Foram muitos meses de negociações e António Costa chegou a dar como certo um acordo com a esquerda para a Lei de Bases da Saúde, mas em poucos dias tudo mudou. O Governo recuou e deixou cair o fim das parcerias público-privadas (PPP) na Saúde. O resultado é óbvio: não há acordo à esquerda e a porta fica aberta para um entendimento entre o PS e o PSD – como quer, desde o início, Marcelo Rebelo de Sousa.
Os bloquistas ficaram estupefactos com o recuo do PS depois de terem anunciado, há uma semana, o acordo que tinham firmado com o Governo, onde estava previsto o fim das PPP e acabar com as taxas moderadoras nos cuidados de saúde primários. «Só podemos estar chocados com o caminho do PS ao apresentar propostas que contrariam o acordo alcançado. Agradam com certeza ao grupo Mello, mas não honram o legado de António Arnaut e João Semedo», disse, na quinta-feira, durante as comemorações do 25 de Abril, Catarina Martins.
Não é a primeira vez que socialistas tiram o tapete ao BE com alterações em acordos à última hora. Nas negociações do Orçamento do Estado para 2018, o Governo comprometeu-se com a criação de uma contribuição extraordinária para os produtores de energias renováveis, mas acabou por recuar.
O episódio repete-se com as PPP na saúde e no BE fala-se mesmo num problema de confiança. «Para o BE isto é um incidente grave. Isto coloca um problema de confiança na relação entre os parceiros», disse José Gusmão.
Os bloquistas voltam a acusar o PS de ceder às pressões dos privados. «Qual a razão para recuarem se havia acordo e uma maioria para aprovar uma lei de bases à esquerda? São os interesses instalados a falar mais alto? Sucumbiram uma vez mais ao negócio?», questiona o deputado Moisés Ferreira, na sua página do Facebook. O deputado do BE esteve nas negociações com a ministra Marta Temido e já tinha escrito que «se o PS não tiver um assomo de sensatez é o trabalho do reforço do SNS que fica pelo caminho, atraiçoado pelo PS».
A ameaça de Marcelo
Nas comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República os bloquistas não ignoraram o assunto. Jorge Falcato questionou se «o Serviço Nacional de Saúde pode voltar a andar de cravo ao peito, como Arnaut o sonhou, ou manterá a porta aberta para o negócio dos privados em cedência à pressão presidencial».
Minutos depois, Rui Rio abria a porta a um entendimento que há uma semana parecia impossível. O líder do PSD admitiu que poderá votar favoravelmente a Lei de Bases da Saúde se «o PS se aproximar do PSD».
O consenso entre os dois maiores partidos é um desejo do Presidente, que ameaçou vetar a lei no caso de impedir as PPP na Saúde. «A minha opinião não é ideológica, é pragmática. Uma lei que feche totalmente essa hipótese é uma lei irrealista», disse o Presidente no programa O Outro lado, na RTP 3, no início da semana e quando ainda não era conhecida a proposta do PS para manter a porta aberta às PPP nos hospitais.
A posição do Presidente foi, aliás, um dos argumentos apresentados por António Costa para recuar. O primeiro-ministro garantiu, no dia 25 de Abril, que «não houve, até agora, nenhum acordo fechado» e apelou a que todos «façam um esforço para que haja uma maioria que o viabilize».
Mas o recuo foi evidente depois de ter admitido que a intenção do Governo era aprovar a Lei de Bases da Saúde com os parceiros de esquerda. Num debate quinzenal, em janeiro, o primeiro-ministro garantiu que pretendia aprovar a lei com «a maioria que criou o SNS» e «nessa maioria o PSD não se inclui». A 4 de Abril, em resposta a Catarina Martins, Costa voltou a deixar claro que queria aprovar a Lei de Bases com a esquerda. «Não temos de nos deprimir com a ausência de apoio de partidos que nunca apoiaram o Serviço Nacional de Saúde. O SNS tem passado bem sem o seu apoio ao longo de várias décadas».
Foi nesse debate que o primeiro-ministro confirmou ter enviado ao BE e ao PCP um documento, que foi tornado público esta semana, em que deixava cair a possibilidade de gestão de estabelecimentos do SNS por entidades privadas. Mesmo que fosse de forma «supletiva» e «temporária».
O PCP assumiu uma posição mais discreta, mas não deixou de criticar a viragem à direita do Governo. Em comunicado, o PCP condenou que «o PS procure com o PSD, com o patrocínio do Presidente da República, uma lei que prossiga a desvalorização do SNS e o caminho de privatização da Saúde». Jerónimo de Sousa defendeu que «o PS vai ter de explicar melhor» as alterações que apresentou sobre esta matéria.
‘Geringonça’ em risco?
A posição dos socialistas num tema crucial está a assustar os bloquistas. Há já mesmo quem admita a hipótese de o PS estar a preparar uma aliança com a direita a seguir às legislativas. João Teixeira Lopes, a título pessoal, não tem dúvidas de que o recuo de António Costa tem um significado político e poderá traduzir-se numa cambalhota na política de alianças. «Estamos a assistir a uma reconfiguração da politicas de aliança por iniciativa do PS. O PSD de Rui Rio gostaria de ter uma participação numa solução governativa e parece-me evidente que o PS não descura essa possibilidade», diz ao SOL o ex-deputado do BE. A mesma hipótese foi avançada pelo ex-bloquista Daniel Oliveira. No O Eixo do Mal (SICN), o comentador considerou que «se António Costa abandona em três dias a negociação que durou mais de um ano e chegar a um acordo com o PSD está a dar um recado ao país sobre o que vai acontecer a seguir às eleições. Se for isto é o Bloco Central».
João Teixeira Lopes lembra que não é a primeira vez que os socialistas rompem um acordo e lamenta esta «quebra de compromisso». Demonstra que «o PS parece não ter palavra e parece não ser um parceiro fiável», diz o ex-deputado bloquista. Em ano eleitoral, quatro orçamentos depois do início da ‘geringonça’.