Cada um pressente o fim como uma ameaça às coisas que mais ama. Talvez por isso, George Steiner tenha descrito a morte como a ausência definitiva da palavra. «Morrer é deixar de conversar», escreveu ele em A Poesia do Pensamento. Para um homem que falava de si mesmo como um «mensageiro», que fez da admiração o seu génio, e se impôs como «um virtuoso do deslumbramento», é curioso que, no fim, tenha encarado a sua vastíssima obra como uma busca de consolação, sentindo que lhe faltava aquela superioridade escandalosa dos grandes artistas. Steiner dizia que o maior privilégio que se pode ter é ajudar a entregar o correio de um grande artista. Como refere Robert Boyers no prefácio à seleção de alguns dos 150 ensaios que publicou ao longo de mais de 30 anos na The New Yorker, Steiner encarna perfeitamente a distinção que Elias Canetti fez do verdadeiro escritor como «o escravo do seu tempo», alguém que «mete o nariz em todo o lado», que é insaciável, «incapaz de se intimidar com qualquer tarefa». E, no entanto, a sua modéstia chegava a ser desesperante, e repetiu tantas vezes que só poderia aspirar a uma eternidade em segunda mão. «Os grandes artistas dão-nos as cartas e dizem: ‘Agora, meu pequeno homem, dá-lhes seguimento’, e quem for um homenzinho atinado sabe em que caixa de correio as deve colocar, para que não se percam, desperdicem ou sejam mal interpretadas, e isto é um trabalho empolgante, acredite», disse numa entrevista. Seja como for, as reações à sua morte na segunda-feira, aos 90 anos, fizeram questão de contrariá-lo. As homenagens não redundaram nesses modos de coroação emocional hoje dispensados a quem quer que desapareça, como um ato de contrição antecipado, sabendo já que não se voltará a recordá-lo. Num tempo atropelado pelas suas convulsões e infinitas distrações, talvez a memória seja o Além que nos resta. «Os mortos estão permanentemente ao nosso alcance, implorando, suplicando a esmola da recordação», escreveu Steiner num dos seus ensaios. E é bem possível que este último grande herói da cultura Ocidental não tenha de suplicar como tantos grandes artistas, isto porque, com a sua «paciência infinita» e o seu «sentido de missão pedagógica e força bruta de inteligência crítica» (Boyers), Steiner conseguiu tornar-se o grande artista da recordação. Como um leitor absolutamente formidável, todas as competências que desenvolveu, seja como filósofo ou linguista, grande desbravador da literatura comparada, ensaísta ou ficcionista, são aquisições essenciais de um guia apaixonante cujos poderes se confundem com essa forma de integridade pessoal que nos confere a memória: um tesouro que se coleciona intimamente e se integra à consciência e ao imaginário e do qual não podemos ser desapossados. A entrevista que deu nos últimos anos da sua vida ao ensaísta italiano Nuccio Ordine, uma espécie de última confissão, para que fosse publicada no dia a seguir à sua morte, acaba reconhecendo o papel que teve a sua mãe. Eis as suas últimas palavras: «Quando eu era pequeno, para me fazer romper com os momentos de desespero, ela dizia-me que a dificuldade era um dom divino. Além de me ter livrado do serviço militar, o meu defeito obrigou-me a lutar para conseguir realizar o que para os outros é fácil, e entender, assim, que sem esforço não se obtém nada nesta vida. Isto deu-me forças em todo o tipo de circunstâncias. Uma das conquistas mais gratificantes da minha vida foi quando consegui apertar os atacadores dos sapatos pela primeira vez com a minha mão impedida.»
Nascido a 23 de abril de 1929 em Neuilly-sur-Seine, uma pequena cidade nos arredores de Paris, Steiner veio a descobrir que um dos médicos que ajudou no seu parto viajou mais tarde para os EUA para assassinar um senador. Este facto foi aproveitado como outros, entretecido numa pequena mitologia pessoal, acreditando desde logo que tinha chegado ao mundo sob o signo da fatalidade. O rapaz que cresceu a ouvir os discursos de Hitler na rádio, cedo se deu conta da sua condição como membro de uma comunidade execrada e perseguida ao longo da História. Disse muitas vezes que a morte esteve com ele desde muito cedo, como um amigo dos tempos de escola com quem foi cultivando, ao longo da vida, uma estranha intimidade. Contava que só ele e outro colega dos muitos judeus que frequentavam a sua escola em Paris sobreviveram aos campos de extermínio nazis. E na entrevista que deu ao Expresso em junho de 2017, Luciana Leiderfarb perguntou-lhe como era viver como sobrevivente… «É complicado», respondeu. «Significa ter vergonha, perguntar-se: ‘porquê eu?’, quando os outros morreram. E, por outro lado, significa ter ao longo da vida a obrigação de nunca esquecer».
Uns anos antes do seu nascimento, a família havia abandonado a Áustria para escapar à crescente onde de antissemitismo propagada por Karl Lueger, autarca de Viena e, segundo Hitler, «o mais honrado alemão de todos os tempos». Já em plena guerra, o pai de Steiner, um advogado que trabalhava para a banca e tinha relações muito influentes, «estava em Nova Iorque e mandou-nos chamar, porque teve uma informação, na qual acreditou, de que a França seria ocupada em poucos meses», diz Steiner, adiantando: «Saímos de Génova no último navio americano para Nova Iorque». Sendo originário de uma povoação checa que viria a ser dizimada pelos nazis, o pai de Steiner transmitiu-lhe a importância da cultura como algo de decisivo, não por um mero efeito de sofisticação intelectual mas como uma forma de consciência vigilante. Assim, ao mesmo tempo que lia com ele os clássicos, desde cedo George aprendeu a falar alemão, francês, inglês e italiano. E já em Nova Iorque, com a guerra como um perturbador ruído de fundo, chegando-lhe notícias de como a Europa que deixara para trás se tornava o cenário de uma devastação inimaginável, no Liceu Francês de Manhattan, Steiner lia Racine e Shakespeare, aprendia latim e grego e com aquele sentido de urgência de alguém para quem as grandes obras do espírito, não só conferem relevo à memória, como exprimem o futuro – uma ideia de esperança.
Enquanto crítico literário ou professor, mais do que um fiel mensageiro, Steiner provou ser um interlocutor prodigioso, e isto advém-lhe de ter construído uma fé sem Deus, uma crença que se ergue depois da Sua morte, em que o homem, no limite das suas forças, tem a audácia de rivalizar com Ele, com o ‘outro artesão’, como Picasso se referiu a Deus. Assim, as grandes obras resultam da ambição desmedida de firmar um compêndio do universo. Os grandes artistas «criam um contramundo, tão completo, tão marcado pelas impressões digitais do seu artesão, desta segunda mão, que esse mundo clama, golpeia até penetrar na nossa alma». Steiner acrescenta que, face a isto, a nós nos cumpre dar eco, «construir um santuário memorioso, descobrindo nele uma habitação para as nossas inquietações e necessidades mais íntimas».
No seu primeiro livro – Tolstoi ou Dostoievsky (1959) – Steiner diz-nos que «o homem, como Malraux afirma, em As Vozes do Silêncio, está encurralado entre a finitude da condição humana e o infinito das estrelas. Só através dos seus monumentos da razão e da criação artística é que ele pode reivindicar a dignidade transcendente. Mas, ao fazê-lo, ele tanto imita como rivaliza com os poderes formadores da Divindade. Assim, há no coração do processo criativo um paradoxo religioso. Nenhum homem é mais completamente forjado à imagem de Deus ou mais inevitavelmente Seu desafiador do que o poeta».
E se o homem é esse animal de natureza inconformada, roçando-se no impossível, a arte engloba as manifestações que exprimem essa insatisfação, a busca desesperada por uma visão que nasce na tensão entre o desejo e os limites entre os quais se vê trancado. Daí, nasce esse pacto com a linguagem, essa razão que se combina e afina produzindo uma música dos sentidos, passando-nos os apontamentos de uma «aritmética secreta», que nos permite ir hasteando cada vez mais longe a bandeira do possível. Mas as palavras são essenciais a esta exploração. E Steiner diz-nos que, «ainda que ingenuamente figurativos e não examinados, os substantivos que ligamos a conceitos como a vida e a morte, o eu e o outro, são engendrados pelas palavras». E adianta ainda: «É possível amar em silêncio, mas só até certo ponto». E há depois uma frase de Karl Kraus que chamou a atenção de Steiner, e que ficou como um sublinhado pregnante entre as suas notas: «A língua é a única quimera cujo poder ilusório é infinito, cuja natureza inesgotável impede o empobrecimento da vida».
Uma das noções mais polémicas do pensamento de Steiner, uma das que mais dissabores lhe trouxe, prende-se com o seu anti-sionismo. C.P. Snow elogiou-o certa vez notando que a sua escrita parecia muitas vezes «um soco na boca do vento dominante», mas o que impressiona mais na postura intelectual de Steiner não é apenas a mordacidade e as posições desafiadoras para que a sua lucidez o empurra, mas a profunda seriedade dos seus argumentos. Se há alturas – normalmente quando nada de muito significativo está em causa – em que a sua esmagadora erudição não resiste a intrometer-se de forma um tanto caprichosa no raciocínio, e a meio de um ensaio podemos ver Steiner ceder à tentação de instalar um museu provisório com alguns dos monumentos que mais o encantam, o certo é que nunca anda muito longe de algum nexo moral, e por mais que se deixe deslumbrar com este ou aquele passe de mágica, não deixa de investir e direcionar o verdadeiro temporal que o seu génio é capaz de conjurar quando se trata de fazer vingar as mais duras consequências que extrai da sua «imaginação moral».
Temos um exemplo disto no ensaio que dedicou na New Yorker a Céline, em que não lhe perdoou os desabafos antissemíticos, mesmo se concede que estes podem ser lidos «como paródicos, como uma espécie de brincadeira que se descontrolou» – «uma parvoíce perturbada, a travessura de uma criança vândala». Assim, condena-o a ficar acorrentado a uma genialidade abominável e, por isso, improcedente. A sublime vingança de Steiner sobre Céline surge num apontamento a propósito dos seus odiosos panfletos ‘Bagatelles pour un massacre’ e ‘L’École des cadavres’, em que, reconhecendo-lhes o seu virtuosismo, na verdade os destrói: «Aquelas várias centenas de páginas são, física e mentalmente, quase impossíveis de ler. No entanto, à medida que nos vamos esforçando por folhear esta ou aquela passagem, deparamo-nos com momentos de genialidade estilística e de exaltação verbal que nos atingem como fragmentos bruscos de luz vindos de o brilho de uma latrina (Coleridge mencionou a breve cintilação da luz sobre as estrelas no seu bacio cheio até cima)».
Steiner pode ser acusado de algumas fraquezas, mas nunca de ter deixado de levar até às últimas consequências os seus juízos. Num livro de entrevistas concedidas a Laure Adler – Un Long Samedi (2014) -, diz ser «um absoluto snob a nível ético». A mais alta nobreza é ter pertencido a «um povo que nunca humilhou outro», defende, e vinca: «Sou arrogante no que respeita à ética; ao transformarem-se num povo como os outros, os judeus desfizeram-se da nobreza que eu lhes atribuía». Esta posição que exige daqueles que foram alvo do mais atroz crime do século XX que vistam o luto, carreguem o fardo e se devotem a alertar contra o que há de pior na nossa natureza, é um dos mais corajosos e iluminadores argumentos intelectuais que se produziram na sequência do Holocausto, e com ele Steiner desferiu o mais rude de todos os golpes contra o Estado de Israel, um argumento que irá assombrá-lo até que aquela Nação se desfigure de tal modo que o último resquício de utopia soe como uma gargalhada negra. No mais autobiográfico dos seus livros – Errata: Revisões de Uma Vida (2009) -, lê-se isto: «Parece-me que seria algo escandaloso […] se os milénios de revelações, de sacrifícios, se a agonia de Abraão e Isaac, desde o monte Moriah a Auschwitz, tivesse como última consequência a fundação de um Estado-nação, armado até aos dentes, uma terra de especulação financeira e de mafiosos, como todas as outras terras. Para o judeu, a ‘normalidade’ seria apenas um outro modo de desaparecimento».