Se não há autores absolutamente intraduzíveis, é certo que alguns provam ser umas intratáveis bestas. Alados no seu idioma, forçados a habitar num outro, fincam os cascos na gravilha e é impossível levá-los a mover-se um centímetro. E mais assim é no caso dos poetas. Alazões cujo portento se verifica na perturbação da linguagem, de tal modo que carregam as paisagens daquela tensão peregrina. Mesmo as traduções esforçadas tantas vezes não superam aquele reflexo culpado que deles faz potros amarrados, dando alguns coices nas cavalariças de outro idioma.
Arthur Rimbaud, o tenebroso adolescente que aos 21 anos tinha abandonado a poesia, «legando, desdenhosamente, à humanidade uma obra curta, mas tão revolucionária que ainda hoje ‘espanta o século’» (Augusto de Campos), tornou-se num insuperável mito, o génio precoce que, rasgando a garganta do simbolismo, entregou o seu cadáver aos lobos do modernismo, incitando os poetas vindouros à rebelião: «Il faut être absolument moderne».
Neste caso, não devemos ter pressa em culpar o atraso crónico do nosso país em registar os grandes abalos sentidos lá fora pelo facto de só este ano, volvido mais de um século sobre o impacto dilacerante desta obra «mínima (e máxima)», a termos visto reunida entre nós. Um compreensível pudor poderá ter levado muitos dos que foram chegando a esta obra a não se sentirem à altura do desafio. Quantas traduções não se terão perdido pelas gavetas de leitores que não se sentiram confiantes da capacidade de seguir esse que, de tão longe que foi, já não voltou do seu inferno? E houve, mesmo assim, admiráveis resgates parciais da obra. Desde logo, tínhamos as Iluminações e Uma Cerveja no Inferno de Mário Cesariny, textos gémeos que, mais do que tornar poesia e prosa indiscerníveis, deixaram bem à vista as raízes da Modernidade, para que quem viesse depois não deixasse de tropeçar – determinando que, de ora em diante, «a Poesia deixará de bater o compasso da acção; irá à frente» –, e ainda retiraram também o freio racionalista à linguagem, abrindo a perspetiva de campo para que ocorresse a revolução do surrealismo.
Publicaram-se outras traduções relevantes, como a do poema-ícone O Barco Bêbado, na Hiena, por Pedro José Leal, e O Rapaz Raro, de Maria Gabriela Llansol, na Relógio D’Água, mas a iniciativa de reunir a obra completa por esta mesma editora, apresentando novas traduções dos textos que já conhecíamos, somados a tantos que surgem pela primeira vez traduzidos em Portugal, é um acontecimento editorial que exige ser tratado como de primeiríssima importância.
Com um prefácio do editor, Francisco Vale, a tradução ficou a cargo de Miguel Serras Pereira e João Moita. Consultando o índice desta Obra Completa – da qual apenas se excluíram «os poemas em latim, os exercícios escolares, e algumas cartas comerciais sem interesse» –, percebemos que não se trata de um trabalho feito a quatro mãos, mas que o volume foi rachado entre os dois tradutores, sendo ali discriminado quem se ocupou do quê. No que toca aos poemas-poemas, as iniciais JM prevalecem, ao passo que MSP, assinando alguns destes, ficou com as incursões prosa-poesia. Em relação às cartas e outros documentos, a tradução não está atribuída, presumindo-se que couberam também a Serras Pereira.
Antes de irmos às traduções, deve dizer-se que o prefácio do editor, se é exemplar na hora de esclarecer-nos sobre a biografia do poeta – tão rigoroso ao pôr sangue e pressão na desvairada cronologia que, tantas vezes, não nos transmite de Rimbaud mais do que o leviano mito do voyant; um devorador de destinos, esse espírito sagaz mas implacável de alguém que cedo se fartava das suas próprias metas, e partia para outra, virando as costas, zombando de tudo e de todos –, é depois incompreensivelmente omisso na hora de pôr os dedos na obra, medir-lhe o pulso, esquissar contornos mesmo que vagos para explicar como Rimbaud se tornou um ícone da ideia de ruptura, sem a qual «a literatura moderna não seria nem possível nem inteligível». O «desregramento de todos os sentidos» que preconizou, é um impulso que se segue ao entendimento de que «não existe distinção real entre o Verbo e o Espírito, e a revelação do primeiro deve ir de par com o segundo», como refere Ernesto Sampaio. E é por isso que vai empenhar-se «em destruir metodicamente as limitações impostas às potências do Ego por aquilo a que se chama consciência».
«Desde Rimbaud a arte da poesia avançou pouco ou nada», escreveu Pound. Mas se este é o poeta que até os que geralmente detestam a poesia gostam de fingir que leem, repetindo os mais exaltados louvores, que soam como qualquer outra baboseira, para percebermos melhor por que Rimbaud emerge entre todos os poetas subversivos como «aquele que de um modo mais definitivo e exemplar estabeleceu tal ruptura no nosso tempo» (António Ramos Rosa), é preciso largar os biógrafos e tantos quantos investiram com furor detetivesco sobre o carácter misterioso das causas daquela «criança atroz», para ler tantas vezes quantas necessárias a obra. Como fez Octavio Paz: «Talvez tenha sido Rimbaud o primeiro poeta que viu, no sentido de perceber e no da vidência, a realidade presente como a forma infernal ou circular do movimento. (…) Para Rimbaud o novo poeta criaria uma linguagem universal, da alma para a alma, que, em vez de ritmar a acção, a anunciará. (…) A palavra poética não é menos ‘materialista’ que o futuro que anuncia: é movimento que engendra movimento, acção que transforma o mundo material. Animada pela mesma energia que move a história, é profecia e consumação efectiva, na vida real, dessa profecia. A palavra encarna, é poesia prática.»
Alheado do exame crítico da obra, de certo modo o prefácio prepara-nos para o que se seguirá. Esta Obra Completa funciona mais como um instrumento de apoio à leitura de Rimbaud do que como um intrépido novo passo em português. E se ele não foi um, mas muitos, se é um poeta que em breves anos causou uma confusão danada, a sua obra traduz-se numa virtuosa elaboração de aflitivos contrastes, que depende tanto do vigor e precisão das imagens, do tremor que os ritmos impõem a cada verso e da forma como «desestabiliza a semântica poética com as associações insólitas da sua imaginação e a violência do seu vocabulário» (A. Campos). A questão é que Rimbaud está entre aqueles autores trocistas, que se afastam impiedosamente do tradutor, deixando-o a sós com o triste desacerto das suas melhores intenções.
Nestas traduções deparamo-nos não poucas vezes com uma impossibilidade de acompanhar o poeta na sua furiosa dispersão, e, sem descolar do sentido literal, estas acabam por produzir um efeito de redução e contenção de Rimbaud. Embora as imagens sobrevivam, e vocabularmente a tradução seja fidelíssima à turbulência original, por delicadeza, os tradutores vão perdendo as vitais sinestesias do poeta. A prosódia tantas vezes mostra-se coxa, os versos são cascas, casulos de que a borboleta já saiu. Se isto é perfeitamente compreensível num poeta que obriga a uma tradução criativa, o que é evidente é que estas não descolam o suficiente para se darem as liberdades necessárias, essenciais. Cai em saco roto todo o incitamento ao tal desregramento dos sentidos, e temos uma poesia que nem dá sinais de luta no esforço de segurar a beleza estética do original.
Na sua nota de tradutor, Cesariny dizia que, nesta prática «devemos tentar merecer, entender e aplicar, as palavras de Novalis: … ‘Uma tradução pode ser literal, livre ou mítica. As traduções míticas são o estilo supremo da tradução. Representam a obra de arte individual no seu caráter puro e total. Dão-nos, não a obra de arte ela própria, mas a sua transcrição ideal. (…) As traduções literais exigem muito saber mas valem-se de um talento puramente discursivo.
As traduções livres, se se pretendem válidas, exigem o mais elevado espírito poético. (…) O verdadeiro tradutor neste género deve ser ele mesmo um artista e dar uma ideia do conjunto por tal ou tal processo à escolha. É necessário que seja o poeta do seu poeta».
Tanto Cesariny como Augusto de Campos (Rimbaud Livre) optam por traduções livres, sujeitando este idioma aos destratos da passagem de um sangue maldito pelas suas veias. Assim, Campos assume que, no seu modo de recriar os movimentos do original, procura «chegar a um texto cursivo, não torturado, que resulte em belos versos, versos que eu gostaria de ter escrito». Para isso, não valoriza mais o sentido do que os achados formais, e opta por desvios sensíveis para responder às assonâncias com assonâncias, às aliterações com aliterações, aos neologismos com neologismos. Como se a tradução fosse feita sobre uma pauta musical, fala da importância de ser ortodoxo quanto ao ritmo, varejando bem a frondosa copa da língua em busca de rimas que não sejam nem fáceis nem pobres. E justifica isto lembrando que, «além da inventividade e da surpresa das imagens, é a sua precisão que faz Rimbaud tão difícil e às vezes impossível de traduzir. Uma pequena refracção linguística põe tudo a perder».
Seria injusto buscar um exemplo especialmente infeliz entre os poemas de Obra Completa, comparando-o a versões mais suadas de outros tradutores. Não se encontraria, de qualquer modo, soluções desastrosas, pois há um esmero evidente nestas aproximações. Acontece que, frente a um poeta destes, de nada vale chegar com a bandeirinha branca estendida. Cada verso é uma guerra, que só pode terminar com dolorosas negociações. E o mais certo é que o lado de cá raramente leva a melhor. No máximo, pode ir compensando a imagem turva do seu espelho, com alguns achados próprios, acentuando o declive do seu idioma.
O afinco que os tradutores puseram na correspondência vocabular e de sentidos frustra outras transposições. O que melhor sobrevive é o miúdo que deixa todos nervosos, esse que escarnece de toda a compostura, sarcástico, e, logo depois, capaz de uma visão tão doce que parece arrancada dos lábios de um anjo, versos de uma claridade hínica. Nesta tradução, não se perde essa volubilidade escandalosa, mas o valor discursivo sobrepõe-se aos sons e ritmos, que acabam de joelhos. E se essa não deixa de ser uma posição adequada para começar a aproximação a Rimbaud, para não se ficar pela reverência mas passar-lhe um braço pelos ombros e trazê-lo para a nossa língua seria preciso mais ousadia, o esforço de voltar-se em várias direções na rebaldaria infeciosa de todas as suas sugestões. Isto obrigaria a abandonar um método fixo, linear, para alcançar a «incoerência harmoniosa» (Paul Valéry) que faz desta obra um prodígio tão extravagante quanto minimalista.
Veja-se o pávido estertor da célebre Canção da Torre Mais Alta nesta nova tradução: «De ócios jovem presa/ A tudo rendida,/ Por delicadeza/ Perdi minha vida./ Ah que o tempo avance/ Que encanta os amantes.// Eu disse-me: esquece,/ Não sejas ninguém./ E deixa a promessa/ De mais altos bens. Que nada te frustre/ O retiro augusto. (…)»