O “rei de Israel” sentou-se no banco dos réus

No coração da defesa de Netanyahu, acusado de corrupção, está o argumento de que a troca de favores faz parte da política. Assim como as suas tentativas de controlar a imprensa.

Chegou o dia que Benjamin Netanyahu tanto temia. O primeiro-ministro israelita fez tudo para o evitar, disputando três eleições inconclusivas, tentando arrancar uma maioria que lhe permitisse governar – e lhe oferecesse imunidade parlamentar. Netanyahu, também conhecido como “Bibi”, conseguiu agarrar-se ao poder, contra todas as expectativas, negociando com o seu grande rival, Benny Gantz, mas a imunidade nunca chegou. Este domingo, o antigo comando israelita, que ganhou fama por arriscadas incursões atrás das linhas inimigas, teve de sentar-se no banco dos réus, acusado de ser subornado com champanhe rosé, caixas de charutos cubanos, joalharia para a mulher e férias pagas para o filho, num valor equivalente a mais de 250 mil euros – ao mesmo tempo que estaria a favorecer donos de jornais, a troco de cobertura mediática positiva.

A tensão não podia ser mais elevada. No tribunal distrital de Jerusalém, todos os outros casos foram suspensos durante a tarde, para que Bibi se tornasse o primeiro chefe de Executivo israelita em funções a enfrentar acusações judiciais. Lá fora, protestavam centenas dos seus apoiantes, furiosos – ouviram-se cânticos de “Bibi, rei de Israel”, entre gritos de “messias, messias”, segundo o Haaretz. Do outro lado da cidade, à frente da residência oficial do primeiro-ministro, manifestou-se o movimento Bandeira Negra, que que acusa Netanyahu e o seu partido, o Likud, de sabotarem a democracia israelita.

Enquanto entrava no tribunal pela porta de trás, rodeado pelos seus leais ministros, Bibi disparou para todos os lados: apelidou as acusações de “ridículas”, culpou os media “de esquerda” e acusou a investigação de estar “inquinada desde o primeiro dia”. Parecia bem consciente que, mal se sentasse no banco dos réus, não havia volta a dar.

“Ele sabe que será uma das primeiras fotos no seu perfil na Wikipedia. Ele sabe que essa imagem ficará gravada na consciência de milhões de pessoas, se não mais”, escreveu o colunista Ben Caspit, no Maariv, a semana passada. Talvez por isso se tenha recusado a sentar-se no banco dos réus até que os repórteres saíssem da sala.

 

Hollywood e champanhe O primeiro-ministro israelita é acusado de corrupção em três casos diferentes. Já fazem manchetes há tanto tempo, são tão familiares aos israelitas, que são conhecidos apenas pelos seus números: 1000, 2000 e 4000. Em todos, há um tema comum: o desejo de Netanyahu, o chefe de Executivo há mais tempo em funções na história de Israel, de controlar a imprensa – não surpreende que, entre 2014 e 2017, tenha acumulado o posto de primeiro-ministro com o de ministro das Comunicações, com tutela das rádios e televisões.

Terá sido esse um dos motivos da aproximação de Netanyahu ao multimilionário australiano James Packer, em tempos noivo de Mariah Carrey – queria convencê-lo a comprar meios de comunicação israelitas no valor de centenas de milhões de dólares, para torná-los numa espécie de Israel Hayom, um diário visto como porta-voz de Bibi.

A apresentação foi feita por Arnold Milchan, ex-agente da Mossad e produtor de Hollywood, conhecido por êxitos como o Fight Club ou The Revenant. Na altura, Milchan já enviava recorrentemente bens de luxo ao primeiro-ministro, pedidos através de palavras código e entregues em sacos pretos selados – viria a pedir ajuda a Packer para cobrir o custo dos presentes.

Um deles terá sido uma jóia, com um valor superior a 2500 euros, destinada à mulher de Netanyahu, Sara, descrita como uma espécie de Maria Antonieta pela imprensa israelita. Quando Milchan hesitou, terá recebido uma chamada do primeiro-ministro a pressioná-lo.

“Subitamente, vês que te estava a mentir ao dizer que tudo era permitido, que tinha verificado com o procurador-geral e com amigos”, contou Milchan à polícia, na embaixada israelita em Londres, citado pelo Haaretz. Não que o empresário tenha ficado de mãos à abanar, atenção: foi beneficiado pela apelidada “lei Milchan”, que dava cortes fiscais a israelitas regressados do estrangeiro, e terá até participado na escolha do diretor da Mossad.

 

Mão na imprensa Já o caso 2000 envolve Arnon Mozes, dono de um dos principais jornais israelitas, o Yedioth Ahronoth, que incomodava o primeiro-ministro. “Bibi considerava Mozes um inimigo maior que o Estado Islâmico”, disse Milchan, quando interrogado. “Talvez esteja a exagerar um pouco”, corrigiu-se.

O desagrado de Netanyahu não era segredo. “Todos os dias tenho alguém que me está a matar”, queixou-se Bibi, ao telefone, a Mozes. Como tal, o primeiro-ministro propôs diminuir a circulação do Israel Hayom – propriedade do seu bom amigo Sheldon Adelson – a troco de que o Yedioth Ahronoth diminuísse a sua hostilidade “de 9,5 para 7,5”, lê-se na transcrição da chamada, a que o Channel 2 teve acesso. Hoje, Bibi diz que era bluff, não tinha intenção de cumprir a promessa, logo não é crime.

Talvez a acusação mais grave, considerada a mais fácil de provar, seja o caso 4000. Envolve Shaul Elovitch, dono da Bezeq, principal operadora de telecomunicações israelita, e do site Walla News. A troco de novas regulações das telecomunicações – os benefícios para Elovich terão sido na ordem dos 450 milhões de euros -, Netanyahu e a mulher terão ganho direito a alterar as manchetes do Walla News. Segundo investigadores, chegou a acontecer numa base diária, tendo um papel na demissão e contratação de repórteres.

No coração da defesa do “rei de Israel”, que arrisca uma pena de até 10 anos de prisão, está o argumento de que a troca de favores é parte intrínseca da política e não deve ser criminalizada. Seja como for, a decisão da justiça israelita pode arrastar-se: por exemplo, o antigo primeiro-ministro Ehud Olmert, também acusado de corrupção, demorou mais de seis anos até começar a cumprir a sua pena