Corria o ano de 1982. «Saddam Hussein, de 45 anos, pediu um conselho aos seus ministros. Que poderia ele fazer para acabar com a guerra com o Irão, que o próprio iniciara dois anos atrás?_A guerra foi desastrosa e provocou a morte de meio milhão de iraquianos e de um milhão de iranianos», conta Dean A. Haycock em Mentes Tirânicas – Perfis Psicológicos, Narcisismo e Ditadura (ed. Gradiva).
«Todos os ministros de Saddam sabiam que o líder do Irão, Aiatola Khomeini, não faria a paz enquanto Saddam estivesse no poder. O ministro da Saúde do Iraque cometeu o erro de pensar que Saddam queria um conselho sincero. Sugeriu que Saddam abandonasse a presidência o tempo suficiente para que as duas nações fizessem a paz. Saddam poderia então, sugeriu ingenuamente o ministro, retomar o controlo do país.
Saddam agradeceu ao ministro o conselho sincero. Pouco depois, ordenou a sua detenção. A mulher do ministro implorou a Saddam que lhe devolvesse o marido. O ditador assentiu. A polícia secreta de Saddam largou um grande saco preto à frente da casa dela. O saco continha o corpo desmembrado do ministro.
Os outros membros do governo concordaram que Saddam devia permanecer no poder».
Doutorado em Neurobiologia e autor de livros na área da ciência e da medicina, Dean A. Haycock tem tentado compreender o lado mais negro do ser humano. Em Mentes Tirânicas apresenta uma ‘galeria de monstros’, de Hitler a Estaline e de Mao a Kadhafi, e dá conta de como especialistas em saúde mental são usados pelos governos para traçar os perfis psicológicos de líderes estrangeiros, de forma a preparar negociações e prever, com algum grau de plausibilidade, as decisões que tomarão.
Em entrevista por email, o autor ensina a identificar um tirano e explica por que mecanismos se rege a sua mente.
É possível encontrar alguns traços comuns entre personalidades tão diferentes como Hitler, Estaline, Mao ou Idi Amin, uma espécie de fio condutor que os una a todas?
Há diferenças entre eles, evidentemente, mas também têm alguns traços semelhantes. Esses traços são frequentemente resumidos sob a designação de ‘narcisismo maligno’, que inclui uma combinação de perturbação de personalidade narcisista, elementos de psicopatia, paranoia e agressividade. O comportamento sádico também é comum, e era evidente em Estaline, Mao, Saddam e Idi Amin, por exemplo. Para chegarem ao topo dos respetivos partidos ou governos, demonstraram ainda maquiavelismo, um comportamento que se baseia na convicção de que as pessoas podem ser usadas, e até em estabelecer amizade com elas, quando podem ser úteis, e descartadas quando deixam de o ser. Envolve enganar e manipular os outros de modo a atingir objetivos pessoais sem ter em conta o efeito que este comportamento tenha naqueles que são usados.
O que distingue o narcisismo maligno (a que o psicanalista Erich Fromm chamou ‘a quintessência do mal’) de outras formas de narcisismo e o que o torna tão perigoso?
O narcisismo maligno inclui a perturbação narcísica da personalidade, agressividade e traços antissociais (ou psicopatas) e paranoides. Essas características existem na população em geral em quantidades variáveis. Todos nós temos algum narcisismo, a que poderíamos chamar ‘narcisismo quotidiano’. Algumas pessoas são mais narcisistas do que outras e ainda assim não têm quaisquer complicações no trabalho ou na vida privada. Quando, no entanto, esses traços são extremos, podem causar problemas sérios, particularmente numa pessoa agressiva e psicopata. Para dar um exemplo, desrespeitar uma pessoa narcisista maligna com poder pode facilmente resultar em perda de posição, prisão, tortura ou pior.
Mas não é um pouco inevitável que uma pessoa que procure o poder ou que ascenda a uma posição de liderança seja narcisista?
Não necessariamente. Durante a II Guerra Mundial, líderes militares como os generais Dwight Eisenhower e George C. Marshall precisavam de poder para cumprir as suas missões, mas os historiadores nunca os retrataram como indivíduos narcísicos. Existe seguramente um certo nível de narcisismo na maioria das pessoas que ambicionam altos cargos. Recordemos que traços psicológicos como o narcisismo e até mesmo a psicopatia podem existir em diferentes graus. Muitos políticos e pessoas da área do espetáculo têm uma maior incidência de traços narcísicos do que a generalidade da população. Mas só os indivíduos extremos é que constituem uma ameaça.
O narcisismo e a falta de empatia podem ser equiparados à atitude da criança que se comporta como um ‘reizinho’ e acredita que o mundo gira à sua volta?
Uma explicação para o comportamento narcísico extremo é, de facto, uma incapacidade para se desenvolver psicologicamente para lá dessa crença infantil de que se é a coisa mais importante que se possa imaginar.
É possível estabelecer ligações entre acontecimentos específicos na vida destes tiranos que estudou, certos traços da sua personalidade e decisões que tenham tomado enquanto estavam no poder?
Parece variar. Os psicólogos acreditam que a personalidade se estabiliza no final da adolescência. As personalidades de alguns tiranos foram afetadas pelas suas infâncias difíceis. Os pais de Hitler e de Estaline batiam-lhes. Mao, por outro lado, odiava o pai porque este queria que ele trabalhasse e ele queria ler e estudar. Kim Jong-un está noutra categoria. Como Assad, na Síria, Kim herdou o seu poder tirânico, como o filho de um chefe da máfia que seja promovido à frente de outro mafioso para assumir o controlo da organização criminosa. Quando era jovem, Idi Amin era um arruaceiro sádico que foi promovido pelo exército britânico quando a Grã-Bretanha governava o Uganda.
Sendo a infância tão importante na formação da personalidade, há alguma coisa que os pais possam fazer para evitar que os seus filhos adquiram esta tendência ditatorial?
Em casos raros não há nada que os pais possam fazer para impedir o desenvolvimento de traços antissociais nas crianças devido a circunstâncias que estão para lá do controlo dos pais. Hitler e Mao, por exemplo, tinham mães que os adoravam. Já os pais eram muito mais severos. A mãe de Estaline, tal como o pai, batia-lhe – mas também se preocupava com ele e conseguiu que o filho fosse sempre para boas escolas. Suspeito que estes futuros tiranos nasceram com uma predisposição genética para desenvolver traços narcísicos e psicopáticos, e que estas predisposições foram fortalecidas por infâncias duras e exposição a instabilidade social. O abuso físico ou psicológico está associado ao desenvolvimento de traços antissociais. É possível que um ambiente familiar estável, solidário e afetuoso possa diminuir as hipóteses de que alguém com predisposição genética para uma personalidade antissocial a desenvolva. Alguns estudos mostram que crianças com traços antissociais que recebem tratamento psicológico intensivo, apoio, estrutura e aconselhamento cometem menos crimes ao longo da vida do que crianças com características idênticas que não recebem esses cuidados.
Segundo o escritor suíço Robert Walser, «os ditadores, como vêm quase sempre das classes mais baixas, sabem muito bem o que o povo quer». Concorda com esta ideia?
Tendo a concordar. Eles não só sabem o que preocupa os seus concidadãos descontentes como sabem explorar esse descontentamento. Os muito ricos têm redes de suporte e menos necessidade de lutar para conquistar o respeito e a segurança. A sua riqueza, de certa forma, já lhes dá algum poder. Também têm menos motivação para mudar a sociedade, como Hitler, Estaline e Mao tinham devido às guerras e às sociedades instáveis que conheceram durante a juventude.
O psicanalista Walter C. Langer, que em 1943 fez o perfil psicológico de Hitler a pedido dos serviços secretos americanos, concluiu que Hitler sofria daquilo a que se chama ‘complexo do messias’. O führer alemão não é caso único de alguém, sob o pretexto de tentar salvar um país ou uma comunidade, o lança no abismo. Isso significa que é preferível estarmos quietos a tentarmos ajudar os outros?
Não. Há uma diferença enorme entre aquele que se autoproclama o eleito pelo destino ou Providência para salvar um país e que diz que só ele consegue resolver os problemas, e trabalhar para melhorar as condições de vida dos outros de uma forma abnegada, sem procurar poder ou prestígio pessoal.
Até agora falámos de Hitler, Estaline, Mao, Idi Amin… Este tipo de traços psicológicos que caracterizam o perfil do tirano é exclusivo dos homens?
A Rainha Maria I de Inglaterra e da Irlanda, conhecida entre os seus inimigos protestantes como Bloody Mary, Ranavalona I, Rainha de Madagáscar e outras recordam-nos que nem todos os tiranos ou ditadores ao longo da história foram homens. A psicopatia é mais comum entre os homens do que nas mulheres, mas não sei se é essa a razão para ter havido menos mulheres tiranas. Talvez isso se deva antes ao facto de historicamente as mulheres terem tido menos acesso a posições que lhes permitissem ascender ao poder.
Quando começou a interessar-se pela análise do perfil psicológico de líderes políticos – nomeadamente de ditadores?
Lembro-me de ler, quando tinha dez ou onze anos, sobre os crimes de Adolf Hitler. Não conseguia conceber como alguém podia pensar como ele pensava ou fazer as coisas que ele fez. Sabia que ele era um ser humano, mas na minha ingenuidade não conseguia conciliar o seu comportamento com o meu entendimento então limitado do que é ser-se humano. Essa dúvida permaneceu quando amadureci e descobri comportamentos idênticos por parte de homens como José Estaline, Mao Tsé-tung e outros tiranos. Quando comecei a escrever livros pude finalmente explorar esta questão, primeiro em Murderous Minds, Exploring the Criminal Psychopathic Brain: Neurological Imaging and the Manifestation of Evil [Mentes Assassinas, Explorando o Cérebro Criminoso Psicopático: Imagiologia Neurológica e a Manifestação do Mal] e agora em Mentes Tirânicas – Perfis Psicológicos, Narcisismo e Ditadura.
A aparência de um líder – por hipótese, o bigode de Hitler, o penteado de Trump ou a forma como Kim Jong-un se veste – pode dar-nos alguma indicação acerca do seu perfil psicológico?
Duvido que tenha um papel importante, embora a imagem seja importante para um político. O bigode de Hitler era parte da sua ‘imagem de marca’, uma característica distintiva que se associava a ele de imediato (embora outros alemães e austríacos o usassem antes dele). As tentativas desesperadas de Trump para esconder a sua calvície podem com grande grau de probabilidade ter origem no seu narcisismo. A aparência física, o ser considerado atraente é muito importante para Trump e outros indivíduos narcísicos. Por alguma razão, ele vê a calvície como um defeito. Talvez isso se deva à sua idade. Hoje, muitas estrelas de cinema tornaram a calvície mais do que aceitável mas quando Trump era novo não era assim. Kim Jong-un parece assumir uma aparência anafada, talvez para fazer lembrar o seu avô, o venerado primeiro líder da Coreia do Norte.
Donald Trump, que é referido muitas vezes no seu livro, partilha com os tiranos alguns dos traços de personalidade que enumerou?
Na minha opinião, e na de muitos prestadores de cuidados de saúde mental, o narcisismo é o traço psicológico primordial de Trump. Outros veem elementos de comportamento antissocial e vigarice. Alguns acham mesmo o seu narcisismo tão acentuado que o consideram uma ameaça devido ao seu poder como comandante supremo das forças armadas norte-americanas. Acredito que o seu narcisismo é tão dominante que deixa pouco espaço para o maquiavelismo que Estaline e Mao demonstraram à medida que ganharam poder e eliminaram os rivais na sua ascensão nas fileiras do partido comunista. Trump gasta mais tempo a vociferar contra os críticos do que, digamos, a construir alianças temporárias com os seus adversários para obter vantagem. As suas mais de 12 mil mentiras e falsas declarações documentadas parecem fazer parte da sua tendência para vigarizar, de modo a manter a imagem que vingou na sua base de apoiantes. É um mestre na manipulação dos media, em parte porque precisa de ter atenção para alimentar as suas enormes necessidades narcísicas, e porque isso serve o seu propósito de tranquilizar a sua base de apoiantes acríticos que acredita que ele é aquilo que diz ser: um macho-alfa e um bilionário que subiu a pulso [self-made billionaire].
E não é?
Na realidade, ele é filho de um pai rico e precisou do dinheiro do pai para construir o seu sucesso. Quanto à sua imagem de macho-alfa, é um reflexo da sua necessidade desesperada de reconhecimento e de atenção. O Dr. Allen Frances, o psiquiatra que ajudou a definir os critérios da Associação Americana de Psiquiatras para a perturbação narcísica da personalidade, concorda que Trump preenche todos os requisitos. No entanto, o Dr. Frances não acredita que Trump tenha uma perturbação psiquiátrica porque esses traços de personalidade, no seu caso, resultaram: é rico, tem fama, poder e mulheres. Trump, para o Dr. Frances, ‘não é louco, é mau’ [not mad, but bad]. Outros discordam vigorosamente. Argumentam que o facto de Trump conseguir ser bem sucedido – algo tornado possível pela sua riqueza – não significa que não tenha traços patológicos. Na minha opinião, ele é um vigarista que não terá problemas em mentir para se ‘vender’, um comportamento impulsionado pelo seu narcisismo avassalador.
Ao fim de três anos no poder, Trump ainda não provocou qualquer guerra ou qualquer outro problema realmente grave. Não é abusivo incluir o seu caso numa ‘galeria de monstros’ ao lado de responsáveis pela morte de milhões de pessoas como Hitler, Estaline, Mao e Idi Amin?
Declarei claramente no livro que Trump não era um fascista nem nada que se parecesse com os tiranos que discuti. Trump foi incluído porque um ponto-chave do livro era, como diz o subtítulo, a análise de perfis psicológicos. Enquanto escrevia, não podia ignorar o facto de psiquiatras, psicólogos e outras pessoas menos qualificadas estarem a fazer o perfil psicológico de Trump. Analisei os dois lados da controvérsia e questionei se Trump, que mostra tendências autoritárias, pode constituir uma ameaça caso esses prestadores de cuidados mentais estejam corretos. A razão para o fazer foi reforçada pelo facto perturbador de Trump usar técnicas usadas por tiranos para condenar a liberdade de imprensa (‘fake news’), identificar uma população de ‘Outros’ (imigrantes pobres, muçulmanos inocentes) que constitui uma ameaça imaginária para os seus apoiantes, rodear-se de ‘yes-men’, familiares complacentes e despedir qualquer um que o desafie ao ‘dizer a verdade ao poder’, e por fim, particularmente preocupante, por exprimir admiração e mostrar um comportamento obsequioso para com líderes autoritários estrangeiros (Putin, Kim Jong-un, Erdogan e Duterte).
Pode explicar-nos o que é a Goldwater Rule e por que há tantos profissionais da área da saúde mental que defendem que deve ser revista?
A Goldwater Rule é uma diretiva emitida pela Associação Americana de Psiquiatria que diz que não é correto ou ético diagnosticar uma figura pública a menos que o psiquiatra tenha examinado pessoalmente essa figura com a sua permissão. Muitos psiquiatras acreditam, no entanto, que, se estiverem convencidos de que uma figura pública representa uma ameaça, têm o dever de alertar a população. Por exemplo, um Presidente dos EUA instável, que tem acesso aos códigos de lançamento de armas nucleares. Esses profissionais de saúde mental notam que as consultas pessoais na verdade não são a melhor maneira de recolher informações sobre a saúde mental de uma pessoa, porque têm uma duração limitada e o paciente pode mentir, esconder fatos e enganar o médico. Mais importante para se chegar a um diagnóstico são as histórias médicas e pessoais, e as opiniões de parentes, amigos e conhecidos que passaram mais tempo com o indivíduo. Se, por exemplo, alguém mostrasse sinais claros de comportamento psicótico, vendo coisas e ouvindo coisas que não são reais, essa deveria ser uma razão válida para levantar a questão da saúde mental de uma figura pública, mesmo que nunca tivesse sido examinada por um psiquiatra. Outro exemplo seriam sinais claros de perturbação narcísica da personalidade com características psicopáticas, que nalguns casos podem conduzir a um comportamento destrutivo.
Na sua opinião, a democracia na América está sob ameaça?
Com a ajuda de outros, Trump poderia expandir as suas tendências autoritárias e tornar-se uma ameaça à democracia. Uma vez que o seu narcisismo é tão forte, as pessoas que trabalham com ele têm de estar sempre a alimentar-lhe o ego se não quiserem ser despedidas, e assim acabará por rodear-se de pessoas que explorarão as suas tendências autoritárias e compensarão a sua falta de capacidade de maquiavelismo.
As instituições americanas não são resilientes o suficiente para continuar a funcionar dentro da normalidade?
Devido ao uso que faz de estratégias geralmente usadas pelos tiranos, se Trump conquistar apoio suficiente no Congresso há um risco real para a democracia. A história mostra que mesmo as nações prósperas podem cair nas garras dos tiranos. A Alemanha já foi líder mundial em ciência, com grandes realizações também na literatura e na música, a Itália era conhecida pela sua arte e o Japão pela sua cultura e artes marciais altamente disciplinadas. Todos estes países foram transformados em estados autoritários nos quais os cidadãos perderam as liberdades. Por outro lado, os EUA enfrentaram ameaças autoritárias em várias ocasiões, como as propostas pelo Presidente John Adams e pelos senadores Joseph McCarthy e Huey Long. Os EUA sobreviveram às ameaças que esses homens colocaram, mas é sempre necessário estar pronto para defender a democracia dos muitos que estão dispostos a enfraquecê-la para seu próprio benefício. O elogio de Trump de assassinos como Putin, Kim Jong-un e outros é um sinal muito preocupante. E seria ingénuo ignorar os sinais que ele envia para o mundo, mesmo que seja improvável que provoque o colapso da democracia. As suas ameaças de não aceitar os resultados das eleições, caso seja derrotado, são extremamente preocupantes. E também possui um contingente de seguidores racistas e xenófobos.