“Marcelo é demasiado anestesista. Preferia que fosse cirurgião”

Psiquiatra José Gameiro analisa a resposta à pandemia. Não acredita que o confinamento tenha feito disparar os divórcios, apesar das tensões. “Temos uma grande capacidade de adaptação”.

Por Marta F. Reis e Vítor Rainho

José Gameiro recebeu-nos esta semana na sua casa em Birre, onde viveu o confinamento e de onde saía bem cedo, antes das 6h, para percorrer as redondezas, de Cascais a Lisboa ou Mafra, e fazer pequenos vídeos para animar os amigos. Mesmo quando o filho de 22 anos achava que fazia mal e o queria ‘prender’ em casa, como foi contando nas suas crónicas no Expresso.

O silêncio das ruas vazias é uma das recordações fortes com que fica deste ano virado do avesso pela pandemia, que lhe trouxe também um inesperado estreitar de relação com um núcleo de amigos que passou a conversar todos os dias e à mesma hora – rotina que continuam a manter. O psiquiatra amante de aviões – e não poder voar tem sido do que mais lhe tem custado – e modelos de comboios, como os que coleciona no Alentejo e que já foi visitar entretanto, diz que é cedo para perceber o impacto desta crise na saúde mental e considera que a resposta dos serviços de saúde nesta área continua a ser uma desgraça.

Avalia a resposta do país à pandemia e diz que a capacidade do SNS superou as suas expectativas, mas receia que o reforço de verbas e recursos humanos, que já faziam falta, seja transitório.

Diz que nunca sentiu tanta vergonha de ser português como no dia em que viu as mais altas figuras do Estado anunciar que a final da Champions será em Portugal e analisa o “populismo” de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa e as suas diferentes personalidades.

Esta sexta-feira celebra 71 anos – por coincidência foi também perto desta data que conversámos há cinco anos. Para o ano gostava de voltar a poder juntar um grande grupo de amigos, mas este ano a festa será mais restrita, afinal a covid-19 continua a dominar os dias.

Há cinco anos disse-nos que o melhor presente que podia ter no seu aniversário era o almoço com amigos. Como vai ser este ano?

Vai ser muito reduzido. Vai ser a família e amigos muito íntimos, muito poucos. E vamos estar aqui fora no terraço, o tempo vai ajudar.

Tem estado com esses amigos ou é o esperado reencontro?

Com uns estive, com outros não mas com quase todos vou estando. Já escrevi que agora tenho um grupo que todos os dias comunica pelo Whatsapp, chamamos-lhe o bando dos quatro. Durante a pandemia toda falámos diariamente, é uma coisa viciante. E agora continuamos.

Começaram a falar-se mais agora do que antes?

Sim, tínhamos um almoço mensal e depois, já não sei bem como foi, mas acho que fui eu que um dia disse: vamos ter uma conversa todos os dias às 7 da noite. Às 7 da noite em ponto reunimos os quatro e falamos até às oito e meia, um quarto para as nove, a malta às vezes quer ir jantar e é aí que desligamos.

Que amigos são? Pode falar-se de melhores amigos?

Não são os melhores nem os piores, são amigos. É um grupo de homens só. Somos quatro pessoas. De um sou amigo há quarenta anos, o Jorge Sampaio. O outro é o Jorge Simões, de quem sou amigo há 20 e tal anos.

Marido da ministra da Saúde.

Sim. E o outro conheci através deles os dois, somos amigos há um ano e tal, e é o Jorge Novais, constitucionalista e que trabalhou com o Jorge Sampaio em Belém.

Consta que às 5 da manhã vai dar um passeio todos os dias aqui por Cascais…

Acordo às 5 da manhã e saio às 5h30.

E que às vezes o Presidente da República também vai consigo…

Isso não é verdade. Ele deita-se a essa hora, é o contrário de mim (risos). Costumo ir sozinho ou então com um amigo espanhol.

Escreveu vários artigos muito engraçados sobre o confinamento e num deles dizia que o seu filho não o queria deixar sair de casa.

Fazia-me interrogatórios policiais completos, onde é que eu tinha andado, o que tinha feito. A única coisa boa é que ele acorda mais tarde do que eu. Quando ele acordava já eu estava à frente ao computador com um ar bem comportado a escrever.

Saía à escondidas?

Não, ele sabia que eu saía. Agora ele desconfinou e sou eu que me preocupo. Mas ao princípio foi uma chatice, andava em cima de mim de uma maneira… “O pai tem 70 anos, o pai é do grupo de risco, o pai isto…”

Sentiu-se diminuído pela idade?

Não, era uma coisa afetuosa. E acho que também não corria riscos. Saía muito cedo, às 7 ia ao Lidl que tinha horário para profissionais de saúde, depois ia comprar um pão que a minha mulher gosta muito ali na área de serviço da Torre e às 8h já estava em casa.

Consigo foi tranquilo, mas acha que em algumas famílias os pais terão ficado manietados pelos filhos?

Em alguns casos ficaram e para não falar daqueles que ficaram manietados não pelos filhos mas pelas circunstâncias em que vivem, desde logo as pessoas presas em lares ou pessoas em casas muito pequenas sem espaço para circularem. A pandemia, ao contrário do que se diz, não é uma coisa igual para todos. É evidente que a situação em termos médicos é a mesma, mas viver isto numa assoalhada ou duas com seis pessoas ou sermos quatro pessoas como somos nós cá em casa – temos cá também a minha sogra com 84 anos – e termos um jardim para estar, não tem nada a ver uma coisa ou outra.

(…)

Percebe que as reuniões técnicas no Infarmed sejam à porta fechada e que no final se saibam esses indicadores pelo Presidente da República, que às vezes parecia traduzir para miúdos o que só os participantes podem ouvir?

A partir do momento em que fizeram a reunião com aquele número de pessoas, 40 ou 50, não faz sentido que seja à porta fechada porque vai saber-se tudo cá fora e vai saber-se deturpado porque depois as fontes dizem coisas parecidas mas não iguais. E Marcelo assumiu o papel de diretor-geral da Saúde. Sei que ele gosta muito de saúde, o pai era médico, ele tem uma grande sensibilidade para a saúde, mas preferia, apesar de tudo, que ele não fosse tão anestesista. Acho que é demasiado anestesista em relação a Portugal. Gostava que fosse mais cirurgião, que separasse bem as coisas, cortasse mais a direito. Mas acho que pelo menos até ser eleito quer ser anestesista para ver se tem 75% dos votos.

Se bate o recorde de Mário Soares?

Pois. Intensivista era melhor, agora anestesiar a malta faz-me confusão.

Leia a entrevista completa na edição impressa do jornal i, esta sexta-feira nas bancas.