Em 2015, na noite eleitoral das legislativas, o PCP deixou o caminho aberto ao aparecimento da geringonça: «O PS tem todas as condições para formar Governo». Volvido mês e meio, o PS assinou acordos bilaterais com o PCP, o Bloco de Esquerda e o PEV. As posições conjuntas permitiram aos socialistas governar por quatro anos, ter quatro orçamentos aprovados e entrar na atual legislatura, sem maioria absoluta, com pontes junto dos partidos da esquerda, apesar de já não haver acordos escritos. O orçamento de 2020 passou, mas no Suplementar os socialistas viram, pela primeira vez, o PCP votar contra o documento. O PEV acompanhou o PCP e o Bloco de Esquerda absteve-se com a certeza de que o cenário mudou.
Os comunistas colocaram-se fora da equação e apontaram o dedo às convergências entre PS e PSD. Aliás, o Bloco de Esquerda também reconheceu que há «um acordo entre PS e PSD» e não é só no Orçamento Suplementar. Também se aplica a alterações regimentais no Parlamento (como o fim dos debates quinzenais), ou à escolha de Francisco Assis, ex-eurodeputado do PS, para o Conselho Económico e Social (CES). Catarina Martins considerou mesmo que o ex-eurodeputado é um defensor do Bloco Central para sinalizar o seu desagrado pela escolha. O Parlamento vota o nome de Francisco Assis no próximo dia 10. Já o PSD, pela voz de Rui Rio, considerou a escolha de Assis uma solução «feliz».
Nas últimas semanas, os bloquistas não têm escondido o seu desagrado. Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, escreveu no Público: «A ‘geringonça’ já lá vai, parece cheirar a bloco central. É o pântano a instalar-se na política, o fim de um ciclo e o início de uma outra coisa». Catarina Martins não quis ontem ir tão longe na apreciação (até para não comprometer possíveis entendimentos futuros), mas avisou que «o que o Bloco de Esquerda faz é não mudar de posição».
À direita do PSD já se fala em reedição do Bloco Central sem o ser efetivamente. Ou, então, numa nova versão da geringonça que inclui o PSD. «De facto, a ‘geringonça’ tem um braço cada vez maior», declarou a deputada do CDS Cecília Meireles, referindo-se, por exemplo, ao dossiê da legislação sobre o travão a Mário Centeno para o Banco de Portugal. Os centristas não perdoam ao PSD permitir que Centeno seja ouvido já no Parlamento para a supervisão, sem esperar pelo resultado do trabalho legislativo que previa um período de nojo de políticos para o Banco de Portugal. Assim, somam-se o Orçamento Suplementar, alterações regimentais no Parlamento, a escolha de Assis (um socialista mais ao centro dentro do partido) para o Conselho Económico e Social e o travão à lei que poderia impedir o ex-ministro das Finanças de ser o novo governador do Banco de Portugal.
No PSD, poucos arriscam comentar a estratégia de Rui Rio. Mas há um sinal de mal-estar ou, então, de anestesia geral dentro do partido, como relataram ao SOL várias fontes sociais-democratas, sob anonimato. Mais: quem arrisca falar é, normalmente, alguém com estatuto próprio no partido.
Na bancada do PSD houve quem ficasse chocado por saber pela comunicação social das propostas de alteração ao regimento do Parlamento. A maioria dos deputados só recebeu a lista de medidas no dia seguinte à conferência de imprensa de Rui Rio, a partir da sede do Porto (e fora do Parlamento), conforme avançou a Renascença.
Nas conversas de bastidores há quem alerte para os riscos de Rio poder vir a ser uma muleta do PS, alimentando a tese de que teria um entendimento tácito com o primeiro-ministro. Por outro lado, há quem admita que Rio está a fazer tudo para não lhe ser assacado o desgaste do Governo, cumprir uma estratégia em nome do interesse nacional e, no fim, chegar ao poder a partir de 2021, após as autárquicas. Ou seja, existem várias teses, mas as certezas são escassas. Rui Rio partilha pouco a sua estratégia. Mas uma coisa é certa: os contactos que faz com o PS são ao mais alto nível. Ou seja, com António Costa. Não há outro interlocutor.
Sobre o cenário de Bloco Central, Rui Rio acusou ontem o toque. Refutou a ideia, até porque não deu a mão ao PS, mas ao país. Este foi o mantra com que se fez à estrada na sua liderança. E fê-lo por duas vezes. Rio assegurou que não votou contra porque não encontrou nada de «monstruoso» no Orçamento Suplementar, e não faz votações de ordem tática.
No PSD há quem tenha estado do lado oposto a Rio nas eleições diretas de janeiro e não acredita que este seja só um momento de oposição colaborante, fruto da pandemia da covid-19. É um projeto político. Quem o diz é Carlos Abreu Amorim, ex-deputado do partido. Em declarações ao SOL, Carlos Abreu Amorim considera que «a pandemia da covid-19 nada tem a ver com algumas das coisas que se passaram. A pandemia é o pano de fundo, mas não é o pretexto. O pretexto se calhar é anterior». Para o ex-deputado social-democrata o que está em causa «é um projeto político em que o PSD substitui o PCP e o Bloco de Esquerda como parceiro preferencial do Partido Socialista, pelo menos para o Dr. Rui Rio. Vamos lá ver se será também o parceiro preferencial para o Dr. António Costa para futuro».
Carlos Abreu Amorim está convencido de que António Costa vai querer Rio «exatamente onde ele está», ou seja, usar o líder do PSD e a força da sua bancada quando for necessário. Porém, os aliados preferenciais de Costa continuarão a ser os parceiros de esquerda, particularmente o Bloco de Esquerda, que « ao contrário do PCP não se mostrou contrário a fazer fretes quando eles foram necessários». O ex-deputado frisa que Costa fará o que fez na Câmara de Lisboa: consoante seja necessário no momento, volta-se para a esquerda ou para o PSD, fazendo lembrar «o Partido Revolucionário Institucional, do México».
Para Carlos Abreu Amorim, Rio «predispôs-se, não a fazer uma alternativa de oposição, mas de coadjuvação do Governo e do PS. É uma opção legítima». As contas fazem-se a médio prazo nas autárquicas e a longo prazo nas legislativas. O ex-deputado acrescenta que o fim dos debates quinzenais era um velho sonho de Costa, desde 2007, e Rio «estendeu o tapete vermelho, fez os arranjos de flores e fez o frete». Carlos Abreu Amorim deixou ainda outro desabafo: «Neste momento não temos alternativa partidária ao PS, nem sequer há equilíbrio institucional, porque o Dr. Rui Rio faz o que o Dr. António Costa quer ou deseja, e a seguir o Professor Marcelo Rebelo de Sousa aparece como uma espécie de oráculo a posteriori de justificador das opções do Governo».
Já Rui Machete, antigo líder do PSD, diz ao SOL que o PSD «na prática tem abdicado de muitos aspetos que deveriam ser criticados». O ex-dirigente dá a entender que, perante a pandemia, o PSD deveria ter-se abstido (como fez) no Orçamento Suplementar, mas poderia ser mais assertivo nas críticas.
Ontem, no final da votação, António Costa recusou a ideia de um bloco central (tal como Rui Rio), e lançou a mão ao PCP. «Vamos continuar a dialogar com PCP e Verdes no mesmo espírito, para que haja renovada estabilidade no horizonte da legislatura», declarou aos jornalistas, já a pensar no Orçamento de 2021 e seguintes.