O processo Fizz é desde os primeiros tempos um caso conduzido com pinças – que envolve a elite portuguesa e angolana. Enada mudou quando – depois da condenação do antigo procurador Orlando Figueira e do envio da parte do ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente para Angola – decidiu abrir-se uma nova linha de investigação que envolve o banqueiro luso-angolano Carlos Silva (ex-administrador do Millennium BCP) e o conhecido advogado Daniel Proença de Carvalho.
Neste momento, a única coisa que se sabe é que esta nova investigação pedida pela procuradora de julgamento e por uma queixa-crime de Orlando Figueira (condenado por corrupção) foi parar às mãos das mesmas procuradoras que investigaram o caso desde o início e que decidiram deixar o banqueiro e o conhecido advogado fora da acusação – ignoraram mesmo, como constata a procuradora de julgamento, algumas diligências, como a solicitação de informação bancária relativa a Carlos Silva.
Apesar da necessidade de voltar a investigar as pontas soltas deixadas pela investigação inicial, serão as mesmas magistradas a pegar no caso, até porque o diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Albano Pinto, já deixou claro que não há motivos para afastar Inês Bonina e Patrícia Barão – esta última sairá em janeiro, mas na sequência da não renovação da comissão de serviço. Até agora, o caso pouco tem avançado e a saída já conhecida poderá fazer com que abrande ainda mais.
O SOL questionou esta semana tanto a Procuradoria-Geral da República como oConselho Superior do Ministério Público tendo sido esclarecido, quanto às eventuais responsabilidades de terceiros não acusados no primeiro inquérito, que «as questões processuais são objeto de apreciação no âmbito dos respetivos processos, prevendo a lei mecanismos de reação relativamente a decisões proferidas».
Quanto à conduta das magistradas, a PGR afirmou que a mesma já foi analisada, tendo-se concluído que nada havia a apontar: «Informa-se, igualmente, que na sequência de participação apresentada pelo arguido da designada Operação Fizz, foi determinada pela Procuradora-Geral da República a realização de inquérito para apurar a eventual responsabilidade disciplinar das referidas magistradas. Por deliberação de 11 de novembro de 2019, o Conselho Superior do Ministério Público decidiu arquivar o inquérito disciplinar».
Acrescenta ainda a mesma fonte que o «CSMP considerou, em consonância com o entendimento do instrutor, que não resulta dos factos apurados que a atuação das magistradas configure a violação de qualquer dever funcional».
Também foi questionado pelo SOL o atual procurador-geral distrital de Lisboa, Amadeu Guerra, por ser ex-diretor do DCIAP, mas este não enviou qualquer resposta até à hora de fecho desta edição.
A intervenção de Carlos Silva
Para perceber como surge a nova investigação é primeiro necessário lembrar o que resultou do julgamento Fizz, que terminou no final do ano passado. O procurador OrlandoFigueira foi condenado pelo Tribunal Central Criminal de Lisboa a uma pena efetiva de seis anos e oito meses de prisão pelos crimes de corrupção, branqueamento de capitais, violação do segredo de justiça e falsificação. O tribunal condenou igualmente Paulo Blanco, advogado do Estado angolano, a quatro anos e quatro meses de pena suspensa. Já Armando Pires, empresário amigo de Manuel Vicente, foi absolvido. O processo envolvia também o ex-vice-presidente de Angola, cuja acusação acabou por ser transferida para a Justiça daquele país.
Segundo a acusação da operação Fizz, em troca do arquivamento de inquéritos – um que investigava Manuel Vicente, Álvaro Sobrinho, José Morais Júnior, Leopoldino do Nascimento, Manuel Rebelais e Vladimir Sergeenkov por branqueamento e o caso relativo à sociedade Portmill que também envolvia a elite angolana –, o ex-vice-presidente de Angola e antigo presidente da Sonangol teria pago a Orlando Figueira cerca de 760 mil euros e ainda oferecido emprego como assessor jurídico do Banco Privado Atlântico (BPA), em Angola.
Mas a procuradora que acompanhou o julgamento estranhou que as suas colegas que conduziram a investigação não tivessem investigado melhor o homem com quem realmente Orlando Figueira se reunira e com quem terá acertado a sua saída da magistratura: o banqueiro Carlos Silva, administrador do BPA, do BCP e è data presidente do BPA Europa, alguns cargos comuns com Vicente, que justificavam também a sua relação próxima.
Do que resultou do julgamento e no que se refere à participação de Carlos Silva a procurador Leonor Machado é clara na certidão que extraiu para dar origem à nova investigação: «Carlos Silva intervém na contratação de Orlando Figueira, tendo Paulo Blanco enviado para o seu conhecimento uma minuta do Contrato Promessa onde consta como entidade empregadora a ‘Finicapital’ empresa relacionada com o Grupo Atlântico». Uma intervenção que foi verificada no decorrer do julgamento, diz a magistrada. Além de que, «Carlos Silva seguiu de perto todas as diligências levadas a cabo por Paulo Blanco na condução da defesa de ManuelVicente no processo» da Portmill.
Os erros da 1.ª investigação
E a versão do banqueiro quando chamado a depor como testemunha não convenceu, refere o MP: «Carlos Silva prestou depoimento que não merece qualquer credibilidade pela inverosimilhança gritante do relatado. Com efeito, afirma que não abria os emails, que era a secretária que lhe abria a correspondência, selecionado os mais importantes e que consequentemente, não conhecia a minuta do contrato enviado por Paulo Blanco».
Recorde-se que além de um encontro em Luanda em 2011, OrlandoFigueira encontrou-se também com o banqueiro no hotel Ritz, em Lisboa, a 20 de maio do mesmo ano: «Paulo Blanco acompanhou Carlos Silva a uma diligência que teve lugar no DCIAP e depois da diligência Carlos Silva convidou Orlando Figueira e Paulo Blanco para almoçar». Nesse almoço o procurador terá mostrado a sua insatisfação com a magistratura e manifestado a sua disponível para ir para Angola trabalhar. É depois deste episódio que há o envio da minuta do contrato que o banqueiro diz nunca ter visto no seu email.
A procuradora de julgamento lembra ainda que num outro processo, de 2009, Orlando Figueira havia ordenado a quebra do sigilo bancário de Carlos Silva. Aliás, face ás investigações do antigo magistrado este ficou a conhecer a vida de Carlos Silva, situação que fazia com que também o banqueiro pudesse ter interesse em desviá-lo da magistratura: «A informação colhida por Figueira enquanto titular do processo era suficiente para que o mesmo, à laia de desabafo, afirmasse neste julgamento que se calhar Carlos Silva tinha medo que ele divulgasse os seus podres, que era conveniente que saísse da magistratura».
A colocação no BCP, lembra a procuradora, teve para além de Manuel Vicente «a intervenção de Carlos Silva, à data vice-presidente da instituição».
Mas, apesar de tudo isto, na investigação feita pelas colegas Inês Bonina e Patrícia Barão, refere Leonor Machado, «não foi solicitada informação bancária referente a Carlos Silva que permitisse apurar se existia relação entre as transferências efetuadas de e para as suas contas bancárias e os factos apurados no inquérito».
A intervenção de Proença
Como advogado de Carlos Silva, Daniel Proença de Carvalho por mais do que uma vez falou com orlando Figueira, nomeadamente para a revogação do contrato assinado com a Primagest. Segundo a procuradora Leonor Machado, «se Proença de carvalho tinha tomado conhecimento da existência de um processo em dezembro de 2015 e se, na sua versão, Orlando Figueira lhe teria dito que estava preocupado com coincidências entre as datas correspondentes a transferências bancárias da Primagest e despachos proferidos [enquanto procurador], tinha obrigação de perceber que se tratava de indiciação por corrupção passiva, podendo eventualmente ser responsabilizado pelo fabrico de contrato falso – acordo de revogação de contrato – e também pela intermediação na transferência de milhares de euros, após maio de 2015». Também não acredita a magistrada que Proença não tenha falado com Carlos Silva sobre o assunto, tanto mais que tinham uma relação de confiança pessoal e amizade, como relatou em tribunal a filha do advogado, Graça Proença de Carvalho.
Segundo a certidão extraída, é de todo inverosímil que Figueira não tenha contado a Proença de Carvalho a intervenção de Carlos Silva na elaboração dos contratos com a Primagest, tanto mais que foi no seguimento de conversa com Iglésias Soares para chegar à fala com Carlos Silva que acabou por ser recebido por Proença de Carvalho.
Mais: o advogado «Paulo Sá e Cunha exerceu o patrocínio [de Orlando Figueira] até 3 de novembro de 2017, estando contudo as despesas a cargo de Proença de Carvalho». O MP acrescenta: «Existe correspondência mantida entre Paulo Sá e Cunha e Figueira onde Paulo Sá e Cunha refere que a referência a Carlos Silva na contestação de Figueira seria suicidária e não afastaria a responsabilidade por crime de corrupção».
Recorde-se que, em julho, o procurador Orlando Figueira pediu o afastamento das procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão da nova investigação, justificando que o facto de não terem investigado no processo principal as pessoas que denunciou na sua queixa-crime, ou seja, Carlos Silva e Proença de Carvalho, bem como os bancos, eram «motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a sua objetividade e a imparcialidade».
Porém, em setembro, o diretor do DCIAP, Albano Pinto, decidiu não aceitar o pedido de recusa: «As magistradas visadas com o pedido de recusa, ao definirem o objeto da acusação, nomeadamente, com as condutas levadas a cabo pelo autor do mesmo pedido, deixando de fora as das pessoas que ele, só depois de ter sido condenado com base naquelas, veio a pedir que fossem investigadas, nada mais fizeram que exercer, com autonomia e, por isso, em conformidade com as regras da livre apreciação dos elementos resultantes das diligências».
Uma conclusão de Albano Pinto que não bate certo é que, apesar de só ter apresentado formalmente queixa-crime após condenação, desde antes do início do julgamento que Figueira responsabiliza Carlos Silva e diz que Manuel Vicente nada tem a ver com o caso. Logo num email junto ao processo entre Orlando Figueira e Paulo Sá e Cunha, como refere a procuradora de julgamento Leonor Machado, já Carlos Silva é apontado como o responsável: «Dois dos dez emails juntos têm a data de abril de 2017 e dão conta de que o arguido Figueira já na altura responsabilizava o dr. Carlos Silva na contestação pela sua prisão». É na resposta a esta decisão de abrir o jogo por parte do arguido que Sá e Cunha diz ser uma estratégia suicidária. A partir daí, Figueira passou a ser representado por uma advogada nomeada pelo Estado.