Texto de Teresa Carvalho
Morreu no último sábado, em Los Angeles, na Califórnia, mal acabara de completar 100 anos, aquela que esteve sempre ao lado de Jorge de Sena – do lado de Sena, o pior dos lados, pois não há pior que a grandeza e a dignidade num rectângulo em que vigorava a medida anã. Tudo o que não alinhasse por esta bitola era rebarba, excrescência, coisa a aplanar, excesso a remover. O grito grosso, quantas vezes de uma rudeza sarcástica, quase mugido, como se fora dor da carne ferida, era barulho a abafar num país de queixas soluçadas, dores emudecidas e amantes infelizes. Os esgares, os arrancos, as modulações inconcebíveis violavam o livro lusitano das condutas. E a inteligência superior, que a Jorge de Sena começaram por elogiar como quem acusa, era recebida como uma desfeita, uma afronta. A segurança penetrante, a observação feroz, o comentário azedo e frontal, a meditação severa pouco podiam contra a inteligência fingida e os velhos catataus da empáfia e da erudição inútil.
1940, Porto, Faculdade de Farmácia, bailarico de recepção a caloiros. Mécia de Freitas Lopes, a irmã mais nova do professor e historiador da literatura Óscar Lopes, quebra o costume de não dançar com desconhecidos e fá-lo delicadamente saber ao recém-engenheiro civil, que não se fica: sendo de Lisboa, não conhecendo ninguém no Porto, como poderia dançar senão com uma desconhecida? Não era propriamente o dançarino de Brunei: sentaram-se a conversar, longe da vacuidade comum. Tornaram à fala, nos começos do ano seguinte, no intervalo de um recital de João Villaret. Ela lamentou a não recitação de «A tocadora de harpa», de Fernando Pessoa. Ele ficou estarrecido: «Conhece Pessoa?!». Deram o nó em 1949, depois de um longo noivado. Tiveram 6 casas, correspondendo a 5 cidades e 3 países; 9 filhos.
Com Jorge de Sena Mécia formou um dos pares mais notáveis da cultura portuguesa. Se Penélope celebrou com Ulisses o mais famoso contrato de amor da mitologia, Mécia de Sena, antes mesmo do casamento – estava Sena no limiar da obra, e num momento em que se aproximava o aparecimento de «Coroa da Terra» (1947), antecipava especiais cláusulas de um amor que nunca esfriou: «eu teria um desgosto enorme se o teu entusiasmo pela tua produção esmorecesse ou me passasses a mim para plano mais primário, nunca me sentiria bem porque era como se estivesse praticando um roubo, vá lá o termo, à posteridade».
Nunca foi Mécia mulher para ficar bordando à espera numa Ítaca-piolheira. Quando em 1959, na sequência de uma acção revolucionária mal sucedida, o marido parte para o Brasil, dando início a um longo exílio, começa por revelar, além do seu habitual sentido crítico, apreensões várias: “Meu amor, não creio que o Brasil nos sirva. Está demasiado perto e tem demasiados contactos com esta piolheira. Há-de ter sempre a marca indelével deste povo irremediável que primeiro, lhe pisou descalço, o solo. (…)». A mudança começa a desenhar-se em papel de carta, esse lugar do encontro a dois na distância: «Meu amor, isto aqui é atoleiro por todos os lados e ainda por cima é pobre, ao nível dos dez tostões que é a coisa miserável, desconsoladora. Não haverá no mundo uma Parságada qualquer para onde vamos? Meu amor, o mundo é nojento e a humanidade está ao nível do mesmo. E a vida é tão breve e tão poucas as coisas que nos dá meu querido. É-me insuportável estar sem ti […]». Empenha-se então Mécia nos preparativos da viagem que de novo os reuniria, o mesmo é dizer manobrar a emperrante maquinaria burocrática, nutrida a papéis, pastas de cartolina, súbitas impossibilidades, como a que quase travou a sua ida por ter a fiscalização concluído que lhe faltavam os meios, e autorizações de saída para o norte de África e Brasil estavam apenas ao alcance de “prostitutas ricas”. Mécia, como um Ulisses de saias, revela desembaraço e inesgotável capacidade de recursos de salvação. E isto é mais de assinalar quando sabemos o número de telémacos a transportar: sete, já então, três praticamente de colo – uma «familória», dirá. Dificuldades nunca faltaram. Nem forma de as contornar. Conta Mécia que «uma vez conversava-se amenamente em grupo. Contávamos de dificuldades e também deste álbum que compráramos daquela vez que fôramos não sei onde… Um dos interlocutores (americano, é bem de ver) comentou, numa pausa: «Mas como é que vocês, com tantas dificuldades, podiam fazer isso?». Prontamente lhe respondi: «Porque, graças a Deus, somos loucos!»
Mulher completa e complexa, recusou ser o lugar resignado de espera para ser a dinâmica, estimulante, enérgica companheira de uma dificílima aventura intelectual e moral. Lado a Lado. Depois da morte de Jorge Sena, em Junho de 1978, lutou contra o desinteresse e o oportunismo de quem fazia o possível para reduzir tudo a uma mesma escala. Eram muitos os inéditos deixados, a começar por «Sinais de Fogo», considerado um dos maiores romances do século XX, mas também livros de poemas, teatro, traduções de poesia, colectâneas de contos, extensos conjuntos de volumes de ensaios. Em escassos 10 anos, o seu imparável ritmo de trabalho, permite-lhe publicar e reeditar mais de três dezenas de livros. Transformou o número 939 da Randolph Road, em Santa Barbara, para onde se mudou com o marido em 1970, num verdadeiro centro de investigação e edição da obra de Jorge de Sena, que, ainda por cima – e como sublinhou Jorge Fazenda Lourenço, em 1988 desafiado por Mécia de Sena a ir trabalhar no espólio do marido – oferecia pensão completa a quem necessitasse.
Dactilografou até à exaustão – papelada solta, cartas inúmeras – separou, classificou, organizou, acautelou acidentes e extravios, anotou, prefaciou, viu e reviu, sacrificou pestanas, persistiu, pressionou, concretizou, divulgou uma obra maior. Mécia de Sena, essa operária das letras, exausta de horas extra e de décadas de trabalho criterioso, era uma máquina de produzir estímulo e de fazer perdurar. Sem o seu esplêndido contributo, a sua longa e apaixonada dedicação, o seu esforço e a sua constância, a obra de Sena estaria hoje rodeada de espesso silêncio. A energia desta mulher, que entretanto a idade afastara já das funções de guardiã literária de Sena, parecia não se esgotar. Chegou a comentar-se, aliás, que era ela que escrevia boa parte das coisas de Sena. Com desassombro e aquele fiozinho de ironia que cultivava, Mécia «agradecia muito que tão alto conceito fizessem de mim. Eu tinha um filho cada ano, ensinava horas e horas em colégios, eu dactilografava tudo para o Jorge e não perdia concerto nem conferência que ele desse… Um de nós tinha que ser génio, se lhe aprazia que fosse eu…, problema deles! Ficava muito grata».
Apetece dizer que Mécia de Sena, que tinha o canudo em Letras que a Sena sempre foi apontado como falta inexpiável, foi muito mais que a esposa zelosa, o «anjo eficaz» de Jorge de Sena ou a «viúva prodigiosa». Foi a outra metade do génio. Outro dos seus méritos é ter sido aquele raro fermento sem o qual é de supor que a obra de Sena não teria crescido até ao altíssimo ponto que conhecemos. Baptista Bastos sublinhou, numa crónica, o facto de Mécia ter proporcionado ao marido tudo quanto ele necessitava para produzir uma obra absolutamente invulgar: «Cuidou do silêncio numa casa cheia de filhos; defendeu a privacidade de um escritor que sabia, como poucos, conversar com a eternidade das coisas; organizou a economia doméstica de um lar onde a abundância nunca fora sobejo; evitou o atrito, as mortificantes quezílias quotidianas; andou com ele de um para outro lado, sofrendo as vicissitudes de uma vida invulgarmente desafiadora. Mécia de Sena foi, sempre; e esteve, sempre.». E talvez valha a pena lembrar que estar sempre com as duas pessoas que Sena, numa carta-desabafo datada de 1947, logo diz à futura mulher ser, não seria fácil: “uma amável, dedicada, inteligente, etc., e outra que tem vontade de morder, dizer e fazer asneiras, deitar bombas, etc.» Nunca se cansou de amar o menino travesso e o homem colérico, e de apreciar as suas qualidades. Num dos seus Flashes, um conjunto de fragmentos literários que recuperam 30 anos de existência comum e continuam substancialmente inéditos, escreve Mécia de Sena: «Uma das qualidades que eu mais apreciava no Jorge era a sua capacidade de admirar: um verso, uma paisagem, um torneado, uma luz, um rosto ou um corpo, uma passagem musical, um doce, uma palavra em qualquer língua… tudo podia ser «belo» ou «tinha» ou «era» de «uma beleza» «extraordinária» ou «rara» ou mesmo só «alguma». Impossível exemplificar… para a admiração justificada tinhas uma disponibilidade total.» Assim foi Mécia: disponibilidade total para uma justificada admiração. Longa vida, agora terminada, para tão longo amor.