“O horror foi democrático, atingiu da mesma maneira pobres e ricos”

Quando, perto das 9h45 da manhã de 1 de novembro de 1755, a terra começou a tremer, muitos pensaram que estavam a assistir ao fim do mundo, diz a historiadora Mary del Priore. ‘Era a espada de Deus que caía sobre a rica cidade de Lisboa, que pecava muito, apesar de ser muito religiosa’.

Historiadora prestigiada e multipremiada, autora de mais de 40 livros, Mary del Priore doutorou-se em São Paulo e fez um pós-doutoramento em Paris. Embora tenha vivido em Lisboa, na York House, foi quando estava na capital francesa que se dedicou ao estudo do grande terramoto de 1755. Daí nasceu O Mal sobre a Terra – história do grande terramoto de Lisboa, recentemente publicado em Portugal pela Objectiva. Sobre ele, o escritor e professor de Filosofia Miguel Real, ele próprio autor de um romance passado na época do terramoto, diz no prefácio não ter dúvidas de que é «o melhor livro escrito em português sobre o Terramoto de Lisboa».

Antes de falarmos propriamente sobre o terramoto, gostaria que falássemos um pouco sobre a Lisboa de antes do terramoto. Era uma cidade de grandes contrastes, não é verdade?

Sim, sobretudo porque o ouro do Brasil havia enriquecido enormemente a família Bragança e portanto a construção de conventos, a construção de igrejas, e mesmo a beleza de palácios e residências de toda a aristocracia portuguesa contrastava com o fervilhamento desse povo que tinha uma série de maneiras de sobreviver: pescadores, negros escravos que ofereciam serviços, calhandreiras, vendedoras de frutas… O que acho bonito em Lisboa é esse ruído da cidade, esses gritos oferecendo serviços. Havia uma desigualdade muito grande e havia um misticismo muito grande nessa pobreza. Então temos essas ruas onde se cruzam comerciantes, homens de negócios, mas também figuras como esses padres mendicantes, temos pessoas que fazem presságios sobre a situação do país, milagres acontecem nos conventos. Diria que é uma cidade em movimento, cosmopolita, com uma presença inglesa muito forte – os hereges ingleses que são detestados. Acho que há uma incompreensão dos diplomatas estrangeiros em relação à corte portuguesa. Digo sempre que o arcaísmo é um arquivo de tradições, de valores que estavam impregnados na população portuguesa, e os diplomatas estrangeiros confundem tradição com atraso.

A religião servia de refúgio para as vidas difíceis dessas pessoas pobres?

Sim, certamente. E vemos isso nos folhetos de cordel, na forma como o povo reclama da fome, no medo que o povo tem que a guerra com a Espanha se perpetue, vemos isso nos mendicantes pela rua, nos oficiais que haviam perdido um braço ou uma perna na guerra e eram obrigados a mendigar. Eu diria que há vários instantâneos dessa época que mostram como a religiosidade está profundamente imbricada na mentalidade dos portugueses. Aguarda-se o retorno de D. Sebastião, há toda uma perspetiva milenarista embutida nessa crise social, sabemos que o Encoberto pode voltar para fazer de Portugal novamente um reino solar, rico, onde então essas pessoas poderiam deixar a sua miséria. Os autos-de-fé também se constituem num momento de catarse coletiva, onde as pessoas podem queimar os hereges ou os sodomitas, mas ao mesmo tempo estão ali a gritar sobre as suas dificuldades e a sua pobreza. Acho que tudo isso está bem misturado.

A certa altura diz que as ruas «eram permanentemente vias-sacras». Nesse aspeto Lisboa era mais beata do que as outras capitais europeias?

Sim, porque você já tem uma certa laicização de cidades como Paris ou Londres. Os protestantes, sobretudo, são menos afeitos a esse tipo de celebração. Mas eu não chamaria beatos a esses personagens, chamo-lhes devotos. A fé é algo muito profundo que procurei não discutir. Faço minhas as palavras de Santo Agostinho, que dizia que para quem não acredita, nenhuma palavra basta; e para quem acredita nenhuma palavra é necessária. Acho que a religião era constitutiva da identidade portuguesa. Ela está na fundação de Portugal. Portugal nasce de um milagre, milagre de Ourique. As jovens eram empurradas para mosteiros, para conventos, onde passavam a ver diabos, viam Jesus, jogavam à bola com Jesus, alimentavam-se com Jesus, há essa presença permanentemente – Deus e o diabo – nessa cidade. E penso que o grande choque foi que os portugueses se julgavam uma cidade de Deus sobre a Terra e a determinado momento Deus teria esquecido a sua cidade e Lisboa ter-se-ia transformado nos sete círculos do inferno de Dante Alighieri. Essa crença muito arreigada, que vemos nas práticas, nas procissões, nas festas religiosas, nos autos-de-fé, é ameaçada no momento do terramoto e ao mesmo tempo deixa ver uma crise política muito grande, aquela que se dá entre Pombal, um ilustrado, que quer imitar as capitais estrangeiras, e uma parcela substantiva da aristocracia portuguesa, extremamente tradicionalista, e do povo português.

O retrato que nos deixa da cidade, através de diferentes olhares, deu-me a ideia de uma cidade um pouco estagnada. Lisboa precisava de um abanão, de ser sacudida, para abrir ou até respirar um pouco?

Paris e Londres eram cidades igualmente sujas, igualmente pobres, também com uma população vivendo numa desigualdade social muito pronunciada. Essas características só serão modificadas no séc. XIX com as grandes reformas urbanas. Londres tem mesmo de passar por um incêndio terrível para se reestruturar, para se reerguer, para se reinventar. Houve uma tentativa por parte de Pombal de modernizar o aparelho burocrático português, de fazer um Portugal mais identificado com o consumo sumptuário, a instalação de indústrias, e D. Maria, que é considerada uma rainha muito piedosa, vai manter essas iniciativas porque entende que são boas para o reino. Mas não sei se ele consegue realmente sacudir essa mentalidade que se cola à pele portuguesa de uma interpretação providencialista do terramoto, que vai fazer com que o padre Malagrida, um ano depois, invoque os pecados do Rei, ameace um novo terramoto, e acabe queimado num auto-de-fé para choque de toda a aristocracia tradicional.

Vamos então para o dia 1 de novembro de 1755, sobre o qual passaram recentemente 145 anos. Sabemos que o terramoto foi de manhã, por volta das 9h45. Como foi registada a hora? Li há pouco tempo que só com o aparecimento dos caminhos-de-ferro é que os relógios passaram a estar acertados todos pela mesma ‘bitola’ e que até aí a noção do tempo seria algo mais fluido. Como ficou registada a hora exata do terramoto?

Os ingleses já usavam relógios! Não eram relógios suíços, mas usavam relógios. [risos] E é justamente através desses relatos que temos o horário preciso. Sabemos também que foi no momento em que as pessoas estavam nas igrejas, e por isso a grande perda de vidas, sobretudo nos coros dos conventos, que desabaram em cima de centenas de padres e freiras, ou da aristocracia. As pessoas voltariam para suas casas depois da missa para fazer o repasto de festa do dia, e tinham deixado, nas suas casas, os fogos acesos na cozinha. Nessas casas, as cozinhas, diferentemente do Brasil, onde ficavam no último andar, eram em baixo e portanto o fogo propagou-se muito rapidamente. Mas sabemos o horário sobretudo graças aos ingleses, que foram até muito minuciosos nas suas descrições. Desde aquele indivíduo que estava de roupão e chinelos e desce para ir buscar a peruca, porque não quer sair na rua sem a sua peruca…

Como se se sentisse nu!

O número de pessoas de roupão é grande. Mas há também relatos terríveis, como o daquele homem que vê a mãe com a criança morta ao seio, ou aquele que ouve gemidos da governanta e corre para acudir e cai a parede em cima da governanta. Ou a famosa cena do conde de Perelada, o embaixador de Espanha, que detestava Lisboa, achava a corte muito provinciana, e ao sair de casa é esmagado pelo brasão de pedra dos Meneses, que ornamentava a fachada da casa e lhe caiu em cima.

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