A Justiça está paralisada desde a declaração do estado de emergência – mesmo as atividades que são possíveis de se realizar à distância. É pelo menos a posição de alguns agentes judiciais. O SOL sabe que a situação está a criar mal-estar junto de vários magistrados, tendo até já sido feitas propostas para contornar esta situação ao gabinete de crise da Procuradoria-Geral da República que ainda não tiveram qualquer efeito prático.
«Preocupou-se em reduzir ao máximo a atividade dos tribunais mas o que pode ser aparentemente benigno pode acabar por redundar numa situação complicada ao nível da segurança dos cidadãos e da própria ação do sistema formal de justiça», explica ao SOL uma fonte conhecedora de todo o processo, que preferiu não ser identificada, acrescentando: «O pior exemplo de todos tem a ver com o prazo máximo das medidas de coação. Porque esses prazos não se podem suspender por motivos constitucionais: têm um prazo máximo que é o que está estabelecido na lei independentemente da suspensão de outros prazos que possa existir e portanto o que pretendemos é que não haja a suspensão dos prazos dos processos urgentes, porque neste momento a generalidade da atividade dos tribunais é passível de se realizar à distância, mesmo diligências, porque é possível por meios telemáticos».
Mas, para isso, diz, é preciso uma clarificação, ou seja, «diplomas legislativos claros que permitam que os tribunais de uma vez por todas saibam qual é o âmbito da sua atividade durante este período» e que haja «vontade».
Como exemplo diversas fontes explicam que os debates instrutórios e os julgamentos são possíveis de fazer por vários meios: mesmo por Skype e outas plataformas que estão disponíveis na net gratuitamente. «Na primeira instância não se está a fazer praticamente nada. E depois temos um outro problema: os funcionários não têm meios para trabalhar à distância. Há um absentismo crescente, como é normal as pessoas estão assustadas e cada vez há menos funcionários disponíveis presencialmente. E há funcionários que reclamam que se faça turnos por questões de saúde pública e tentar fazer escalas de quinzena a quinzena. Se isso não acontecer vamos ter uma paralisação total da atividade dos tribunais», diz ao SOL uma fonte do Ministério Público, dando alguns exemplos.
Presos têm medo de ir a tribunal
«Há presos preventivos em que os advogados se atravessam com requerimentos no sentido de os seus clientes não estarem disponíveis para irem aos tribunais porque têm medo da contaminação. Precisamos de mobilizar os meios de teleconferência nos serviços prisionais e isso já devia de estar feito e apresentado à direção dos serviços prisionais. Isso resolveria mais uma parcela de problemas», afirma.
E antecipando um cenário em que muitos presos venham a pedir para sair por falta de condições nas prisões – recorde a sobrelotação de muitos estabelecimentos – há até magistrados do MP a propor algumas soluções para o período de estado de emergência. «As domiciliárias poderão ser uma das vias para resolver o problema, não será pelos prazos porque são iguais aos dos preventivos, mas por exemplo nas domiciliárias pode-se fazer uma videoconferência por exemplo ou haver uma libertação de arguidas se houver condições para que isso aconteça até porque vigora o estado de emergência que impõe o recolhimento obrigatório. As fronteiras estão fechadas. O MP deve-se antecipar sob a pena de vir a ser confrontado com pedidos em barda a pedir a libertação», conta um deles ao SOL, esclarecendo que o argumento da sobrelotação que possa vir a ser argumentada por presos «não é desprovida de sentido»: «O MP deve antecipar-se alterando as medidas de coação»
MP defende antecipação às defesas
«Se o requerimento for, pura e simplesmente, apresentado pelo defensor muito provavelmente os juízes o que vão fazer é também despachar sem grande ponderação. As defesas preparam-se para propor a libertação pura e simples», refere este magistrado, lembrando que se poderá entender que está diminuído o perigo de fuga devido ao controlo de fronteiras e à redução do tráfego aéreo: «Tudo isto é rebatível, mas é mais fácil sendo nós a reagir e deve haver uma proclamação superior que possa determinar o que se deve fazer».
A esse nível há já quem esteja a aplicar medidas de coação que não passem por apresentações periódicas na esquadra até para evitar contágios, mas sem que haja uma orientação nacional clara: «Há um gabinete de crise na PGR que ainda não lançou uma única orientação ao MP que localmente vai gerindo o quotidiano sem qualquer determinação superior. São as procuradorias distritais que têm feito reuniões diárias de coordenação mas apenas para tentar resolver problemas imediatos. Algumas já determinaram internamente que todos os titulares dos inquéritos reequacionam essa medida de coação (de apresentação obrigatória) sugerindo a sua extinção porque está em causa a saúde pública. Isto pode ser substituído por meios telemáticos», explica uma fonte que tem acompanhado algumas destas reuniões.
Neste momento, dizem algumas fontes, aguarda-se uma determinação superior que possa uniformizar os procedimentos.
Verão: altura de recuperar o tempo perdido na Justiça?
Ao SOL, o gabinete da ministra Francisca Van Dunem esclareceu que «a suspensão de prazos processuais e procedimentais cessará com a declaração do temo da situação excecional a fixar por Decreto-Lei (artigo 7.º nº 2)», confirmando que «a lei já prevê a prática de atos processuais e procedimentais por recursos a meios tecnológicos (artigo 7.º n.º 8)».
Já quanto à alteração das medidas de coação, o Ministério da Justiça diz que o assunto «é da exclusiva competência dos tribunais».
No que toca à possibilidade de o período de verão ser usado para recuperar os atrasos causados pela pandemia, a tutela esclarece que «a lei prevê que, cessada a situação de excecionalidade a Assembleia da República proceda à adaptação dos períodos de férias judiciais a vigorar em 2020 (artigo 7. º nº 11)». Para tal, acrescenta a mesma fonte, «a Assembleia da República procederá à audição de todos os interessados».
Questionado ainda sobre se pondera estudar uma forma para reduzir o impacto desta pandemia sobretudo em processos complexos, vulgarmente designados megaprocessos, o Ministério responde que «qualquer alteração à lei de processo penal é de aplicação imediata aos processos pendentes, exceto se importar um agravamento da posição processual de qualquer interveniente, designadamente do arguido». O gabinete de Francisca Van Dunem remeteu todas as outras explicações para a Lei nº 1-A/2020, relativo às medidas excecionais e temporárias tomadas para fazer face ao covid-19.
Questionada pelo SOL, a Procuradoria-geral da República esclareceu ontem que “as orientações para o Ministério Público, atenta a atual crise pandémica e no contexto do estado de emergência”, foram “objeto de reunião extraordinária do Conselho Superior do Ministério Público” que se realizou ontem.
“A matéria tem sido objeto de acompanhamento pela Procuradoria-Geral da República e foi alvo de um Plano de Contingência que continha orientações para que os Procuradores-Gerais Regionais elaborassem planos de aplicação regional. Em consonância, os Procuradores-Gerais Regionais e, bem assim, as Procuradorias de Comarca emitiram despachos concretizadores.
O Ministério Público encontra-se, no desempenho das respetivas atribuições, em articulação com os Órgãos de Policia Criminal e demais entidades que são suas interlocutoras” concluiu ainda o gabinete de Lucília Gago.