Exatamente dois anos depois do acidente nuclear na central de Chernobyl, que ocorreu nas primeiras horas de sábado, 26 de abril de 1986, o cientista Valery Legasov, um dos principais especialistas em energia nuclear da URSS, foi ao colégio onde a neta andava. Queria olhar para a sua filha uma última vez. No dia seguinte, foi encontrado pelo filho na escada do apartamento da família_com uma corda ao pescoço. «Legasov não deixou qualquer bilhete» de despedida, refere Adam Higginbotham em Meia-Noite em Chernobyl (ed. Desassossego). Devido à sua ação decidida para combater os efeitos da catástrofe, o responsável tinha então a saúde muito debilitada e estava deprimido por uma sucessão de revezes. Um colega seu no prestigiado Instituto Kurchatov verificou que «os seus pertences [no escritório] estavam demasiado contaminados para serem devolvidos à família». Por isso «tiveram de ser enterrados dentro de vários sacos de plástico».
Em setembro de 1986, Legasov tinha tido uma prestação brilhante em Viena, convencendo peritos de todo o mundo de que o acidente se devera a falha humana e ao não cumprimento dos procedimentos indicados na realização de um teste de segurança. Mas poucos dias após o seu suicídio, o Pravda publicou um documento explosivo onde o especialista falecido apontava falhas mais abrangentes. «Depois de ter visitado a Central Atómica de Chernobyl, cheguei à conclusão de que o acidente foi a inevitável apoteose do sistema económico que se desenvolveu na URSS ao longo de muitas décadas». O texto acusatório levava como título ‘É Meu Dever Dizer Isto!’.
Meia-Noite em Chernobyl reconstitui magistralmente o acidente e a forma como as autoridades soviéticas lidaram com as suas consequências. Adam Higginbotham, o seu autor, diz ao SOL que, 34 anos depois do mais célebre acidente nuclear da História, o mundo ainda não aprendeu as lições que devia ter aprendido.
O acidente de Chernobyl é um assunto extremamente complexo, que envolve documentos numa língua estranha, questões técnicas muito específicas e um regime opaco. Isso não o assustou quando deitou mãos à obra? Não se atemorizou perante a complexidade do tema?
Na verdade, não. Comecei a trabalhar neste tema em 2005, como uma história para uma revista. O meu objetivo era reconstituir o acidente pelos olhos das testemunhas sobreviventes. E planeei concentrar-me estritamente na noite de 26 de abril de 1986. Portanto estava principalmente interessado em falar com essas pessoas e em reconstituir a experiência delas, através do que conseguissem recordar do que tinham visto. A minha maior preocupação, nessa altura, era conseguir entrevistar pessoas em duas línguas que eu não falava. A complexidade de analisar a documentação, de compreender a física de um reator nuclear, por exemplo, ainda não se colocavam. E no momento em que tive de abordar esses aspetos já andava a fazer pesquisa sobre este tópico, de forma intermitente, há mais de dez anos. Estava tão embrenhado que nem pensei nisso. Se tivesse pensado, teria ficado preocupado [risos]. Mas não pensei.
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