"Dirijo uma saudação, neste Dia de Finados, a quem chora os seus mortos. E, neste dia de luto nacional, àqueles que choram os seus mortos diretamente por Covid-19", começou por dizer o Presidente da República (PR) Marcelo Rebelo de Sousa nos primeiros minutos da entrevista que concedeu, na noite desta segunda-feira, à RTP. Depois de agradecer "àqueles que têm estado na primeira linha, especialmente o pessoal da Saúde", o chefe de Estado avançou igualmente que a pandemia de coronavírus "tem sido um teste de resistência, mas a nossa História tem sido isto: guerras, perda de independência, crises económicas e sociais", rematando que "temos resistido" apesar de todas as adversidades.
Primeira vaga Relativamente ao decreto eventual de um novo estado de emergência nacional, quando questionado pelo diretor de informação António José Teixeira, o PR foi assertivo, dizendo que "nunca deixamos de estar", evidenciando que "na altura do estado de emergência, a economia estava estabilizada, mas houve a sensação, pelo galope dos números, que as estruturas não iam aguentar aquele ritmo". Todavia, "aquele momento que parecia de grande pressão sobre estas estruturas" transitou para o estado de calamidade e houve a descoberta "com algum atraso" que o país arrancou "sem máscaras suficientes, sem testes suficientes".
Segunda vaga Sobre a preparação da eventual segunda vaga de Covid-19, o PR explicitou que, após a considerada primeira vaga, "tudo parecia estabilizado, mas Lisboa não estava estabilizada". Neste sentido, adiantou que, após ter-se entendido que podia existir uma intervenção específica em 19 freguesias do país, prepararam-se medidas sanitárias no decorrer dos meses de junho, julho e agosto. Porém, naquilo que concerne o ano letivo, Marcelo disse que foi "razoavelmente bem" preparado e que tal se deve aos responsáveis, professores e alunos. António José Teixeira perguntou se o Serviço Nacional de Saúde (SNS) estava preparado para a escalada do número de infetados e, começando por abordar a contratação de profissionais de saúde, o PR afirmou que esta constitui "um dos problemas que se pretende alterar, conheceu um atraso em termos administrativos e a concretização verificou-se mais tarde". Apesar de reconhecer que houve um esforço no alargamento de alas dedicadas à Covid-19 assim como na colocação de mais camas nos hospitais, o chefe de Estado admitiu que "se pensava que houvesse uma segunda vaga entre o outono e o inverno", mas a pandemia "acelerou na Europa, nas outras partes do mundo e em Portugal". Isto é, "ficámos com um mês, mês e meio, para nos prepararmos para aquilo que seria uma segunda vaga". Neste âmbito, referiu o aumento da realização de testes, a possibilidade de descoberta de mais infetados, mas salientou que o rastreio "não aumentou suficientemente". Naquilo que se prende com a existência de uma vacina contra a Covid-19, até ao fim do ano, disse em tom jocoso: "Quando oiço dizer isso, pergunto: 'Qual? Só se for a da gripe'".
Rutura dos serviços de saúde "Houve previsão do futuro, mas atrasos", confessou Marcelo antes de evocar novamente o caso da capital portuguesa que, a seu ver, "polarizou a atenção das autoridades sanitárias até ao verão". No entanto, e apesar de ter dito que "houve a surpresa da aparição da segunda vaga do verão para o outono", o antigo comentador político declarou que reconhece "improvisos, erros, atrasos próprios da situação vivida em Portugal e noutros países". Na ótica do PR, "apesar do esforço de tentar agir por antecipação, não foi possível" até porque não concorda que deva seguir apenas os modelos puramente matemáticos porque se "temos uma possibilidade de duplicação do número de infetados todos os dez, agora todos quinze dias, significaria que perto de novembro, se fosse progressão matemática, 8000, 9000, 10.000 infetados". Deste modo, "temos visto que progressão matemática não tem batido certo com a realidade clínica" porque, olhando para a Matemática, previa-se uma evolução para 20.000 infetados que não aconteceu. "Mas aqui mais vale baixar as expectativas, ter mais negativas", disse, finalizando o raciocínio: "Isto porque, se formos pela Matemática, temos uma pressão muito séria. Estaríamos a passar dos 1000 e tal internados para 5000. Dos cuidados intensivos de perto de 300 para 500 e muitos, 600. E pelo meio estaríamos, e estamos a assistir, ao aumento do número de mortos. Mas que pode aumentar significativamente nos próximos dias", explicitou. Acerca da capacidade de resposta das estruturas de saúde, o SNS e "olhando também para privados, sociais e cooperativos", afirmou que "a pressão é muito superior do que era há oito meses". A seu lado, disse que há ventiladores, camas disponíveis, "a pressão já foi maior", mas "na área metropolitana de Lisboa é mais difícil porque há menos Misericórdias". Para o PR, já se sabe como lidar com a pandemia, "a eficácia no tratamento, apesar da pressão crescente, é maior do que era na altura" e a grande diferença verificada prende-se com a sociedade que, na sua opinião, "aderiu por antecipação e voluntariamente ao confinamento total e isso deu um contributo excecional para controlar aquele galope que se previa".
Confinamento, economia e sociedade Assim, neste contexto, "pode ser isto, mas não pode ser isto, porque entretanto há medidas que o Governo anunciou", adiantou sobre o aumento de número de infetados e de internados, esclarecendo que "para os portugueses se habituarem à ideia, a questão que se punha era se é possível e desejável voltar a um estado de emergência como aquele que havia em março, abril e maio". Neste sentido, evocando o "confinamento quase total que implicou, que tirando a indústria, serviços básicos e algum comércio, tudo foi encerrado", lançou a questão: "Vamos voltar a isto ou é uma coisa diferente? É uma coisa diferente porque a situação é diferente. No sentido de ser muito limitado de efeitos sobretudo preventivos e não muito extenso apontando para o confinamento total ou quase total". Para o PR, "é esta a inclinação" dos partidos que ouviu e falta apenas conhecer a dos parceiros económicos e sociais. "O PR está a ponderar", mencionou, dizendo que em janeiro e fevereiro "a economia estava bem, com bons números" e o panorama não é o mesmo atualmente. Existiram "sinais de recuperação, mas houve uma queda da riqueza nacional criada, muito sensível, em relação a janeiro e fevereiro".
A fadiga societal "A sociedade está fatigada, lassa. Setores, que começaram pelos mais jovens e depois alargou-se, até têm posicoes negacionistas. 'Não há pandemia'. E perguntam-se porque havemos de nos preocupar com os doentes Covid-19 e não com os outros", disse sobre movimentos oposicionistas às medidas governamentais e de segurança decretadas, que têm surgido, explicando que "estão todos no mesmo barco, porque a capacidade de resposta dos cuidados intensivos afeta os doentes não covid". Continuando, garantiu perceber que a sociedade portuguesa se preocupa com as situações económica e social atuais, tal como com o desemprego crescente, mas quis justificar que "há outra diferença: a política mudou" porque, inicialmente, "havia uma unidade". Sublinhe-se que, quando foi decretado o estado de emergência, pela primeira vez, nenhum partido votou contra. Na primeira renovação do mesmo, "já havia partidos a votar contra" e a segunda renovação "foi muito mais difícil". Para o PR, "tanto na sociedade como na política, se perguntarmos, neste momento, por um confinamento muito vasto", a resposta será "não, não, não". Ou seja, a resposta é "'sim' a um estado de emergência limitado, numa maioria clara". O antigo professor de Direito não deixou de argumentar que o estado de emergência está a ser ponderado e foi pedido pelo Governo para situações específicas a possibilidade da ampliação do rastreio da Covid-19 – para acompanhar os surtos, as cadeias de transmissão -, a resolução do problema jurídico suscitado por problemas como o da "medição da temperatura em eventos como os culturais" pois não se pode ficar dependente "de um tribunal dizer ou não que há cobertura jurídica para isso".
A falta de preparação de resposta para o outono e inverno foi questionada por António José Teixeira, que realçou que "não há camas cativas", mas Marcelo quis "contar como se passou" e lembrou o primeiro embate da pandemia em que foram "acertados e articulados textos jurídicos para serem celebrados acordos com as ARS, porque a situação podia ser diferente nas várias regiões, mas isso estava previsto, clausulado". Como justificação apresentada para a não assinatura de um acordo global, o PR defendeu que "provavelmente, isso podia ter sido possível", contudo, "houve um bocado a visão de que não se chegaria tão depressa a uma situação de tal pressão". Recorrendo ao exemplo da pandemia de coronavírus na situação Norte, deslindou que começou por haver acordos entre unidades hospitalares e unidades do setor privado e no setor social "passou a haver uma resposta muito frequente". Mas, "colocar o acento tónico nisto agora" deve-se ao facto de que "a pressão dos acontecimentos torna ainda mais clara a necessidade de uma solução global". Mostrando-se compreensivo perante "as críticas, as angústicas, o estado de espírito dos portugueses que apontam erros, omissões, atrasos e contradições", disse que o panorama português não difere daquele que existe noutros países pois falou com outros chefes de Estado, como Donald Trump, e tem noção da "análise que faziam".
"Não houve hipótese de dizer 'isto parou, vamos preparar-nos para a próxima fase'", recordou o PR, após António José Teixeira ter assumido que "estávamos muito ignorantes e mal preparados". Para Marcelo, há pessoas que "vivem por dentro disto e conhecem muitos mais erros", mas a imprevisibilidade da pandemia dificultou a ação política. "Quando parecia estar a parar, começou nos lares. Os problemas estavam a surgir todos os dias", reconheceu, sendo questionado pelo diretor de informação sobre a ideia do "milagre português" que lhe foi atribuída no passado mês de abril. "Não houve milagre. Na altura, ninguém percebeu o que eu disse. Não houve milagre nenhum, só a resistência dos portugueses, do pessoal da saúde e dos autarcas", refletiu. A contratação mais rápida de médicos, assim como a obtenção de camas célere poderia ter acontecido "porventura", mas "tem que se perceber que todos os dias surgiam problemas novas e apagava-se o problema inicial". A título de exemplo, recorreu "aos lares" que "rebentaram a partir do estado de emergência". E, depois, "foi Lisboa". "Não estou a absolver erros, sou o maior responsável por eles. O PR é o maior responsável pelos erros que acontecem em Portugal", asseverou.
"O PR não governa", apontou António José Teixeira, sendo que Marcelo respondeu prontamente "mas dá cobertura política". Para o político, o rastreamento, a coordenação entre instituições de solidariedade social e saúde, assim como entre o departamento de solidariedade social e a saúde ao nível local, passando pela crença de que o número de camas existente nos hospitais "não ia aguentar" foram fatores ponderados pelos políticos. Mas, sobre as camas, explicou que o número "pode aguentar porque as medidas aplicadas tiveram um efeito de prevenção". Sobre o impacto destas opiniões no planeamento da atuação política, na possibilidade de se "inverter o caminho" como o dirigente da informação do canal público mencionou, "serviram para fomentar a reflexão sobre a saúde", "chegar à conclusão de que havia aspetos que parecem menos graves mas são mais graves" e "medir o pulso à saúde vista por sindicatos, médicos, técnicos de diagnóstico, enfermeiros, tudo isso", declarou. "Estou a assumir a responsabilidade suprema por tudo isto", expôs, recordando que quando se entrou em crise económica e social "as medidas passaram a ter de ser calibradas em função desta situação" porque o "no primeiro estado de emergência, isto não era tão importante e pensámos em sacrificar a economia".
Medidas de distanciamento social "A correção é certa", disse o PR naquilo que concerne a permissão da realização de feiras, "porque não se percebe porque as grandes superficies podem e as feiras não podem". Por outro lado, afirmou que as medidas são fundamentais para "conter, controlar, achatar a curva, mas não determinam a duração da pandemia nem são infalíveis", sendo que se tal acontecesse "países altamente sofisticados tinham controlado a pandemia". Admitindo que "a ideia de que não se pode celebrar os finados, mas ir a espectáculos" é viável "põe as pessoas doidas" porque "não percebem que estar fechado em casa depende de quem está e como", não esqueceu de mencionar que "se os acessos [aos eventos] não funcionarem bem, como aconteceu na Fórmula 1, é claro que não dá certo". Neste sentido, apontou que teve "algumas guerras", nomeadamente a celebração do 13 de outubro em Fátima, mas "os 6000 fiéis ficaram devidamente espaçados, a opinião pública já achou mais normal". Para o PR, a chave para a deliberação da aglomeração de habitantes é o entendimento de que existe, ou não, "condições sanitárias, medidas tomadas em relação aos municípios" e que se torna imperativo "fiscalizar indicativamente". "É fácil fazer a previsão depois do jogo feito", mencionou sobre as críticas que são feitas à atuação política.
As lacunas da comunicação em saúde foram referidas por Marcelo, para quem "não vale a pena comunicar de boa fé" quando a mensagem é mal entendida "porque a pandemia não só é a primeira com redes sociais como tem uma componente psicológica fundamental", descortinando que tem "uma consideração muito grande por quem tem feito as comunicações de imprensa porque é brutal dar números, responder a dúvidas" e, "como tudo aquilo que se repete por muito tempo, cansa". As orientações dos especialistas e as regras da Organização Mundial de Saúde [OMS] modificam-se e tal não surpreende o PR porque "há três meses era há três meses, a pandemia conheceu avanços e recuos, a OMS conheceu imensos zigue-zagues", ressaltando que "é preciso ir reinventado a forma de comunicação, o que é difícilimo". "As pessoas, de vez em quando, têm que se pôr deste lado. O difícil é fazer diferente e mais rápido", transmitiu, evidenciando que ao divulgar este pensamento estava a ser "comentador de bancada e não decisor político".
"Tenho observado as eleições em tempos de pandemia e contam-se pelos dedos aqueles que foram reeleitos nestes tempos", constatou o chefe de Estado, para quem "quem é eleito também é punido por aquilo que corre mal, não é só eleito para ser louvado". Realizando uma analogia, lembrou que Winston Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial, "ganhou a guerra, foi corrido a seguir", isto é, "pode ganhar-se, se é que se ganha uma pandemia, mas ganhar uma crise económica e social…", deixou em aberto. "Só posso dizer aquilo que disse várias vezes", iniciou o raciocínio, "temos uma pandemia que está, em termos de número de infetados, internados e [pacientes nos] cuidados intensivos, a conhecer um agravamento", confessou, não escondendo que "temos uma situação económica e social que só se agravará em função da duração da pandemia". Prosseguindo, disse que "a democracia é assim, é evidente que deixou de haver unanimidade em relação ao estado de emergência. É a vida", mostrando que "convinha que realmente não se juntassem três crises [económica, social e política]" porque a capacidade de resposta do Governo agrava-se de modo exponencial.
Analogia entre os incêndios de Pedrógão Grande e a pandemia "Deixe-me recordar o que eu disse em 2018 e mantenho: se em 2019, se em 2020, tivesse havido uma tragédia igual à de 2017, eu não me recandidatava. Ponto final, parágrafo", desmistificou, aludindo à tragédia que conduziu à morte de 66 pessoas em junho de há três anos. "Tinha acontecido uma primeira vez e, um ano depois, dois anos depois, repetia-se nos exatos termos, com a mesma gravidade", traçou o cenário, esclarecendo que se tal se verificasse na realidade, queria dizer que a sua voz "tinha sido perdida no deserto". Porém, "coisas foram mudadas, muito poucas, mas foram", lembrando que foi eleito "para ser Presidente até ao fim do mandato" e não "para pensar numa eventual recandidatura", prometendo que pensará naquilo que interessa aos portugueses – "pandemia, estado de emergência, até porque vai continuar" – até ao momento do fim do mandato, a 9 de março, acreditando que tem a "obrigação de tratar a crise económica e social até lá" na medida em que não pode pensar "que é melhor não fazer isto ou aquilo por perder votos".
Caso dos Paióis de Tancos Para o PR, o lema mantém-se: "Apurar tudo de alto a baixo, doa a quem doer”. "Usei essa expressão. Antecipei-me quando vi notícias sobre isso, tenho-me repetido a um ritmo absolutamente cansativo", disse o político que não pretendia abordar outros assuntos senão a pandemia de Covid-19, no decorrer da entrevista. Mas o caso do assalto aos Paióis de Tancos e a posterior recuperação do material militar impôs-se no dia em que o julgamento destes ilícitos teve início no Tribunal de Santarém. Sobre o pedido de depoimento que foi feito pela defesa de Vasco Brazão, explicitou que responderá por escrito pois o Presidente, tem sido essa a interpretação, não precisa de pedir autorização ao Conselho de Estado. Diz que sim ou não", evidenciando que publicará o depoimento no site oficial da Presidência da República "para que os portugueses não tenham que esperar pela via jurisdicional". Sobre variados processos, como o da Operação Marquês, Marcelo mostrou-se sentir-se "feliz por, durante o mandato que se avizinha do fim, terem avançado" depois de terem estado "encalhados". "Houve um avançar de processos que, há largos anos, ninguém imaginaria que avançassem. Até processos de contra-ordenação avançaram com condenações e outros com acusações", congratulou-se, declarando ter a certeza de que "em todos estes processos, a culpa não morrerá solteira", sendo que "não haverá aquela suspeição, que existe por exemplo quando pensam que uns são mais protegidos do que outros, de que isto só acaba quando eles [arguidos] morrerem".
Eleições nos Açores "Correram muito bem, relativamente à participação cívica", mas o único comentário que o PR fez sobre esta temática foi o seguinte: "O representante da República para a Região Autónoma dos Açores, quando forem publicados os resultados, tratará da formação do Governo. Eu não me posso substituir ao representante, ele tem de ouvir por ordem crescente os vários partidos, é assim que se faz".
"Preocupa-me. Preocupou sempre. Nunca deixou de preocupar", anuiu sobre o estado da evolução da Covid-19, em Portugal, assumindo que conhece História, foi analista "numa encarnação anterior e sabia o que eram epidemias", tendo conhecimento agora do âmbito desta pandemia após ter ouvido chefes de Estado e "aquilo que o primeiro-ministro dizia de chefes de governo". Mas não hesitou em informar de que, no momento da tomada de decisões, adota uma estratégia: "Simplesmente no momento de decidir, sou muito frio. Decido friamente uma coisa ou outra, não tenho estados de alma", finalizou.