Lendário correspondente de guerra, Robert Fisk era um desses jornalistas animados pela paixão dos danados, e se o empenho destemido nas suas reportagens é algo que ninguém nunca pôs em causa, não pôde nem quis deixar de ser uma figura controversa, até porque, trabalhando a partir do Médio Oriente desde os 29 anos, não estava ali para a conversa fiada, mas desmontava as narrativas, preferia sondar os livros de História a pôr o gravador à frente de algum responsável político, fazendo fé nas orientações oficiais. Fisk ligava as coisas, vinha da escola da desconfiança, e aplicou-se na escrupulosa sabotagem das narrativas dominantes, fazendo a crónica do lado do desespero, dando voz e memória àqueles que são atirados para a berma da História pela marcha do progresso. Foi um jornalista que dedicou a vida inteira a desmascarar essa trama persistente do falsamente universal, das abstracções que tudo nivelam e esterilizam. Assumiu os maiores riscos, tomou posições duras, difíceis, numa abordagem descrita pelo The New York Times como musculada, com uma escrita pugilística, cobrindo “conflitos civis e resolutamente incivis” no Médio Oriente e mais além – no Iraque, Síria, Afeganistão, Bósnia, Kosovo, Israel e nos territórios ocupados, na Irlanda do Norte, na Argélia e no Líbano, tendo há muito escolhido a capital deste, Beirute, para viver.
Na sequência de um enfarte fulminante, Fisk morreu poucas horas depois de dar entrada num hospital em Dublin, no passado domingo. E um claro sinal claro da enorme influência da sua voz, ficou patente com os tantos obituários que saíram nos dias seguintes em jornais de todo o mundo, e que não se limitaram a seguir o registo banal de um formulário, colando elogios a uns estafados dados biográficos, mas defendendo a sua coragem e virtudes, e a exemplaridade com que reclamou uma postura interventiva, recusando-se a ser uma testemunha passiva. “Não consegues chegar perto da verdade se não estiveres lá”, defendeu no documentário “This Is Not A Movie” (2019), que lhe dedicou Yung Chang. “A velha ideia de que o jornalismo deve ser neutro e nunca tomar partido é simplesmente lixo. Como jornalista, deves ser neutro e imparcial do ponto de vista dos que sofrem.” Assim, ao longo de quase cinco décadas, Fisk fez guerra aos “idiotas da objectividade”, esse dos que comungam das noções que deram conta da arte jornalística, debaixo de um registo muito casto, probo, que faz uso de um tom estrita e secamente informativa, tantas vezes absurdamente árido, que inculca uma certa indiferença, neutralizando a perspectiva, o valor do conhecimento e da análise que dão substância ao ângulo a partir do qual se posiciona o observador.
Com uma certa exasperação, mesmo o The Economist reconhecia o brilhantismo das suas análises, sendo uma voz que ecoava bem para lá do espaço noticioso britânico. Assim, se notava que a reputação de Fisk entre os seus pares estava longe de ser a melhor, sendo acusado muitas vezes de adoptar uma postura de fanfarrão, reconhece o apelo e a preponderância da sua amarga leitura da ingerência ocidental no mundo árabe, e particularmente a sua denúncia dos esforços de desestabilização perpetrados pela aliança EUA-Israel. Lembra também que as suas reportagens tinham ampla ressonância no espaço de comentário, e que eram ecoadas por tantos meios de comunicação e acolhidas nos campus universitários espalhados pelo mundo, incluindo nos EUA. E, no entanto, aquele jornal conservador – que de algum modo se situa ideologicamente na margem oposta à do Independent, título para o qual Fisk escrevia há três décadas –, relembra uma crítica publicada nas suas páginas há década e meia em que Fisk era criticado por, ao tentar contar a história do Médio Oriente, não hesitar em relatar a sua própria história.
Nascido em Maidstone, uma cidade de província a sudeste de Londres, Robert foi o único filho de William Fisk, um funcionário municipal e veterano da II Guerra que coseu os bocados da sua humanidade registando num diário os horrores que testemunhara, e de Peggy Fisk, uma pintora amadora que viria, mais tarde, a assumir funções de magistrada do município. Foi aos 12 anos, depois de ver o filme de Alfred Hitchcock “Correspondente de Guerra” (1940), que Robert decidiu que era aquele o seu destino. Formou-se na Universidade de Lancaster, em 1968, ganhou tarimba numa série de jornais de pequena circulação, até se juntar à equipa do “The Times of London”, no início do década de 1970. Como recorda o Público, estava em Portugal, a cobrir o pós-25 de Abril, quando foi convidado, em 1976, para o lugar de correspondente no Médio Oriente. Tinha já saído do The Sunday Express em rotura com os editores, e, em 1989, abandona o Times depois de ver alguns artigos “censurados politicamente” pelo novo proprietário, o hoje infame barão dos media Rupert Murdoch. Antes do Médio Oriente, estabeleceu laços profundos enquanto correspondente na Irlanda, tendo adquirido a nacionalidade.
Ao longo da sua carreira, teve uma série de furos jornalísticos, proezas que o colocaram entre uma elite temerária que vai aguentando o prestígio do jornalismo mesmo em períodos como o actual, em que o regime de alienação geral vai dispensando intermediários, intérpretes e especialistas, e aceitando generalizações simplistas, leituras que fazem todas as cedências aos preconceitos e que são, por isso, fáceis de instrumentalizar pelo poder. Além de ter sido um dos primeiros repórteres a entrar nos campos de refugiados palestinianos em Sabra e Shatila, onde mais de mil pessoas tinham sido massacradas pelas milícias libanesas, tendo as tropas israelitas assobiado para o lado, em 1993 foi dos primeiros jornalistas ocidental a entrevistar Osama Bin Laden. Voltaria a entrevistá-lo mais duas vezes, antes dos atentados do 11 de Setembro. E se começou por descrevê-lo como uma figura que encarnava na perfeição a imagem do guerreiro da montanha da lenda dos mujahidin”, condenaria de forma veemente os ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono, descrevendo-os como “um crime hediondo contra a humanidade”.
Tendo vencido todos os prémios do jornalismo do Reino Unido, nos últimos anos foi muitas vezes denunciado pelos correspondentes que cobriam para outros títulos as mesmas realidades de ceder à ficção para abrilhantar os seus relatos, ou de ser pouco crítico com a informação que lhe era passada pelas suas fontes. “No seu estilo de reportagem, o que importa é exagerar as proporções da narrativa para colorir abundantemente entre os contornos, supostamente em defesa dos oprimidos, assumindo liberdades que muitas vezes passavam a perna à verdade literal”, assim termina o obituário publicado pela The Economist, o qual deixa bem claro a animosidade que Fisk sempre gerou. Mas talvez o aspecto crucial e que o distinguia de tantos dos seus colegas, dando-lhe uma vantagem crucial, era a forma como o tom pujante da sua escrita ia montado num conhecimento profundo dos antecedentes históricos, dos aspectos culturais que tisnavam os conflitos regionais, e isso terá levado, como acontece a qualquer amante da História, a uma forma de exaltação própria de quem, sentindo uma empatia profunda pelas vítimas, se empenha em alterar o curso dos acontecimentos.
Como lembravam alguns dos obituários, Fisk não apenas rejeitava o mantra da objectividade como foi ficando marcado pelo que viu, e numa das suas reportagens do lado afegão da fronteira com o Paquistão, em dezembro de 2001, depois de ter sido espancado por refugiados afegãos, assumindo um relato na terceira pessoa, num exemplo de despersonalização quase histérica, colocou-se na pele dos seus agressores, defendendo os seus actos. “Eu teria atacado Robert Fisk, ou qualquer outro ocidental que tivesse apanhado à minha frente”, escreveu. “Dei-me conta, nesse momento, de que a brutalidade deles era inteiramente um produto do que outros lhes tinham feito, esses outros éramos nós – nós que os armámos na sua luta contra os russos e ignorámos o seu sofrimento e ainda nos rimos da sua guerra civil, e depois voltámos a armá-los e pagar-lhes para travarem uma ‘Guerra pela Civilização’ a alguns quilómetros da primeira, e ainda bombardeámos as suas casas e demos cabo das suas famílias e chamámos-lhes ‘danos colaterais’”.