As escadas são estreitas mas Júlio Pomar continua a subi-las todos os dias para trabalhar. E se há um dia em que não sobe “é mau sinal”. Estava tudo combinado para nos encontrarmos no Atelier-Museu, mas o pintor recebe-nos num outro ateliê – as águas-furtadas da sua casa, do outro lado da rua – camisa de bombazine encarnada sobre uma camisola, lenço ao pescoço, bengala e umas Crocs nos pés. Além das pinturas – umas prontas, outras começadas, outras que hão de ser, – o ateliê exibe painéis com recortes de jornais e objetos singulares de antiquário.
Sobre uma cadeira repousa uma edição recente de “Ulisses”, de James Joyce. Na véspera de completar 90 anos (“não sei como é que me vou meter nesse dia”, diz ele que não gosta de aniversários), Júlio Pomar olha para trás sem uma obra preferida. “Preferido é aquilo que amanhã posso fazer.” A mão já treme, muito, mas só quando está em descanso. Quando vai pintar, “nessa altura entra a decisão”.
Ali ao fundo é Sampaio da Nóvoa?
É, é. A ver se fica pronto a tempo.
Das presidenciais?
Sim, o pedido foi formalizado pela candidatura. É para a serigrafia que será vendida a favor da campanha. E estes retratos todos do Champalimaud são estudos para um retrato que foi encomendado para ser gravado na fundação. No local é muito maior do que isto, já está lá.
Trabalha sempre em várias pinturas ao mesmo tempo?
Sim. Quando chego ao ateliê, elas é que mandam. Sou muito pouco determinado nesse aspeto. Desde que trabalhar deixou de ser uma exceção e passei a dispor do meu tempo, trabalhei sempre em várias coisas.
Quando foi isso?
Quando fui para Paris. Antes tinha de fazer outras coisas para ganhar a vida.
Muitos artistas não chegam nunca a ser reconhecidos em vida, o que não é o seu caso. Como lida com isso?
Não sei se será abusivo dizer que lido com naturalidade. Quando comecei a querer trabalhar, ser artista em Portugal era absolutamente impensável. A coisa foi acontecendo aos poucos e dei por mim uns anos depois a poder não ter outra atividade, como normalmente os artistas têm – seja a publicidade ou as artes gráficas. A partir de certa altura, quando começou a haver pessoas que compravam o que eu fazia, deixaram de vir ter comigo para me pedirem outros trabalhos. Foi assim, naturalmente. De resto, sou reconhecido mas vivo de forma muito modesta, muito terra-a-terra. Não tenho jatos privados nem quero ter.
Ainda assim ser Júlio Pomar não é um peso?
Não, não, não. É muito difícil de explicar, mas cada trabalho em que me meto, em que me empenho, é sempre uma aventura e um não saber como é que as coisas se vão concluir. Não há diferença entre a atitude de quando tinha 20 anos e a que eu tenho agora. É uma partida dentro do desconhecido, nunca um ato de fabricação. Um sapateiro – sem desrespeito nenhum para o sapateiro – quando produz um par de sapatos sabe exatamente o que quer fazer. Eu vou à procura, é diferente. E hoje posso permitir-me isso.
Mas quando faz uma tela tem um plano, uma ideia?
Tenho uma ideia, uma vontade, um apetite, digamos. Mas nunca, nunca, nunca podemos entender esse apetite, essa vontade, como um processo de fabricação. Há sempre uma provocação do desconhecido e, até certo ponto, do risco, de a pessoa escorregar e fazer uma asneira. Não há normas que garantam o êxito.
Alguma vez perdeu essa vontade de pintar?
Há momentos em que o trabalho é mais penoso, em que o chão foge de debaixo dos pés. Mas como já tenho muitos anos de experiência isso já não me atrapalha, não me parece catastrófico. Está bem, este dia falhou, este dia não deu nada, tive de rasgar tudo o que tinha feito, mas não tem importância, amanhã recomeça-se. Isso parece-me uma coisa que tenho de saudável agora. Começa a haver uma certa memória de estados semelhantes e uma certa confiança, uma esperança de vencer as dificuldades.
Em 2015 uma obra sua, O Almoço do Trolha, foi vendida em leilão por 350 mil euros. Interessa-lhe ver o valor que as suas obras atingem?
Claro que interessa e claro que fico muito satisfeito se obtêm uma escala de valores, vamos dizer, interessante. Sei que não é isso que vai determinar a qualidade do trabalho mas de qualquer modo seria absolutamente falso dizer que isso me é indiferente. Não é.
Não acha que, sobretudo lá fora, a arte atinge valores quase obscenos?
Ah, isso com certeza. Não é uma cotação que define o interesse de uma pintura, de maneira nenhuma, podemos dizer até que essa cotação é uma obscenidade que se cola ao ato natural da criação de um objeto de arte.
E os artistas beneficiam disso? No seu caso, por exemplo, beneficia de O Almoço do Trolha ser vendido por 350 mil euros?
Sem dúvida nenhuma que o público reage de uma maneira diferente se um quadro é licitado ou se arrefece no silêncio. Para a circulação da obra, para a possibilidade de discussão e de entrosamento no panorama das coisas da vida, a cotação é muito importante.
Acha que o Almoço do Trolha vale 350 mil euros?
Isso é puramente convencional. Por exemplo, quando um homem gosta de uma mulher, isso não pode ser cotado.
Quando o pintou sentiu que estava a fazer alguma coisa especial?
Penso que de uma maneira geral ou há um investimento naquilo que se faz ou então não vale a pena, entramos naquela produção mecânica que não tem muito a ver com a obra de arte.
Mas às vezes não sente que há um quadro que vai resultar melhor ou ser mais bem aceite?
Claro. Embora tenha de haver sempre um investimento, a qualidade do investimento varia. Há apostas que são de muito maior risco ou de maior prazer ou as duas coisas juntas.
Recuemos um pouco. Lembra-se da primeira pintura que vendeu?
Sim. No ano em que fui para a escola de Belas Artes de Lisboa – tinha uns 17 anos –, eu e alguns amigos partilhávamos uma sala num terceiro andar na Rua das Flores, ali ao Chiado, a que pomposamente chamávamos ateliê – felizmente a maior parte dos que se juntaram para pagar o aluguer nunca chegou a lá trabalhar… E resolvemos fazer lá uma exposição. Cada um juntou o que tinha, uns tinham muita coisa, outros tinham pouca, outros não tinham nada, e fez-se uma exposição. Era o tempo da II Guerra em Lisboa, os homens iam à taberna ou ao café regularmente e havia a Brasileira, no Chiado, onde a qualquer hora se encontravam pessoas ligadas às atividades mais ou menos criativas. Acontece que há uma pessoa de destaque que vai [à exposição] e ao tomar o seu café na Brasileira conta: “Olhe, fui ali a um terceiro andar na Rua das Flores e há lá uns miúdos.” E como não se passava nada em Lisboa as pessoas foram todas, os monstros sagrados: o Almada, o diretor do Museu de Arte Antiga e outros. Hoje esta exposição podia ter passado completamente despercebida. Há muitos jovens a fazer coisas semelhantes, a alugar uma sala, a trabalhar e a pôr uns quadros na parede, mas os senhores já não vão tomar o café e já não têm tempo. Claro que havia uma certa qualidade, mas o que ajudou sobretudo foi a pasmaceira do meio cultural português.
Dizia que foi aí que vendeu a primeira pintura.
Uma pintura que era um cartãozinho, que foi comprado pelo Almada Negreiros – que era evidentemente um senhor
Lembra-se de por quanto vendeu?
Lembro, sim senhor: 100 mil réis. Devo tê-los gasto em tintas e coisas do género.
Recuando ainda mais, ao tempo da sua infância…
A minha infância tem duas partes. Uma que é um período que me marcou muito, que vai do tomar de consciência até aos 6, 7 anos e é passada num 4.º andar na Rua das Janelas Verdes, com o Tejo defronte. Esta presença constante do rio, e um rio que era um rio movimentado. O Tejo hoje praticamente não tem movimento, mas na altura todo o tráfego era feito por barco, e isso dava um espetáculo de ambiente. Nessa casa viviam os meus avós maternos, a minha mãe, eu e uma irmã minha. O meu pai morreu quando eu tinha um mês, e a minha mãe só sabia francês e piano, o que não lhe deu propriamente para sustentar a família. O francês lá serviu porque depois entrou como secretária de um judeu polaco, na altura em que vieram os judeus, que tinha um escritório na Rua de São Nicolau (isso era outro espetáculo, as idas à Rua de São Nicolau). Isto acaba na altura em que os meus avós ficaram velhos e já não podiam tratar convenientemente das crianças. A família foi toda recolhida por uma irmã da minha mãe. Foi a mudança para as chamadas Avenidas Novas, para esquina da João Crisóstomo com a Miguel Bombarda. Essa perda do Tejo e de todo um espetáculo permanente foi um grande corte na minha vida, houve qualquer coisa que desapareceu e passou a viver só na memória. Fiquei como um miúdo que se foi fechando e que começou a desenhar. Os bonecos começam assim.
O que desenhava?
Os meus desenhos ou copiavam imagens de jornais ou eram representações de festas. Tenho muitos desenhos sobre o Carnaval, são os mais criativos.
Era um miúdo bem comportado?
De maneira geral bem comportado, um bom estudante como costuma dizer-se, e passava o tempo a fazer bonecos. Esse ato de fazer bonecos leva o meu tio, que frequentava uma pequena tertúlia de jornalistas, a dizer “tenho lá em casa um miúdo”. Um dos membros da tertúlia era um escultor, professor da Escola António Arroio que disse “manda o miúdo para lá”. E eu entro com 7 anos. Pouco a pouco o destino foi-se traçando. Claro que na altura o pintar, o modelar, o fazer escultura eram ofícios impossíveis. Se o menino tem jeito para o desenho vai para arquiteto. Mas um dia o meu tio chegou a casa e disse: “Tu vais mas é para engenheiro, que engenheiro é mais importante que arquiteto”. Bom, a coisa resolveu-se naturalmente porque a António Arroio não dava equivalência ao liceu. Entretanto o meu tio morre, eu acabo o curso e consigo não ir para Arquitetura.
Como foi a sua passagem pelas Belas Artes?
Extremamente curta. Dois anos em Lisboa e depois mais no Porto. Porquê dois anos em Lisboa e porquê a ida para o Porto? A escola de Lisboa tinha um diretor que era um arquiteto mas cuja obra única de arquitetura eram as instalações sanitárias de uma estação de caminhos de ferro e que era um selvagem, conhecido como Cunha Bruto.
Entraram em choque?
Tivemos uma discussão e nunca mais pus lá os pés. No Porto era muito melhor, mas de qualquer maneira não aprendi grande coisa. O que aprendi foi sobretudo nas bibliotecas.
E as aulas?
Tinha havido, no princípio da II_Guerra, ofertas de edições americanas ou francesas. Para mim, o meio essencial da aprendizagem foi o livro. Na altura entrei nas lutas académicas e tive uma suspensão – felizmente, porque já estava perdido por faltas. Como é que eu ia explicar à família que estava perdido por faltas?
O que ficava a fazer em vez de ir às aulas?
Os meus bonecos, por um lado, e por outro esse é o ano que precede o fim da guerra e portanto há uma grande efervescência de atividade académica e política. Há o MUD Juvenil, do qual faço parte, e depois dá-se a prisão, os quatro meses passados em Caxias, que foram realmente importantes. A polícia queria a prova das ligações aos comunistas mas, nesse aspeto, no meu caso não conseguiram encontrar nada. Entretanto eu já tinha tido uma encomenda de uma certa importância, não tinha 20 anos sequer, que era o fresco do Cinema Batalha [no Porto].
Que depois foi destruído.
O cinema abriu com a pintura por acabar. Ainda esteve naquele estado uns meses, eu fui acabar a pintura quando saí da prisão, mas depois veio a ordem assinada pelo Governo Civil do Porto e é imposta a destruição.
Disse que o período na prisão foi importante. Porquê?
Foi um período de convivência com gente de qualidade. Estive preso com o Mário Soares, com o [Salgado] Zenha. Tinha havido greves, tinha havido uma tentativa de movimento militar, por isso as prisões estavam cheias de gente da mais variada espécie e acho que isso foi uma grande escola.
Como foi tratado?
Não fui agredido, mas o tratamento da prisão era qualquer coisa muito humilhante. Basta dizer que a prisão não se chamava prisão, chamava-se “Depósito de presos”. Isto quer dizer tudo. [Pausa] Depósito de presos de Caxias…
Mantém a relação com Mário Soares?
Ele aparece-me aí às vezes e toca lá em baixo. Infelizmente aquela última doença tocou-o muito.
Que importância teve fazer o retrato de Soares para o Museu da Presidência?
Esse retrato é engraçado porque é um retrato oficial. Antes de começar, perguntei já com um bocado de malandrice ao Mário: “Ouve lá, como é que queres o retrato? De casaca, com condecorações, retrato oficial?” “Epá, faz aquilo que quiseres” Eu assim comecei. Penso que aquela é imagem de um homem que se realiza muito pela comunicação, pela conversa, que tem aquelas pausas para dormir e depois retoma, vem de lá disparado: “Epá, o gajo…” Mas foi muito mal recebido.
Já esperava isso, ou não?
Não, não esperava. E foi o Mário Soares que se aguentou contra tudo e contra todos.
Mas o retrato tem um lado provocatório.
É capaz de ter [sorri].
Como foi feito? A partir de fotografias?
Ele posou uma vez, mas foi mais para fazer de conta, de resto tinha muito material fotográfico.
Ao longo da sua obra a questão política vai perdendo importância. Porquê?
Talvez por uma razão muito simples: a razão política é importante, mas não é tudo. Isso é uma consciência que mesmo a contragosto se vai formando.
Quando é que sai de Portugal pela primeira vez?
Quando vendo O Almoço do Trolha, é com esse dinheiro que faço a primeira viagem a Paris. Fomos à boleia.
E o que sente ao ver pela primeira vez as pinturas que só tinha visto nos livros?
Ah, isso foi… Eu dei sempre muita importância às coisas que existem, àquilo que tem relação connosco e que tem uma dimensão, uma qualidade acima do normal. Hoje que a informação circula de uma maneira completamente diferente. Na altura eram raras as fotografias a cores.
Como é que vai viver para Paris?
Vou viver para Paris mais tarde, quando já podia viver em Lisboa! Mas sabia que lá fora as coisas se passavam de uma maneira completamente diferente e financeiramente havia essa possibilidade de ir.
A sua obra, ao longo destas décadas, é muito diversa. Nunca esteve preocupado com coerência?
Penso que isso deve vir da curiosidade de não ter bloqueado apenas num ponto. A diversidade vem da minha vontade de descoberta e até certo ponto da não limitação de interesses.
E ao experimentar já aconteceu sentir que falhou redondamente?
Sim, e isso é importante. Houve um ano em que deitei fora quase tudo o que tinha feito. É o segundo, terceiro ano de Paris, depois das corridas de cavalos. Não era capaz de fazer mais corridas, por mais que as pessoas pedissem.
Chegou a passar dificuldades por causa disso?
Não cheguei a passar. Tinha uma almofada suficiente. Mas se tivesse durado mais, teria.
Tem muita relação com literatura.
Há muita coisa. Por um lado, o facto de ter feito muitas ilustrações. E o Dom Quixote é uma coisa que se cruza entre quadros que já não eram propriamente ilustrações e o material de ilustração propriamente. Tenho a impressão de que é o caso mais visível em que além da encomenda há o habitar da pintura por uma personagem.
Lê muito?
Sou um releitor. Gosto imenso de reler, claro que não tudo. Mas há livros que suportam uma releitura e parece que cada vez que a gente lê encontra coisas novas. Neste momento ando a pegar no Ulisses do Joyce. Não leio o original, leio uma tradução. A primeira tradução francesa é de um senhor que ficou completamente vidrado, era um jovem escritor que nunca mais fez nada na vida até à sua morte se não traduzir e enviar correções.
Vê televisão?
Dá-me cabo da vista. Fatiga-me excessivamente, evito ao máximo, mas acabo por ver mais do que queria. Não gosto de ver filmes na televisão, talvez por ter sido um fanático do cinema, esse efeito do esmagamento pela imagem.
Qual foi o último que viu?
Foi o do António-Pedro. Em matéria de cinema, para mim há dois astros maiores. Um é o senhor Buñuel e outro é o senhor sueco… o Bergman. Tudo o que fazem sai bem feito, não sei como é que arranjam.
Há alguma obra da qual nunca tenha querido separar-se?
Não. Não me lembro de dizer “essa não”. Pode parecer demasiado otimista, pode ser um bocadinho infantil, mas interessa-me mais aquilo que possa vir a fazer do que o que está feito.
Não tem nenhum preferido?
Preferido é aquilo que amanhã posso tentar fazer.
Continua a trabalhar todos os dias?
No dia em que não subir ao ateliê e não me interessar por aquilo que estou a fazer é muito mau sinal.
E a ir a museus?
Menos do que dantes. Agora em exposição no Museu de Arte Antiga estão quadros emprestados de coleções espanholas. Entre eles há um Goya que eu nunca tinha visto e que tenho mesmo de ir ver.
Tem algum favorito, onde tenha ido muitas vezes?
Se tivesse que escolher escolhia a sala de desenhos do Goya no museu do Prado, entre os quais o último desenho, que é um velho que anda apoiado cada mão com a sua bengala. E a legenda é “Ainda aprendo”.
O Júlio Pomar aos 90 anos ainda aprende?
Se não aprendesse era muito mau sinal.
Com quem?
Muitas vezes aprende-se até com os imbecis.
Cláudia Sobral e José Cabrita Saraiva