O despudor atingiu um nível invulgar, revelador da soberba e da indiferença com que os poderes públicos encaram o país, privado de uma oposição capaz e com a maioria dos media ‘domesticados’ ou dependentes dos favores do Governo.
A quem duvide, basta reler o título principal da capa do Expresso do último sábado, onde consta que «85% dos contratos da Proteção Civil [são] feitos sem concurso», descrevendo depois, em jeito de enquadramento, que o «Estado alegou ‘urgência imperiosa’ para comprar bonés e canetas por ajuste direto».
Esta ‘urgência imperiosa’ foi invocada pela Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, no rescaldo dos trágicos incêndios de 2017, vinculando o atual presidente daquele organismo, Mourato Nunes.
Vale a pena exemplificar o conteúdo de uma encomenda «urgente» da Proteção Civil que implicou ajuste direto, por ultrapassar a fasquia máxima prevista na lei: 50 mil esferográficas, 30 mil lápis e 15 mil bonés…
Poderá imaginar-se a ‘euforia’ das populações martirizadas do interior, vítimas da floresta incendiada, ao receberem tão exóticos cuidados da Proteção Civil, a que se acrescentaram, já este ano, as famigeradas ‘golas’ inflamáveis.
O descritivo dos bens adquiridos, a pretexto da segurança das populações, deixa estarrecido qualquer cidadão, envolvendo, ao que foi noticiado, brindes, estudos de opinião e spots de TV e rádio, entre outras farturas.
Não faltou sequer, nas adjudicações feitas, o inevitável ‘estudo de mercado’ para perceber qual «a eficácia das campanhas de sensibilização da população». Um pacote completo…
Por um qualquer capricho do destino, entre as empresas contratadas pelo Estado em situações diversas figuram, inevitavelmente, socialistas ou familiares próximos. É uma malapata. Puxa-se pelo fio da meada e o novelo vem atrás…
Não é inédito. Recorde-se que, já em Abril deste ano, estalou uma inesperada polémica por causa de um lóbi apostado em ‘dinamizar’ os cemitérios, através de um protocolo entre a autarquia e uma tal Associação dos Amigos dos Cemitérios, cujos corpos sociais incluíam gente do PS, desde João Soares a familiares de Carlos César.
A história foi denunciada por um vereador do PSD, provocou embaraços, e obrigou Fernando Medina a recuar na ‘dinamização’, para descanso dos mortos…
O interesse das ‘famílias’ pelas negociatas com o Estado não é de geração recente. Por alguma razão, talvez com apreciável cinismo e exagero, a lei proíbe desde 1995 (sem que tenha sido contestada ou corrigida) os cônjuges, pais, filhos ou familiares até ao segundo grau de titulares de cargos políticos de fazerem contratos públicos com o Estado
Mas, quando a lei incomoda, por alguém se ter lembrado que existe, muda-se a lei.
Apanhado em falso, o Governo ‘encomendou’ a Augusto Santos Silva que fizesse a triste figura de defender que a lei não é para cumprir «literalmente», porque tal «seria um absurdo». E com esta atoarda, expôs-se a tutelar um disparate.
Note-se que a lei, à época, não precisou de ‘clarificação’ nem de pareceres da PGR para recolher o beneplácito de António Costa. Mas o histórico do poder socialista é farto em golpes de rins…
O Estado já era o grande empregador e engordou o ‘monstro’ com a ‘geringonça’. Fê-lo, aliás, com transversalidade, oferecendo oportunidades tanto à família de César como à de Francisco Louçã, entre outras.
Acrescentou-lhe, entretanto, a vocação para as aquisições de bens e serviços, recorrendo aos mais variados subterfúgios para contornar incompatibilidades ou a obrigação de lançar concursos públicos.
Faltava ainda a regionalização para aprofundar o quadro das sinecuras e do empolamento do Estado. Afastada de cena desde o referendo em 1998, que a chumbou com 60% dos votos, eis que reapareceu, pastoreada pela ‘comissão de sábios’ de João Cravinho.
Em perfeita sintonia com os atuais líderes do PS e PSD, a ‘comissão Cravinho’ quer promover outro referendo para esquartejar o país em regiões, a pretexto de que só com o novo ordenamento territorial se poderão resolver os problemas de desenvolvimento e melhorar a qualidade dos serviços públicos. A conversa fiada do costume.
Há duas décadas, a peregrina ideia de criar parlamentos regionais, com os respetivos deputados e gabinetes de apoio, agravando substancialmente a despesa, mereceu a convicta oposição de Marcelo Rebelo de Sousa. E não lhe faltaram os argumentos.
Agora, sub-repticiamente, percebe-se que António Costa confia que Marcelo não seja um estorvo, para alegria dos caciques e desgraça do país.
Se houver regionalização, assumida ou encapotada, serão mais uns milhares de empregos para servir de bodo às ‘famílias’. Mas que importa? Está (re)inventada outra ‘urgência imperiosa’…