A polémica passou despercebida e o tema nem foi discutido na última reunião da bancada do PS, mas doze deputados votaram contra a revisão da lei que estabelece as bases da política de ordenamento e de gestão do Espaço Marítimo Nacional. Um grupo de deputados socialistas (que já são 17), liderado por Ana Paula Vitorino, tem dúvidas sobre a sua constitucionalidade e aguardam, agora, uma palavra de Marcelo Rebelo de Sousa para travar a lei.
«Foi uma vitória do PS-Açores e de Vasco Cordeiro, perdão, de Carlos César», admite ao SOL uma fonte parlamentar socialista.
E o que está em causa? A revisão da lei (há muito exigida pelo Governo Regional dos Açores) que prevê, por exemplo, uma «gestão partilhada, com as regiões autónomas, do espaço marítimo sob soberania ou jurisdição nacional adjacente aos arquipélagos dos Açores e Madeira, exercida entre os órgãos das Administrações Central e Regional […], salvo quando esteja em causa a integridade e soberania do Estado». Na prática, reforça o papel das regiões autónomas, ainda que haja pareceres vinculativos da administração central ou codecisões sobre a gestão marítima.
Além disso, prevê-se a «constituição de procedimentos de codecisão, no âmbito da gestão conjunta ou partilhada, entre a administração central e regional autónoma, quando esteja em causa o regime económico e financeiro associado à utilização privativa dos fundos marinhos», segundo o texto aprovado no Parlamento a 23 de julho, na maratona de votações do último dia de plenário da sessão legislativa. A proposta teve os votos a favor do PS, cinco votos a favor do PSD (António Ventura, Paulo Luís, Sara Madruga da Costa, Sérgio Marques e Paulo Neves), do PAN e da Iniciativa Liberal. Os demais partidos abstiveram-se, doze deputados do PS votaram contra, tal como a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues.
Ana Paula Vitorino, que foi ministra do Mar, opõe-se a esta lei. E mais onze deputados do PS estiveram a seu lado no voto contra. Na altura, treze socialistas assinaram a declaração de voto encabeçada por Ana Paula Vitorino, a saber, Ascenso Simões, Jorge Lacão, Marcos Perestrello, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Pedro Cegonho, Sérgio Sousa Pinto, José Magalhães, Rosário Gamboa, Diogo Leão, Alexandre Quintanilha, Jorge Gomes e Bruno Aragão.
A deputada Ana Paula Vitorino explica ao SOL que subscreveram a declaração de voto, ao todo, já depois das votações, dezassete deputados do PS.
Em causa, diz a deputada, estão dois tipos de problemas: «A questão da constitucionalidade e há questões de integridade de território». Para estes deputados, a nova legislação cria «um conceito específico de território autónomo que transforma o mar português, em matéria de ordenamento e gestão, num somatório de três espaços marítimos, o dos Açores, o da Madeira e o do continente». Além disso, «submete o exercício de poderes de soberania do Governo da República para lá das 200 milhas a parecer obrigatório e vinculativo das regiões autónomas», conforme alerta este grupo de deputados. Que não integra, na sua maioria, a comissão de agricultura e mar onde o tema foi discutido. Os mesmos deputados acrescentam que o novo diploma «torna a intervenção do Governo da República até às 200 milhas residual, limitado à emissão de parecer que só será obrigatório e vinculativo nas matérias ditas de soberania e de integridade territorial, que o diploma não caracteriza». Por isso, consideram-no inconstitucional e argumentam ainda que pode vir a comprometer o «processo normal de negociação europeia de fixação das quotas nacionais», porque o Mar é um todo. Questionada pelo SOL se o PS esteve desatento a estas matérias e dúvidas, Ana Paula Vitorino refuta essa ideia: «Não é uma questão de desatenção [da parte do PS]. Há ali uma diferença de opiniões nesta matéria […]. É uma questão de perspetivas diferentes em relação ao Mar».
E à pergunta se espera alguma posição mais firme por parte do seu sucessor na pasta do Mar, Ricardo Serrão Santos, a ex-governante advertiu, de imediato, que este assunto «não envolve o Governo», porque é uma lei que veio da Assembleia Legislativa Regional dos Açores (ainda na anterior legislatura). Serrão Santos é natural de Portalegre mas viveu muito anos nos Açores. É alguém que dá prioridade às questões ambientais do mar, enquanto Ana Paula Vitorino é a figura liderante no PS na defesa de uma visão (ou fação) em prol da economia do mar. Depois a ala, cujo rosto mais proeminente é Carlos César, de que os ganhos vindouros de depósitos minerais (na chamada plataforma estendida) devem reverter para os Açores, ainda que numa solução conjunta com o Governo da República.
Quando Carlos César abandonou o Parlamento (como deputado e líder parlamentar) na anterior legislatura deu uma entrevista ao Correio dos Açores (18 de setembro de 2019) onde se referia à revisão da lei em causa: «Também me apercebi ao longo destes quatro anos, [que] havia uma certa resistência da parte de alguns Ministérios, sobre a forma como enquadrar a participação das Regiões Autónomas na gestão partilhada. É uma matéria que não teve uma boa resolução mas estou convencido de que é uma matéria que terá um bom desfecho». Questionado, então, se não seria mais difícil resolver este dossiê estando fora do Parlamento (não podendo por isso usar a sua influência ), César respondeu: «Eu não desapareci. Continuo a ser presidente do PS. Espero continuar a ter essa influência, porque para se ter influência e para poder ser útil nessas matérias não é necessário ser deputado à Assembleia da República». De realçar que César também participa no núcleo «mais restrito de coordenação política do Governo», como ele próprio lembrou numa entrevista recente ao Público e à Renascença.
Agora, a bola está do lado de Belém. «Vamos aguardar aquilo que o senhor Presidente da República vai fazer», limitou-se a dizer a deputada Ana Paula Vitorino, sem prestar mais declarações. Porém, do lado da Presidência da República sacode-se a pressão. «Estão vários diplomas em lista de espera [para sair do Parlamento] mas este não é dos primeiros. […] Não deve chegar [a Belém] antes dos próximos oito ou dez dias», frisa fonte da Presidência ao SOL, lembrando que o chefe de Estado «não conhece a lei» em causa. Os deputados críticos vão ter de esperar.
O processo parlamentar implicou pareceres jurídicos (favoráveis à lei), mas também um parecer da deputada socialista Isabel Moreira, no âmbito da comissão de assuntos constitucionais. O parecer não é vinculativo, não detetou obstáculos evidentes de constitucionalidade para a aprovação deste diploma, mas pedia uma alteração ao artigo 3 do número 13, sobre o papel do Governo da República.
Ao SOL, a deputada também assume a divergência, acompanhando as críticas dos camaradas de bancada à lei. «A lei só poderia ir para frente se todos os planos feitos pela Região Autónoma fossem sujeitos a parecer vinculativo do Estado Central. Como isso não foi para a frente, é inconstitucional», argumentou. Isabel Moreira deu nota da sua posição à direção da bancada. Na altura não votou contra a lei porque não é possível ter os 230 deputados na sala de sessões ao mesmo tempo por razões sanitárias. A pandemia da covid-19 assim o impõe, facto que motivou várias peripécias (com deputados a pedirem que o seu voto fosse incluído em determinada votação, lembrando que não poderiam estar na sala em alguns momentos).
Do lado do PSD, que se absteve, dois deputados entregaram uma declaração de voto também ela crítica: António Lima Costa e Cristóvão Norte. O deputado do PSD Cristóvão Norte disse ao SOL que cumpriu a disciplina de voto (a abstenção) mas se pudesse teria votado contra. E explica porquê: «O Mar é a nossa maior potencialidade. Estamos num processo de alargamento da plataforma continental. Não há, nem pode haver mar de Lisboa, da Madeira ou dos Açores. Tem de haver uma visão de afirmação de soberania». E termina com palavras fortes sobre a nova lei: «É uma aberração».
Já Vasco Cordeiro, presidente do Governo Regional dos Açores, congratulou-se com a aprovação da lei no Parlamento e refutou as críticas de quem votou contra: «Não é verdade que se exclua ou que se crie uma segmentação de um mar dos Açores, de um mar do continente e de um mar da Madeira», lembrando que vários jurisconsultos consideram a lei constitucional. Estas declarações foram feitas em Belém, quando foi ouvido sobre a marcação das eleições regionais dos Açores. Mais tarde, a partir do arquipélago, recusou comentar as divisões no PS: «Uma lei não se aprova nem com votos contra nem com abstenções, aprova-se com votos a favor», disse, citado pela Lusa, realçando o ganho que resulta da nova lei, tanto para as regiões autónomas como para o país.