“A forma da pala não é do Siza nem minha, é uma forma natural”

António Segadães Tavares, engenheiro de estruturas que tornou possível a pala do Pavilhão de Portugal, recorda os bastidores e as peripécias do projeto.

Quando, na sua edição de 24 de outubro, o SOL publicou uma notícia acerca das obras que estão a decorrer no Pavilhão de Portugal (‘Obras não tocam na pala’), vários leitores chamaram a atenção para uma omissão imperdoável. Embora o texto dissesse que a famosa pala constituía «uma verdadeira proeza de engenharia», não era referido em lugar algum o nome do engenheiro que tornou possível a sua realização. A própria Ordem dos Engenheiros não deixou passar o assunto em branco, fazendo chegar à direção do SOL uma carta esclarecendo que o crédito do projeto de engenharia, «bem como da excelência da sua execução», devia ser atribuído a António Segadães Tavares.

E é o próprio Segadães Tavares quem nos conta, na primeira pessoa, como lhe chegou o projeto às mãos e descreve os bastidores, nem sempre pacíficos, desta obra emblemática do final do séc. XX. «Eu fui o autor da maioria dos projetos [de engenharia] da reconstrução do Chiado depois do incêndio. A certa altura – agora já não sei precisar, porque os anos passam, mas seguramente no início dos anos 90 – houve uma sessão no Laboratório de Engenharia Civil (LNEC) onde foram apresentadas soluções que tinham sido ensaiadas na reconstrução do Chiado».

O presidente do LNEC era à data Eduardo Romano Arantes de Oliveira, filho do ministro das Obras Públicas de Salazar. «Tínhamos uma relação de amizade, quando ele entrou para catedrático no Técnico escolheu-me como assistente», nota Segadães Tavares. No final da sessão, entre o pequeno grupo que se dirigia para o gabinete do presidente do LNEC, encontravam-se Siza Vieira e Segadães, respetivamente o principal arquiteto e o principal engenheiro da reconstrução do Chiado. «Ainda na antecâmara do gabinete do Arantes, o Siza aproxima-se de mim e diz: ‘Ó engenheiro, queria falar consigo de um trabalho’. Fiquei curioso», recorda Segadães. «Explicou-me que era o projeto do Pavilhão de Portugal, que ia ter uma praça cerimonial, e se eu estava disponível. E eu: ‘Claro que estou disponível’. Ia lá dizer que não a uma coisa dessas. Esta é a primeira vez que oiço falar do Pavilhão de Portugal».

O engenheiro e o arquiteto encontravam-se regularmente às quartas-feiras em reuniões de coordenação para discutir o andamento das obras no Chiado. «Duma dessas vezes, não sei precisar quando, ele [Siza] faz-me a pergunta do que vai dar origem à pala. A praça cerimonial devia ser coberta, para o caso de chover. ‘Ó engenheiro, e se em vez de fazermos a cobertura habitual’ – que é aquela cobertura convexa, com o vértice ao meio, género dos telhados – ‘fosse ao contrário?’». Siza queria, no fundo, saber se tecnicamente era possível fazer a pala com aquela curvatura que se tornaria icónica. «Sempre lhe chamei a curva da corda da roupa para secar», continua Segadães. «Aquilo é uma forma da natureza, não se pode dizer que é a forma do Siza ou a minha forma. Fazer aquilo tem uma técnica, mas a forma é da natureza. Quando ele me pergunta ‘Mas isto é viável?’, eu disse: ‘Se houver quem pague, é viável’».

O arquiteto tinha ideias muito precisas quanto à execução. «Fazer aquilo era muito mais caro não pela sua natureza, mas porque o Siza quer aquelas coisas sem emendas, sem juntas de betonagem, etc.», esclarece o engenheiro. «Quando fez o projeto de um estacionamento do Grandella foi a mesma coisa. E eu disse-lhe: ‘Sr. arquiteto, mas os carros encostam-se aí, daqui a dois meses já está tudo negro dos carros’. ‘Mas tem de ser’, disse-me ele. Ele é um bocado obsessivo-perfecionista, é o exagero. Não tem senso».

 

‘Não estava para aturar colonizadores britânicos’

A execução da obra não estaria isenta de fricções, imprevistos e intrigas. «Quando foi o princípio da Expo 98, a Ove Arup [gabinete de engenharia britânico] fez uma investida grande em Portugal para se assenhorear dos projetos», relata Segadães Tavares. Além da exposição universal, os britânicos tentaram outros alvos. «Eu tinha já ganho o projeto da ampliação do aeroporto da Madeira e eles tentaram pendurar-se. Aliás foi assim que conheci Sua Alteza Real o Príncipe André», ironiza o engenheiro. «Era um caixeiro-viajante dos serviços de engenharia ingleses. E tentou vender-me os serviços deles. Só que eu respondi: ‘Não preciso de ninguém para resolver isto, sei resolver sozinho, não quero distribuir os meus honorários por quem não me traz nada de novo’».

No caso do Pavilhão de Portugal, a ‘investida’ dos engenheiros britânicos acabaria por ser bem-sucedida. «O Siza na altura ia muito a Itália, onde estava a fazer um projeto de um estádio na Sicília. Foi nessa altura que conheceu o Cecil Balmond [designer cíngalo-britânico]. Não sei se conhece bem o Siza. É autoritário, quer que façam as coisas como ele quer. Quando ele me fala da Ove Arup para colaborar connosco, eu digo-lhe: ‘Precisar, não preciso’. Aliás escrevi-lhe mais tarde», recorda Segadães, que nasceu em Angola e tem dupla nacionalidade, «uma carta a dizer ‘para ser colonizado já me bastava ter sido colonizado pelos portugueses’. [risos] Não estava para aturar colonizadores britânicos. Encrespámo-nos, porque eles depois não fizeram nada. Onde podíamos beneficiar dos conhecimentos deles era no aspeto da estabilidade aerodinâmica. Quando você tem aquele ‘lençol’», explica, «se tiver vento de nascente, como ali tem, pode causar vibrações. E eu pensei: ‘Aqui está uma situação em que o contributo da Ove Arup pode ser útil’. Mas uma coisa é dizer isso, outra é fazer: não fizeram nada. Nunca houve essa colaboração, houve uns estudos preliminares principalmente para a parte da climatização, da parte da eletricidade, nem sequer da parte de água, de esgotos».

 

Dores de cabeça

Fazer as coisas exatamente como Siza queria, mesmo para um engenheiro de estruturas com a experiência de Segadães Tavares, que além do Chiado tinha trabalhado em muitos outros projetos de recuperação e em grandes obras públicas como o Centro Cultural de Belém, não era pera doce. «A pala tinha características muito próprias e a construção deu-me dores de cabeça», reconhece. «Nunca deixei de dormir bem, mas tinha de resolver aquele problema, porque o Álvaro Siza não queria que tivesse juntas de betonagem, etc.». E dá um exemplo que ajuda a visualizar a natureza do problema em causa: «Se tivermos uma corda onde vamos pendurando roupa, a corda vai-se deformando. Um bocado, mais um bocado, mais um bocado, e ela vai tomando cada vez mais a forma de catenária. Não podia fazer isso com o betão, porque o que acontecia ao deformar ia tender e fraturar a placa de betão».

Até que um dia, ou melhor, uma noite, teve o seu momento eureka. «Eram para aí duas ou três da manhã, acordo e percebo: ‘É assim que tenho de fazer. Tenho de construir isto com a forma definitiva’. E vou para a casa de banho, para não incomodar a minha mulher, com um bocado de papel para tirar notas sobre como havia de fazer».

Com a construção da pala em curso, houve quem desconfiasse da solução encontrada pelo engenheiro. «Havia um engenheiro da Ove Arup que, quando eu não estava, às vezes passava na obra. Lembro-me de ele ter alertado a fiscalização do Pavilhão de Portugal quando eu mandei descimbrar, tirar o cimbre, porque achava que era muito cedo para pré-esforço. Mas embora use cabos que são utilizados para pré-esforço, aquilo não é uma estrutura pré-esforçada, o que eu fiz foi dar-lhe aquela forma de princípio. O próprio empreiteiro estava sempre a incomodar-me com as perdas de pré-esforço. E eu dizia-lhe: ‘Aqui não interessam nada’. Aquilo não é um problema de pré-esforço, é um problema de sustentação. Se as tensões não estão nos cabos de aço, estão no betão».

Essa desconfiança não foi o único obstáculo que teve de ultrapassar. «É preciso dizer que o empreiteiro fez uma confusão enorme e perdeu as referências iniciais para esticar os cabos de aço. O que é que a gente ia fazer?». Segadães teve de recorrer a um método empírico – para não dizer ao improviso. «Vai-se rir da forma como controlei aquilo. Com um cartão-de-visita», revela. «Fiz umas marcações no eixo da pala, foi um topógrafo com um nível de precisão e comecei a fazer um levantamento de pontos no eixo principal e fui reconstituindo a geometria que queria. Quando o cartão começou a passar entre a parte inferior do betão, já endurecido, e o molde, eu disse: ‘Parem, está pronto!’».

 

Honra para os não participantes

Na cerimónia de descimbragem – a retirada dos cimbres, ou seja, da estrutura que suportava a pala durante a construção, tendo daí para a frente a pala de se sustentar por si – Segadães Tavares pôde saborear o seu triunfo. «Foi uma cerimónia de que eu gostei, um bocado para épater le bourgeois», brinca, «em que foi a comissão presidida pelo António Costa, que agora é primeiro-ministro, estava o Torres Campos, presidente da Parque Expo, e todas a figuras de proa».

A obra estava coberta «com esses tecidos verdes de rede dos andaimes», descreve o engenheiro. «A uma indicação minha, dois operários largam os cabos e aquilo abre como se fosse um pano de cena. As pessoas ficaram muito agradadas».

Uma das personalidades presentes na ocasião festiva era a comissária do Pavilhão de Portugal, a museóloga Simonetta Luz Afonso. «Passou por mim, com os saltos altos, sem sequer olhar», recorda o engenheiro. «Nessas coisas eu deixo-me estar quieto, não preciso de me pôr em bicos de pés. Mas no final, as pessoas já se tinham afastado, e há um arquiteto meu amigo que me chama para o grupo onde ela estava. ‘Ó Segadães, anda cá’. A Simonetta viu que havia quem me conhecesse, ainda por cima as figuras máximas da Parque Expo. Aí vira-se para mim e pergunta: ‘Então, sr. engenheiro, como se sente agora?’. Viro-me para ela e digo: ‘Olhe, minha senhora, agora estou na sexta fase do projeto’. Ela fica espantada. ‘Sexta fase?!’. ‘A senhora não sabe que o projeto tem seis fases? A primeira fase é o entusiasmo. A segunda é a desilusão. A terceira é o pânico. A quarta fase é à procura dos culpados. A quinta fase é a condenação dos inocentes. E a sexta fase, minha senhora, é pompa e honra para os não participantes’. Ficou embatucada e nunca mais falou comigo».

 

Durabilidade assegurada

Em 2009 a pala cerimonial foi objeto de obras de manutenção. O_autor do projeto de engenharia estranha não ter sido chamado. «Mas depois a equipa que foi contratada quis recorrer a mim para eu indicar os materiais que tinha utilizado. Convidam outros e depois recorrem a mim? Não faço consultoria de graça, de modo que não indiquei», admite Segadães Tavares. «Dizem que tenho mau feitio…».

E quanto tempo deverá resistir esta obra emblemática? «Aquilo é uma estrutura extremamente estável. É uma forma natural. Aquele betão quase não trabalha, está apoiado em cabos de aço», explica o engenheiro. «O betão comporta-se bem, exceto quando é sujeito a forças de esticamento. Não é o caso, ali está quietinho. Se houver oscilação, tem um sistema autocorretivo que reconstitui a geometria inicial. A durabilidade é a que consta dos princípios de final do séc. XX, princípio do XXI», conclui. Ou seja, de 50 anos. «Mas mal de nós se as casas só durassem 50 anos», considera. Hoje «a pala tem uma durabilidade assegurada tão grande como tinha na altura em que foi construída», garante. E evoca duas das suas obras de engenharia favoritas, o Panteão de Roma e a Ponte de Alcántara (Cáceres, Espanha), que estão de pé há quase dois mil anos. «Aquilo não é eterno, mas desde que não haja ataques químicos», ressalva, também o seu projeto resistirá muito tempo. Resumindo: a famosa pala está para as curvas.