueológico que Joaquim Manuel Magalhães soube fixar com a ajuda de Nikos Pratsinis, é esta a primeira edição que, enquanto objeto, acompanha este poeta historiador no «ardor voluptuoso» com que emprestava relevo mítico aos seus inesquecíveis relatos. É uma edição que tem o seu peso e, ao mesmo tempo, é percorrida por uma aragem cativante para esses que partilham a ânsia de outras terras e outros mares, com os poemas impressos em azul Grécia.
Noventa por cento da melhor poesia lírica é escrita pós-coito, disse Joseph Brodsky num ensaio a propósito de Kaváfis, e adiantando que foi assim também que este soube registar esse fôlego onde tudo ainda parece castigado pela urgência dos que se amaram contra o mundo, e logo do «colchão se levantaram/ e à pressa se vestiram sem palavras». Está fresco ainda hoje o rastro dessas formas que a beleza preencheu inteiramente anos antes de as abandonar como conchas, mas, muito ao contrário do que disse Brodsky, estes poemas não são os esquissos que se lança à pressa caçando as fugazes impressões do prazer quando ele já nos vira as costas. Estes são os poemas como flechas afiadas ao longo dos anos, essas que são lançadas muito mais tarde, quando para o corpo todos os caminhos do prazer estão já perdidos, e só resta a curva do tempo, e o arco reteso que puxa a memória e atira, não para matar, antes para dar vida ao que já morreu: «Veio Ficar: Seria uma hora da noite/ ou uma e meia.// Num canto da taberna,/ por trás de um tabique de madeira./ Para além de nós dois, estava o local deserto,/mal iluminado por uma lâmpada de petróleo./ Na porta dormitava o empregado/ cansado da vigília.//Ninguém nos podia ver. Mas já/ tanto nos tínhamos excitado,/ que não éramos capazes de precaução.//As roupas entreabriam-se – não eram muitas,/ já que ardia o divino mês de Julho.// Da carne o prazer por entre/ a roupa entreaberta;/ breve nudez da carne – cuja imagem/ percorreu vinte e seis anos; e agora veio/ ficar neste poema».