Álvaro Domingues. “Parece-me que andamos a pensar o país por bitaites”

“Volta a Portugal” é um olhar desimpedido sobre um país que há tempo demais vem sendo protegido por gente que talvez o achasse feio. Gente que o embonecou e disfarçou de sonho, talvez porque o real, e até a sua mais estapafúrdia beleza, lhe causasse muita comichão

Para se chegar ao “país real”, só passando por cima dos cadáveres de um bando de mitos e lérias propagandísticas, ficções grandes e pequenas que povoam essa linha romântica com que Portugal se vem cosendo há séculos. E se tudo isso já fede, é ainda difícil dar um passo com tantos corpos exalando fantasmagorias.

Álvaro Domingues tem andado por aí, do norte ao sul e ilhas, sem palas nos olhos. Tendo chutado as habituais muletas teóricas, olha à sua volta como um ET, como se a verdadeira vida das coisas pudesse dar-lhe outra explicação. E prefere “violentar o indígena” do que deixar-se ir nesse desespero da treta que em tudo o que parece rude, cruento ou grosseiro neste país só vê a abundância do pitoresco, uma feira cabisbaixa.

Há, afinal, outro modo de se conhecer estes caminhos que não o sabê-los já de cor, como a palma das nossas mãos. Há ainda a descoberta do que vai despontando, o inquietante luxo das coisas sem um nexo evidente mas que merecem uma oportunidade, e que só tomam a aparência da balbúrdia a quem não entende outra linguagem que a dos imperativos sanitários. No final do ano passado, o geógrafo de 58 anos concluiu uma trilogia ensaística com “Volta a Portugal” e o provável é que não se tenha ficado por aqui. Mas temos já matéria para sair fora da linha, e pensar Portugal como um destino tão exótico que, 875 anos depois, permanece por descobrir.

Qual foi o percurso que o levou a confundir a vida profissional com o resto do seu tempo, viajando, fotografando, documentando?

Não diferencio essas várias funções. Sou geógrafo, e no final dos anos 1990 mudei para arquitetura. Essa mudança reencaminhou-me para as questões do urbanismo, na altura, acompanhando o arquiteto Nuno Portas, entre outros, e o olhar para o território era algo muito disciplinar. A atitude do urbanista não é tanto a análise, é a intervenção, enquanto a atitude do geógrafo é mais analítica.

E como beneficiou de uma e outra?

Estávamos então no início dos anos 1980, faltava ainda toda a legislação que viria a dar nos Planos Diretores Municipais, e tudo o que é lei dos solos, etc. Portanto, não havia ainda nenhuma experiência a esse respeito e eu tive a sorte de trabalhar na zona de Guimarães, Famalicão, Santo Tirso – zona conhecida pela sua indústria de têxtil e vestuário, um modelo de ocupação de solo muito híbrido, quase inclassificável à luz dos paradigmas normais. E foi nessa altura que me parece que terei contraído o vírus, que era basicamente andar contrariado. Isto é, todo o instrumental teórico que o urbanismo continha e, em parte, a geografia urbana, não servia para interpretar aquele território.

E que papel tiveram as novas ferramentas tecnológicas nessa desconfiança?

Lembro-me, quando a Google lançou o Google Maps, de repente surgia a cartografia instantânea. Podias pesquisar o que quisesses e davas-te conta de que o urbano era uma coisa desconfinada. Não tinha fim e não se sabia onde começava o quê. E também que a maior parte da urbanização tinha seguido a lógica da infraestrutura e que, portanto, acompanhava a estrada. Foi isso que me deu a ideia para o livro que espoletou tudo isto: “A Rua da Estrada”.

Como caracteriza este registo?

Este tipo de trabalho, que é mais ensaístico, e que é omnívoro – recorre a tudo e mais alguma coisa: entrevistas, fotografias, escrita, o que seja -, não diferenciava muito isso. Desde que fossem dispositivos de acesso à informação e ao conhecimento do mundo, era igual. Portanto, trocava facilmente o valor documental de uma fotografia pelo seu valor metafórico ou por aquilo que ela podia dizer do processo em ato, da transformação, da metamorfose.

E como passou de um livro para toda uma série?

Depois d’“A Rua da Estrada” dediquei-me ao outro polo da dicotomia, que era o rural. E descobri uma coisa evidente: que em Portugal domina um discurso romântico e saudosista sobre um mundo perfeito que terá havido sabe-se lá quando e de cuja memória existe ainda muito material.

Já não somos um país de tradição rural?

Portugal tem uma ruralidade pré-moderna praticamente até aos anos 1960. Estávamos aqui encravados, e só a emigração depois da ii Guerra é que corta com esse tempo longo de uma economia pobre, muito baseada na autossubsistência, na economia familiar, etc. Esse mundo rural era orientado ao mesmo tempo, de um ponto de vista económico, para a agricultura camponesa e suas tradições, e, espacialmente, definido pelas suas paisagens, no sentido em que a agricultura é uma atividade económica que usa terra em extensão. Os agricultores são os jardineiros da paisagem. Assim, ruralidade era uma espécie de conceito totalizante. Uma senhora de preto: rural; um burro: rural; um trator: rural; um campo de milho: rural… e assim sucessivamente.

E hoje isso já não se aplica?

A verdade é que, chegados aos dias de hoje, o produto interno na agricultura não chega aos 3%, a tradição perdeu-se, e estamos a braços com um processo de esvaziamento severo do país. Isto não é novo, mas esgotou-se o stock, e agora temos a noção de que é algo sem retorno.

O que, para um país como o nosso, resulta numa crise de identidade?

Criou uma espécie de alarmismo, de grande drama nacional. De repente, coisas como as aldeias de xisto, o turismo rural, postas no divã do Freud, parecem estratégias de tentar fazer o luto, mas, ao mesmo tempo, tudo num registo muito onírico, fora da realidade.

E qual é a realidade?

Se quisermos entrar na realidade, é fácil – basta ver, por exemplo, as estatísticas dos anos 1960, os indicadores sociais dessa ruralidade, e logo chegaremos à conclusão de que estávamos num país com indicadores que o colocavam ao nível dos países subdesenvolvidos. Não era paraíso nenhum.

Qual o motivo da persistência dessa imagem idílica?

Nós sabemos que quem produz cultura, sobretudo a chamada alta cultura, são determinadas elites, e a elas foge-lhes mais a cabeça para o Virgílio, para as bucólicas e para as éclogas, para o legado romântico do mundo rural… Portanto, é mais um estado de espírito do que a dura realidade das coisas. E o confronto com isso dá o segundo livro, “A Vida no Campo”.

Quando diz que houve um certo choque com o trabalho que se produzia na academia, lembra-se dos comentários que lhe fizeram os seus colegas?

Os meus colegas viram n’“A Rua da Estrada” um mero fait divers. Primeiro, não tomaram o livro como algo para levar a sério. E depois há a reação que eu mais detestava, que era quando me diziam: “O teu livro é muito engraçado.” Olhavam para aquelas fotografias como se tudo aquilo fosse um freak show. Eu tentava dizer–lhes que não, que o livro era uma coisa muito séria, só que, simplesmente, não o tinha feito para eles. Para eles quer dizer para a academia. A ideia era que qualquer pessoa pudesse fazer o seu caminho por ali. O livro quase que vive do senso comum. 

E como sabe onde acaba um e começa outro?

“A Volta a Portugal” tinha começado a esboçar-se já n’“A Vida no Campo”. Porque, no fim de contas, esse trata desse mal viver, de como é que se gerem essas mágoas e o trauma da perda do mundo rural, mas o lado de geógrafo vem sempre ao de cima e eu tinha a noção de que não é a mesma coisa estarmos a falar do Algarve ou da Terra Fria transmontana ou de outra região qualquer. Já queria fazer uma volta pelo país e já tinha começado os treinos. Tinha andado pela Madeira, pelo Algarve… Quando surgiu um prazo, já não tinha escolha: agora era para fazer. O que foi preciso foi dar forma ao livro. E eu não tinha este modelo na cabeça…

O que tinha então?

Tinha muitos textos, que é um vício. É quase um jogo: às vezes aparece-me um texto que me parece fantástico, então dou-lhe a nota: esperas aí que eu hei de casar–te com uma fotografia. Ou ao contrário. Mas é uma massa, um hipertexto que se vai acumulando… Depois chega o dia em que é preciso meter aquilo num livro. É uma violência muito grande. Depois, já sabemos que terão de ser à volta de xis páginas, aquela coisa toda. E pronto, lá nasceu o livro. Um objeto em forma de assim. Por alguma razão a Fnac o colocou na secção “Desporto e Tempos Livres”. (risos)

Por questões económicas, de promoção do turismo, está-se a tentar reimaginar o país, empacotá-lo, pôr selo e carimbo para exportar. Que trabalho de casa lhe parece que ficou por fazer para que nós próprios soubéssemos do que falamos quando discutimos Portugal?

Distingo aí duas situações diferentes. Se estamos no registo puro da promoção e da propaganda turística – e o turismo sempre viveu disso: não vive de realidades, vive de ficções, portanto, ficcionar o mundo rural, das muitas maneiras que ele é ficcionado, sejam coisas muito sofisticadas no Douro vinhateiro, ou a moda da serra algarvia, ou as aldeias de xisto ou o que for -, posso dizer, não gosto, não consumo, mas percebo perfeitamente como estratégia. É assim em todo o lado. De resto, não confundo a realidade com o simulacro. Mas gostava que as pessoas fizessem essa distinção. Das terras que conhecem, por onde passam, aquelas que visitam, que saibam traçar a fronteira entre a realidade e o simulacro. 

E em termos do discurso interno menos bruto?

Genericamente, se tentarmos perceber como é que um português médio, um aluno de uma escola, etc., devia entender o seu país, aí sim, acho que há um trabalho de casa imenso por fazer. A imagem está completamente desfocada. Há uma tradição que vem do passado longínquo, com a imagem do país a ser construída a partir de Lisboa, porque sempre foi assim… Desde o Afonso Henriques, a concentração dos meios, do poder, foi durante séculos este o centro onde se compõe, organiza e difunde a informação. Só muito tarde é que começaram a surgir fontes de produção de discurso distintas e o chamado discurso endógeno (ou seja, produzido pelos próprios).

E no Estado Novo?

Sim. Entretanto aconteceu-nos um drama que foram os 40 anos de salazarismo e de propaganda cerrada que, entre outras coisas, quando não estava fixada nos Descobrimentos e nos navegadores e nos Viriatos e não sei que mais, vinha com os agricultores. Era uma ideia quase mítica da nação: pobres mas felizes, uma espécie de último reduto de pureza de não se sabe bem o quê. E isto ficou, como uma ideia quase tóxica do que é Portugal. E ainda se vê com que facilidade isso depois passou para os concursos televisivos, para os conteúdos na internet, para os sites oficiais dos municípios… É incrível como essa toxicidade invadiu o discurso e como se produziu uma narrativa completamente descolada da realidade. 

Estamos ainda inchados de um orgulho ou já estamos do lado do desconsolo?

A questão é que já no tempo do SNI (Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo) e da propaganda, essa ruralidade já não era o que se dizia e, entretanto, os seus últimos sinais desapareceram quase totalmente, e o discurso continuou delírio fora. É uma espécie de rêverie que não tem lógica, é uma fantasmagoria.

Como se lida com isso?

Eu digo aos meus alunos que, quando as palavras deixam de ter sentido, não se pode fazer outra coisa a não ser deixar de usá-las, buscar outras. Uma das palavras que eu matava desde logo era o “rural”. Essa trilogia que nos diz que, economicamente, o rural é agrícola; culturalmente, é camponês; paisagisticamente, o território é construído pelo cultivo agrícola… A verdade é que o que temos hoje são empresários agrícolas. Se formos ver a agricultura que funciona, seja o vinho do Douro, as coisas sofisticadíssimas do Alqueva, o perímetro de rega deste ou do Mira, ou as frutas aqui do Oeste, ou a fileira do leite, estamos perante processos produtivos complicadíssimos que aplicam tecnologia de ponta, desde as biotecnologias até sei lá mais o quê, e, como tudo, inseridos em mercados globais. Portanto, são empresas. Assim, é preciso reformatar todo este discurso, tirar-lhe toda a bucólica e perceber o que é hoje a produção agrícola. 

E quais têm sido as suas últimas incursões a esse nível?

Curiosamente, o arquiteto que me trouxe levou-me ali ao nó dos Cabos d’Ávila. Andei lá a fotografar… Está lá aquela torre imensa de escritórios, na base andam cabo-verdianos a fazer hortas e a plantar cana, para fazer cachaça, e depois, à volta, há tutti quanti. Desde as memórias remotas da Fábrica dos Cabos d’Ávila até a construção clandestina, os terrenos sobrantes… ficou ali uma espécie de patchwork. E eu estava a olhar para aquilo e a pensar no engraçado que são essas cabeças que têm tudo arrumado lá dentro. Portanto, estes cabo-verdianos serão rurais, aquela torre podia estar em Manhattan… Perante isto, com frequência, as pessoas caem em situações que é aquilo a que os psis chamam dissonância cognitiva. Vêm uma coisa combinada com a outra mas, como estão classificadas como sendo de naturezas distintas, não pode ser. Conclusão: em vez de fazerem um esforço para o perceber, limitam-se a assumir que o mundo é caótico. Está mal. Ou então exprimem-no esteticamente: é feio. Ou seja, as coisas não estão no seu lugar. Estão perturbadas, porque se perturbou a ordem natural das coisas. 

E que implicações tem isso no que se estuda hoje nas faculdades?

Digo isto muitas vezes aos meus alunos: nós não podemos oscilar entre visões de simulacros, de mitologias, narrativas patrioteiras, e depois uma completa inabilidade para ler as coisas. Porque, entretanto, eles aprendem palavras sufocantes como “ambiente”, “espaço verde”… E é preciso dizer-lhes: isto não é espaço verde, são árvores. E isto são couves, e àquilo chamamos mato. Porque aquela caracterização não ajuda a perceber o que é o mundo. Faz umas simplificações muito brutas e o mundo não está para isso. Está complicado e é instável. Basta perceber os efeitos poderosíssimos da globalização em matéria económica, ou o efeito das ruturas tecnológicas (por exemplo, há 20 anos não havia internet) para pensar que estamos num tempo, como acontece muitas vezes na História, que é disruptivo. Aquilo que está a acontecer não é a sequência daquilo que conhecíamos antes. São coisas novas, que começam e vão seguir o seu caminho.

Que efeitos lhe parece que isso produz atualmente? 

Como parece que foi a história que acelerou, juntamos duas dificuldades: a complexidade dos ingredientes e a velocidade a que aquilo vai. Isto não deixa espaço para as métricas que trazíamos. Penso que é a esse sentido de inadequação que vai corresponder um olhar nostálgico, o sentido da perda, da lamentação. Isto não tem nada a ver com o espírito fadista português. Só essas questões próprias deste tempo são suficientes para explicar um certo aturdimento, esta sensação de não sabermos muito bem o que se está a passar.

Acha que Portugal se deixou embalar neles como num sono de bela adormecida, e num ano em que os nossos desastres crónicos nos assustaram mais que nunca, desde a seca aos incêndios, não conseguimos acordar, por isso passamos para o pesadelo?

Uma das coisas que me preocupam é a tentação alarmista. É claro que percebo que nos domine no caso dos incêndios. Morreram 100 pessoas, e isso é mais que razão para cultivar esse alarmismo. Mas, se pensarmos bem, tudo isso nos vem filtrado pelos média, e aqui falo sobretudo da televisão. A televisão foi sucessivamente carregando a tecla do estilo “Correio da Manhã”. Tudo tem de ser contado em modo de desastre, tudo tem de ser dramatizado, etc. Ora, isto não é uma boa maneira de encarar um problema grave. Até entendo que, no início, essa seja a reação, que até funciona como catarse, mas não se pode viver desse discurso. É preciso ter uma atitude mais analítica e mais fina das coisas. 

Por onde começaria?

No outro dia tive uma proposta de entrevista no “Semanário Económico” sobre floresta. A determinada altura, disse à sua colega que, antes do mais, seria melhor que definíssemos o que quer dizer floresta. Ela ria-se, e disse-me: mas toda a gente sabe o que quer dizer floresta. E eu respondi-lhe: a única pessoa que sabe ao certo o que quer dizer floresta é o Capuchinho Vermelho. E o Lobo. (risos) É uma coisa que é escura, onde as pessoas se perdem e acontecem coisas estranhas. De resto, não sabemos. Se falar com aquele senhor, este dir-lhe-á que é uma produção intensiva de pinheiro-bravo; se falar acolá com o biólogo, ele diz-lhe que é formação vegetal das mais complexas, desde os estratos herbáceos até aos arbóreos, desde os animais microscópicos até aos grandes predadores, etc. A maior parte do território que há em Portugal coberto de arvoredo e mato não é floresta, são terrenos marginais que nunca tiveram uso agrícola e que, no antigamente, na tal agricultura pobre, tinham funções importantes como locais de pastoreio, de cortes de mato, etc., mas não têm fertilidade suficiente para terem árvores bem desenvolvidas. Assim, a primeira coisa que há a fazer é desdobrar a questão, para perceber do que se fala quando nos referimos aos problemas da floresta portuguesa.

E a discussão sobre o eucaliptal…?

Aí levanta-se a questão do valor. A produção de árvores em Portugal, genericamente, perdeu valor. Portanto, não é estranho que não se saiba onde são os limites das propriedades, de quem são, etc. Com as coisas que têm valor não se passa isso. Está tudo registado, sabe-se até onde vai certa propriedade, há imensos conflitos devido à titularidade de uma pequena porção de terreno. A primeira coisa que me ocorre quando se fala disto, do desconhecimento do cadastro dos terrenos, é precisamente o pouco valor que estes têm. E o estarem ocupados por madeiras muito pouco valorizadas, como é o caso do eucalipto e do pinheiro, em que qualquer flutuação no mercado global desequilibra rapidamente essas produções. E, neste momento, é o Brasil que está a dar cartas já com um eucalipto transgénico, com um período de crescimento que já não chega a cinco anos. A Portucel está a plantar em Moçambique… 

Não vê uma solução a curto ou médio prazo?

Temos de desenvolver políticas ajustadas às circunstâncias de cada problema, porque este país é um mosaico de variedade. E um dos maiores erros que cometemos é a generalização abusiva de tudo e mais alguma coisa. E o mesmo se passa na legislação. Quando se faz uma lei qualquer, pergunto sempre: isto é para a lezíria do Tejo, é para Beja, Bragança…? Porque uma das coisas que sabemos há muito tempo – e, a este respeito, a obra do Orlando Ribeiro é fenomenal – é que neste retângulo tão pequeno convivem contrastes incríveis. Noutros continentes, às vezes, é preciso andar milhares de quilómetros para os encontrar. Nós temos dos climas mais áridos da Europa, na margem esquerda do Guadiana, até aos mais húmidos, no Gerês; temos árvores aclimatadas desde a floresta equatorial até floresta boreal… Portanto, passa-se aqui qualquer coisa…

Uma diversidade que se torna um castigo…

Uma diversidade incrível. Aquilo que se passa no maciço calcário não tem nada que ver com a serra da Estrela ou a Lousã. E, depois, as pessoas ficam muito tristes, sobretudo os tecnocratas, a pensar: este tipo perdeu-se na fenomenologia das coisas, coitado. Vai morrer continuando sempre a dizer que aqui é uma coisa, acolá outra, e assim por diante. Pois, mas é. (risos) Quando toca a falar de política, é disso que se tem de falar. 

Que peso tem a este respeito a desertificação do interior?

Outra questão que não está resolvida e que também se liga a estas generalizações é quando se diz que o problema é o interior. A mim, ocorre-me logo perguntar o que é o interior. Será que o interior é um fator de distância em relação ao sítio onde rebenta a onda do mar? E isso é importante em termos de quê? Se for um climatólogo, é capaz de lhe dizer que é importante porque a circulação da atmosfera dominante, na nossa situação geográfica, é comandada pelo célebre anticiclone dos Açores, portanto, é comandada de oeste para este, e daí os grau sucessivos de secura a partir do momento em que nos afastamos da faixa litoral. Ponto. Isso tinha um peso muito grande quando a base económica do país era a agricultura, mas não era nessa altura, curiosamente, que a assimetria era tão grande. Antes pelo contrário.

O que continua então a segurar esta dicotomia?

Costumo brincar dizendo que o contrário do interior não é o litoral, mas o exterior. E há outras razões que levaram a que o interior ficasse desertificado, e isto porque não havia já projetos de vida. E porque parece que andamos em contraciclo: saímos de uma ditadura e, dali a dez anos, estávamos a negociar a adesão à CEE (hoje, União Europeia) numa altura em que estavam já a acelerar as políticas neoliberais, com a Thatcher e seus seguidores. Assim, constroem-se em Portugal uma democracia e um Estado social e de bem-estar que, entre outras coisas, exige uma modernização infraestrutural que o país não tinha, e um equipamento geral, desde os sistemas da saúde, do ensino, da formação profissional, da energia, das acessibilidades… e isto pensando que, na senda das políticas keynesianas, o Estado deveria ir à frente, porque tem capacidade de investimento, reforçada pelos fundos europeus, e que, modernizadas essas condições, viria o investimento privado. Não veio.

Portanto, não havia plano B?

Estávamos no fim de um ciclo de investimentos como Portugal nunca teve. Em 30 anos, mudou mais do que em toda a sua história, e o ciclo da emigração cada vez mais severo… É uma pescadinha de rabo na boca porque, não havendo casais em idade fértil, a natalidade baixa e o ritmo do envelhecimento ainda acelera mais. E esta é a questão: só há emprego público na maior parte dos municípios portugueses desses territórios esvaziados. E agora o Estado está teso. Por causa de troikas e não sei que mais, vendeu os correios, fechou hospitais… fragilizando a sua própria presença local, sobretudo nas sedes de municípios, nas cidades pequenas e médias.

E agora?

Agora, o melhor é perguntar quem somos, por onde andamos. Quando acontecem desgraças, por exemplo na Venezuela, percebeu-se que estão lá mais madeirenses do que na Madeira. E eu desconfio que é assim no país todo. Temos um desconhecimento enorme e parece-me que andamos a pensar o país por uns bitaites. 

Pensa que os mitos resvalaram nessa condição?

Os mitos têm de existir sempre, mas provavelmente teremos de os mudar. Sabe a importância que tem o imaginário. Precisamos de dispositivos de compreensão do mundo, da família, das crenças, da ficção, de tudo isso. O que temos de saber é em que dose. Se a dose é excessiva, vivemos num país fantasmagórico em que não bate certo o que imaginamos e o que realmente somos. Tantos heróis, tantos feitos históricos… Agora chegaram as mitologias da tecnologia… Mas, depois, a realidade é dura. Essa dureza são os incêndios, as consequências a que chamamos desastres e perante as quais corremos o risco sério de ficar esquizoides.

No que se passou com os incêndios, na forma como a história foi contada, dava a sensação que estávamos a querer produzir uma telenovela sobre o país e nós próprios, em que a narrativa parecia comandada pela emoção. 

E é a própria cavalgada da informação. Estamos num contexto em que a informação tem de ser passada num regime caudaloso, senão não funciona, é chato. É preciso refrescar. E se não é com coisas locais, que seja o Trump ou outra coisa qualquer. O que acho é que há demasiados dispositivos de mediação entre o indivíduo e a dita realidade, e estes dispositivos centram muito o indivíduo e menos o grupo. Genericamente, a sociedade torna-se a tribo: são os amigos, é a rede do Instagram, Facebook… É como se, de repente, o todo social se fragmentasse em pequenos mundos que organizam as nossas visões do mundo. Depois, há uma espécie de pano de fundo (mas esse é muito genérico), que nos diz o que é Portugal, o que é a Europa… No meio disto tudo perdeu-se essa capacidade de olhar para as coisas e tentar perceber minimamente o que elas nos querem dizer. 

Li o seu livro como se ele estivesse a pôr em causa uma gramática que rege o modo como olhamos para as coisas. E as fotografias aparecem como composições que, ali sublinhadas, desafiam a nossa atenção a ler o que apenas vimos de passagem.

É para violentar o indígena. (risos) Para que não me diga aquela coisa, que é o que mais detesto: “Gostei muito do seu livro, tem umas fotografias fantásticas.” “E mais?”, pergunto eu. “Ah, aquilo é bem a expressão do país desorganizado.” E eu: “Diga-me o que é a organização para depois podermos falar disso…” Isto porque nós também temos esta paranoia da organização, que me parece que é um legado do século das Luzes. Ou então há as pessoas que querem por força saber onde tirei aquela fotografia. Não interessa, digo-lhes. Raramente estão disponíveis para isso que me diz. 

Não há nunca no seu discurso um aspeto moralizante nem uma crítica, mas passa mais por um levantamento de situações que são interessantes por si.

Não, não há nada de moralizante. O livro podia ter milhares de páginas. Vejo qualquer uma daquelas coisas como afloramentos da realidade. Podem ser aqueles ou outros quaisquer. Portanto, não é um livro que nos diz: Portugal é assim. De outro modo, seria o guia da Gulbenkian ou de outra entidade qualquer. Não. É uma tentativa de encontrar um olhar oblíquo para as coisas e de construir ferramentas de observação e de pensamento sobre o que é esta coisa que andamos aqui a fazer.