A partir do primeiro dia da próxima legislatura toda a polémica gerada em torno da demissão de Artur Neves, secretário de Estado da Proteção Civil, ou de outros membros do Governo cujos familiares tenham feito negócios com o Estado pode ter os dias contados, com a entrada em vigor da nova lei de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. Com as alterações a este regime, aprovadas a 7 de junho na Comissão da Transparência com votos favoráveis do PS, PSD, BE e PCP, casos como o do secretário de Estado deixam de ser um problema aos olhos da Justiça.
Tendo já sido publicado em Diário da República, na passada quarta-feira, este novo diploma prevê impedimentos apenas a empresas que sejam detidas «conjuntamente» por um governante e o seu familiar e aos «cônjuges» ou às pessoas com quem os políticos «vivam em união de facto». Ou seja, em tese, os «ascendentes e descendentes» de políticos poderão celebrar livremente os contratos públicos que quiserem – desde que o próprio político não detenha mais de 10% ou 50 mil euros da sociedade – mas os maridos e mulheres dos mesmos estão proibidos de fazer negócios com o Estado. Em nome da transparência é exigido que, quando contratos desta natureza forem celebrados, fique descrita no portal online dos contratos públicos (BASE) a relação dos familiares com os políticos. Contudo, na nova lei não aparece nenhuma sanção relativa à não colocação da caracterização da relação familiar. O diploma prevê ainda a possibilidade de um político alienar ou suspender a sua participação numa empresa.
No entanto, segundo declarações prestadas ao SOL por João Paulo Batalha, presidente da Associação da Integridade e Transparência, há pontos em que a lei «não é clara» e pode «voltar a causar problemas de interpretação».
De qualquer forma, a aplicação da atual lei de incompatibilidades – que estabelece que os familiares de políticos «ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau» não podem realizar negócios com o Estado «através de empresas em que tenham uma participação igual ou superior a 10%» – só poderá sancionar algum executivo e declarar nulos contratos realizados nestas condições até ao dia das legislativas, 6 de outubro.
É de recordar que António Costa pediu, na semana passada, esclarecimentos à Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a imposição da demissão de políticos no incumprimento da lei em vigor. Este pedido de clarificação veio na sequência da informação de que o filho de Artur Neves, Nuno Neves, tinha celebrado com o Estado três contratos – dois com a Universidade do Porto e um com a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira – no total de dois milhões de euros. Para o Governo, a cessação de funções exigida no referido diploma suscita dúvidas. «Como é que alguém pode ser responsabilizado, ética ou legalmente, por atos de entidades sobre as quais não detém qualquer poder de controlo e que entre si contratam nos termos das regras de contratação pública, sem que neles tenha tido a menor intervenção», questionou o Governo ao órgão consultivo da PGR, destacando também que esta lei é raramente aplicada devido às dificuldades na área da fiscalização e que, por isso, não é cumprida e que nem há jurisprudência sobre a matéria. Ainda assim, a resposta que será entregue pela PGR não é vinculativa. Sobre o assunto, Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, já se pronunciou. À margem de uma intervenção no acampamento organizado pelo partido, o bloquista disse à Lusa que o Governo deveria «refletir e agir em conformidade» com a resposta do referido órgão, que espera que chegue até ao final do mês.
Artur Neves não é o único caso (que pode ficar resolvido)
Apesar do nome do secretário de Estado estar no centro desta polémica em sequência do escândalo das golas inflamáveis (ver pág.27) há pelo menos mais três casos de membros do Governo envolvidos em cenários semelhantes, designadamente Pedro Nuno Santos, Graça Fonseca e Francisca Van Dunem. Porém, à exceção da ministra da Justiça, com a entrada em vigor da nova lei, todos ficam ilibados de qualquer problema de incompatibilidades. No caso do ministro das Infraestruturas e da Habitação a situação prende-se com o facto do seu pai, Américo Santos, ter duas empresas que fazem negócios com o Estado há 10 anos. A Optima – Fabrico de Máquinas de Corte e Gravação Lda e a Tecmacal – Equipamentos Industriais faturaram mais de um milhão de euros com estes negócios. O executivo assinalou a questão no seu registo de interesses à Assembleia da República (AR).
A ministra da Cultura, Graça Fonseca, também surge implicada em negócios com Estado. A responsável detém, juntamente com o pai, a mãe e o irmão, as empresas Joule-Projectos, Estudos e Coordenação e a Joule Internacional. Contudo, a executiva apenas tem uma quota de 8% em ambas as empresas, que também declarou no registo de interesses da AR. Contudo, os restantes familiares encontram-se numa situação de incumprimento da lei, pois detêm mais de 10%em ambas as sociedades. As referidas empresas têm cinco contratos firmados com o Estado, desde 2016, designadamente com a Câmara e Lisboa e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É de sublinhar que Graça Fonseca foi secretária de Estado Adjunta e da Modernização Administrativa até novembro de 2015 e vereadora na autarquia da capital de 2009 a 2015.
Por fim, Francisca Van Dunem vê o nome implicado em questões de incompatibilidade devido aos negócios do marido, Eduardo Paz Ferreira, que mantém contratos com o Ministério da Administração Pública também há pelo menos uma década. Segundo os registos disponíveis no Portal BASE, a sociedade de advogados Eduardo Paz Ferreira & Associados fez, desde 2009, 45 contratos com instituições como as Estradas de Portugal, a Autoridade Nacional de Comunicações ou a Santa Casa da Misericórdia. No total, o marido de Van Dunem celebrou negócios no valor de 1,451 milhões de euros com o Estado.
Governo já vai em 14 demissões
A discussão sobre a interpretação da lei de incompatibilidades e aplicação «literal» da mesma tornou-se um dos temas mais debatidos da atualidade. Jorge Miranda, ‘pai’ da Constituição portuguesa, defendeu em declarações ao i que a lei deve ser «rigorosamente aplicada», não havendo margem para desvios. João Paulo Batalha também considera que «há uma violação flagrante da lei» e que a demissão de Artur Neves era inevitável.
Do outro lado da barricada, Augusto Santos Silva saiu por duas vezes em defesa dos governantes afetados pela lei das incompatibilidades . O ministro dos Negócios Estrangeiros defendeu que o caso do secretário de Estado da Proteção Civil «mostra bem o absurdo de uma interpretação literal da lei que esquecesse o princípio constitucional da proporcionalidade».
O Governo de Costa já conta com 14 demissões. Das promessas de «bofetadas» que levaram João Soares a abandonar o cargo de ministro da Cultura às recentes golas infamáveis que fizeram cair o adjunto do Secretário de Estado da Proteção Civil, Francisco José Ferreira, houve seis grandes polémicas que levaram a demissões e que marcaram a atual governação (ver coluna ao lado).