Não se pode dizer que a publicação do romance O Mágico de Auschwitz, de José Rodrigues dos Santos (ed. Gradiva), em setembro deste ano, tenha passado despercebida, uma vez que se trata de um dos livros mais vendidos do ano. Apresentado como «ficção inspirada em factos reais», conta a história de um mágico judeu de Praga que se vê deportado para Auschwitz, onde acaba por cruzar-se com um legionário português recrutado pelos nazis. A história prossegue no segundo volume do díptico, O Manuscrito de Birkenau, publicado em novembro, onde é recriado, entre outros, o episódio da revolta de outubro de 1944 em Auschwitz-Birkenau, liderada por um grupo de prisioneiros do Sonderkommando, os judeus encarregados de tirar os cadáveres das câmaras de gás e de os reduzir a cinzas nos crematórios.
Se a colocação no mercado destes dois livros se processou sem sobressaltos, já uma entrevista do autor a Vítor Gonçalves, emitida a 18 de novembro na RTP, tem feito correr muita tinta. Tudo começou com um comentário do jornalista da TSF Carlos Vaz Marques, que partilhou no Twitter um excerto da entrevista da RTP, acompanhado destas palavras: «As câmaras de gás ou de como os nazis foram afinal bonzinhos e humanitários em Auschwitz. (Tinham-me contado, mas antes de ver não acreditei.)» Segundo Vaz Marques, que acusou o autor de «um desrespeito grotesco pela História», Rodrigues dos Santos afirmou que o gaseamento dos judeus teria resultado de uma decisão de ordem «humanitária». Rodrigues dos Santos respondeu que se limitara a citar um documento de um oficial nazi.
Às críticas de Vaz Marques seguiram-se as de Irene Flunser Pimentel, que considerou «absolutamente chocante a ignorância e a desfaçatez de José Rodrigues dos Santos». Tomando as imprecisões apontadas pela historiadora como a última palavra no assunto, o humorista Diogo Faro escreveu também no Twitter: «Este texto é tudo o que importa sobre a aberração no José Rodrigues dos Santos».
Acusado de «ignorância», de «negacionismo» e de «desrespeito», alvo de palavras fortes como «chocante», «grotesco» e «aberração», Rodrigues dos Santos apresenta os argumentos em sua defesa e explica porque se considera vítima de «uma campanha de ódio».
Neste processo houve alguma crítica ou acusação que o tenha magoado especialmente?
Admito que fiquei estupefacto com a livre adulteração do sentido das minhas palavras. A meio de uma entrevista sobre O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau, e falando de improviso sobre o processo que conduziu ao extermínio dos judeus, afirmei referindo-me aos nazis: «A certa altura há alguém que diz: ‘Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los’». Ou seja, a primeira frase, «a certa altura há alguém que diz», torna explícito que o que vou dizer a seguir não são palavras minhas. Pois resolveram fingir que a frase citada, da autoria de um nazi, era afinal minha. Considero este procedimento difamatório.
Em que contexto surgiu essa citação?
Estava a abordar um problema central no Holocausto: como foi tomada a decisão de exterminar os judeus? A historiografia atual tende a considerar que o processo decorreu por etapas. Primeiro, os nazis queriam forçar os judeus a emigrar. Quando a guerra começou e as fronteiras se fecharam, decidiram metê-los numa reserva especial na Polónia. Depois enfiaram-nos em guetos. Com cada vez mais gente a ser deportada, as condições nos guetos deterioraram-se e as pessoas começaram a morrer à fome. Impôs-se então aos nazis o que designaram como a Solução Final. Ponderando o problema, Himmler enviou em maio de 1940 um memorando a Hitler a discutir o envio dos judeus para Madagáscar e a opor-se ao «método bolchevique de extermínio físico de populações», alegando que o método dos comunistas russos «não é próprio de alemães e é impossível». Ficamos assim a saber que em 1940 os nazis já andavam a pôr a hipótese de extermínio e que sabiam das campanhas de extermínio de populações por parte dos comunistas na URSS, mas achavam que fazer o mesmo com os judeus era impossível e indigno de alemães. Então o que os levou a, no ano seguinte, tornar digno e possível o que até ali era indigno e «impossível»? A resposta é: racionalizaram o problema. E como o fizeram? Pondo esta hipótese: e se o extermínio fosse uma solução humanitária?
Há documentos que demonstrem essa mudança de atitude?
A racionalização está expressa no primeiro documento nazi que aborda explicitamente o extermínio dos judeus dos guetos e que já Hannah Arendt destacou. Depois de uma reunião de oficiais SS em Poznan em julho de 1941 para discutir o destino dos judeus na Polónia, foi enviada uma carta a Adolf Eichmann, que viria a ser o número três da hierarquia do extermínio, com esta proposta: «Deverá ser seriamente considerado se não seria uma solução mais humana eliminar os judeus, designadamente os que não conseguem trabalhar, através de um agente de morte rápida». Este documento é importante porque não só exprime pela primeira vez explicitamente a ideia de extermínio junto de um dos seus principais responsáveis, como permite tornar «próprio de alemães» o que no ano anterior não o era.
E, no seu entender, a motivação para gasear os judeus era ou não ‘humanitária’?
Parece-me óbvio que Hitler e o seu grupo nunca foram movidos por qualquer motivação humanitária, pois estamos a falar de zelotas que havia muito tempo queriam acabar com os judeus, e esta ideia permitiu-lhes racionalizar o passo seguinte. Uma vez ele dado, a decisão foi interiorizada e o argumento humanitário, útil naquele momento específico para viabilizar uma vontade que já andava no ar, um expediente rapidamente esquecido. Foi simplesmente isto que eu estava a explicar, embora de forma muito simples e breve, e na coloquialidade própria de uma entrevista televisiva. Como é que transformaram isto noutra coisa? Só os autores dessa campanha podem explicar.
Carlos Vaz Marques e João Pinto Coelho criticaram-no com base não nos seus livros mas na entrevista. Isso incomoda-o?
O que me incomoda é que se distorça caluniosamente o sentido das minhas palavras ou que se desmintam factos verdadeiros. As opiniões são livres, mas os factos são sagrados. Porém, tratando-se de uma entrevista sobre esses romances, há coisas que só se compreendem no contexto complementar dos romances. O rabino Shlomo Pereira, confrontado com esta polémica, escreveu-me justamente a dizer estar «pasmado mas com a convicção imediata de que quem comenta não leu os livros».
Irene Flunser Pimentel, autora de um livro recente dedicado ao Holocausto, acusou-o de «ignorância» e «desfaçatez» chocantes por ter referido no seu livro a existência de uma piscina e de uma «escola para meninos judeus» em Auschwitz. O que tem a dizer sobre estas acusações?
Ela fez mais do que isso: desmentiu tudo. Disse que a piscina não existia, a escola também não, os prisioneiros nunca se adaptaram. Tive de mostrar, através de testemunhos de sobreviventes e de vídeos, que havia de facto uma piscina em Auschwitz, que houve de facto uma escola em Birkenau, que os prisioneiros de facto se adaptaram às condições terrivelmente adversas que encontraram. Num posterior artigo para o Público, Irene Pimentel já não desmentiu a existência da escola nem a adaptabilidade dos prisioneiros a Auschwitz, reconhecendo implicitamente que eu falei verdade e ela não, mas insistiu que nunca houve piscina, embora reconhecesse que houve um reservatório ‘mascarado’ de piscina. Um exercício semântico. Por que razão haveriam os SS de querer mascarar o reservatório e fingir que era uma piscina? Não faz sentido, o reservatório não era um segredo de Estado. O que se passava é que aquele espaço tinha duas funções, a de reservatório e a de piscina onde os SS e alguns prisioneiros tomavam banho. Até o presidente do Yad Vashem no Brasil me escreveu a dizer que chegou a conhecer uma sobrevivente que lhe contou ter tomado banho nessa piscina. Como é possível que uma historiadora que publicou livros sobre o Holocausto tenha tentado desmentir factos verdadeiros?
Reafirma, portanto, que tanto a piscina como a escola existiam mesmo. Mas estas referências não podem dar uma ideia errada do que seria a vida naquele campo?
Presumo que o receio dos que me criticaram seja esse: que, ao mostrar a piscina e a escola poderia criar a impressão de que Auschwitz era um campo de férias. Posso compreender esse receio, mas ele parte de uma premissa absolutamente errada e contra a qual me insurjo: a de que devemos ocultar factos das pessoas. Talvez seja defeito profissional, mas considero a ocultação intencional de factos relevantes algo muito grave e revelador de desonestidade. Não temos de apresentar uma construção mítica de Auschwitz nem de submeter-nos a tabus sobre o tema. Temos de procurar apresentar Auschwitz como as provas nos mostram, com verdade, na sua globalidade, incluindo as suas contradições. Em que é que a existência da piscina conflitua com a existência das câmaras de gás? Nada. Bem pelo contrário, a presença simultânea de ambas acentua a incongruência daquele lugar. Essas incongruências e essas contradições revelam-nos aspetos fundamentais da condição humana.
Outra crítica que lhe foi feita foi por falar da adaptação dos prisioneiros. Não admite que falar sobre a adaptação a um lugar tão hediondo como Auschwitz possa ser problemático?
A adaptabilidade encontra-se no centro da própria evolução da vida. A sobrevivência não está sujeita à lei do mais forte, mas à lei do que se adapta melhor. No caso dos seres humanos, a adaptabilidade envolve também um fenómeno psicológico de normalização da realidade, que é um mecanismo de defesa a que o ser humano recorre para manter a sanidade perante a adversidade. Olhe para a pandemia da covid-19. Estamos num período em que morrem 80 pessoas num único dia… e ninguém se escandaliza. Mas em março, quando morreu a primeira pessoa, o Governo até apresentou condolências à família. O que mudou? Normalizámos a realidade. É próprio dos seres humanos normalizarem a realidade. Da mesma maneira, os prisioneiros de Auschwitz normalizaram a realidade. Não quer isto dizer que não sofressem. Sofriam, e muito.
Por vezes parece haver um certo distanciamento ou isenção no seu discurso. Mas é possível ser-se isento quanto se trata um tema como o Holocausto e o nazismo?
Enquanto ser humano, não. Enquanto profissional, é um dever. Reconheço que, quando comecei a investigar aprofundadamente Auschwitz, houve noites em que tive dificuldade em adormecer, tão chocado me sentia. Mas profissionalmente procuro manter sempre presente a lição dada por Renzo de Felice, o maior especialista italiano sobre o fascismo, que era oriundo do Partido Comunista Italiano. De Felice escreveu: «Quando um estudioso se encontra defronte de uma realidade tão complexa e dramática […] como o fascismo e o antifascismo – deve haver a coragem de fugir de escolhas de campo e de tomada de posições emotivas: os discursos moralísticos estão privados de sentido e de eficácia. Raiva e ressentimento, indignação e condenação são sentimentos que, a par da participação militante, deformam a correta interpretação histórica, inibem a reconstrução dos factos».
Recusa-se a formar um juízo moral, é isso?
Ao ouvir esses ‘polícias’ fica-se com a impressão de que só se pode falar de certos temas se forem incluídos os obrigatórios adjetivos qualificativos. Eu não preciso de adjetivar Auschwitz para mostrar o que Auschwitz realmente foi. Basta exumar os factos e apresentá-los, com toda a sua tragédia e as suas incongruências e contradições. São os factos e apenas os factos que nos revelam Auschwitz de forma mais completa. Os sobreviventes não querem uma mentira moralizante, querem que a verdade seja conhecida e nunca esquecida.
Admite que esta barragem de críticas e de ataques, que de resto não é inédita, pode configurar uma tentativa de silenciamento?
Só não vê quem não quer. Aceito que alguns sejam motivados por boas intenções, mas já reparou que as pessoas que pelas palavras mais pregam a liberdade e a tolerância são as que pelos atos mais policiam o pensamento e mais intolerantes são para com ideias diferentes? Há uma frase de Alexander Soljenitsine em O Arquipélago de Gulag que me parece encerrar o drama do nosso tempo. «Para fazer o mal, a primeira coisa necessária é acreditar-se que se está a fazer o bem». Soljenitsine enunciou-a para descrever a realidade criada pelo comunismo no seu país, mas parece-me que é válida para todas as escatologias messiânicas, incluindo o nacional-socialismo, e também para os censores que se arrogam o papel orwelliano de polícias do pensamento. Até podem ser animados de boas intenções, mas a quanto mal o policiamento do pensamento nos pode levar?
Na resposta por escrito que deu às críticas, publicada na Sábado, falou de má-fé. Acha que as suas declarações foram apenas o gatilho que trouxe à superfície algum preconceito, ou mesmo antipatia, que já existia contra si?
Penso que há motivações diversas de pessoas diferentes. Umas porque nunca ouviram falar em determinados factos verdadeiros e ficam genuinamente chocadas, outras porque pertencem a um determinado grupo a quem não convém que se fale desses factos, outras porque são levadas por comportamentos imitativos, outras por preconceito e antipatia… há decerto de tudo um pouco.
A que se devem, no seu entender, esse preconceito e antipatia?
A minha recusa profissional em deixar-me silenciar quando os factos que apuro são inconvenientes pesa nos grupos que são incomodados pela divulgação desses factos. Mas um investigador vai até onde as provas o levam, independentemente das conveniências. Nem todos o fazem. O historiador francês Marc Ferro escreveu sobre os tabus e os mitos da História, aquelas verdades que os historiadores não se atrevem a enunciar por serem temas interditos e mentiras que o discurso político-ideológico dominante impede que se desmontem. Sabe o que Ferro descobriu? Que muitos desses silêncios não são quebrados pelos historiadores, mas pelos ficcionistas. São frequentemente os ficcionistas quem pela primeira vez aborda um assunto proibido. Desencadeia-se então um escândalo, o escritor é vilipendiado, e só depois, com as barreiras já quebradas, é que o assunto pode ser tocado por todos. Quantos insultos o grande escritor socialista George Orwell teve de ouvir por ter publicado 1984? E, no entanto, foi esse livro que despertou a consciência geral para a realidade soviética. É por isso que eu falo no fundamental compromisso da literatura com a verdade. Não há literatura sem verdade. Mas dizer a verdade é mexer em interesses e fazê-lo gera antipatia.
Acha que o facto de ter referido que havia dez vezes mais campos comunistas pode ter irritado algumas pessoas?
Todas as verdades inconvenientes irritam algumas pessoas, mas não é por isso que nos devemos calar. A nossa função não é ser simpáticos, é dizer a verdade tal como a captamos. Não é por acaso que como diretor de Informação da RTP tive graves problemas com um Governo PS e com um Governo PSD/CDS e que em ambos os casos tive de me demitir, acusado por um ministro do PSD que tutelava a RTP do hediondo crime de ser «demasiado independente». Falei há pouco, citando De Felice, sobre a necessidade de separar a investigação da ideologia, de pôr de lado as emoções, os preconceitos e a indignação moral e concentrarmo-nos nos factos. Essa é uma obrigação de isenção. Mas isenção, tal como independência, não significa ser-se acrítico. Pelo contrário, só é realmente isento e independente quem mantém o espírito crítico. É o espírito crítico que nos torna inquisitivos e nos permite quebrar tabus e derrubar mitos, desmontar a mentira para chegar à verdade.
O paralelo entre os soviéticos e os nazis não será abusivo? O facto é que os soviéticos não mataram tão sistematicamente – nem por questões raciais – e, se provocaram tantos milhões de mortos, foi também porque detiveram o poder durante um período muito mais longo.
A história comparativa é um exercício delicado, mas não proibido. O facto é que Auschwitz não apaga a existência do gulag e o gulag não apaga a existência de Auschwitz. O gulag foi criado no tempo de Lenine e a sua existência prolongou-se por décadas. Nesses campos de concentração havia desde o início tortura, fome, escravos e mortes em massa, Soljenitsine fala numa taxa de mortalidade de um por cento ao dia, e milhões de pessoas foram para aí enviadas por culpa por associação: pertenciam à classe errada ou à etnia errada. Culpavam-nas, não por terem feito algo, mas pelo que eram. Será abusivo fazer o paralelo entre o gulag e os Lager? Sinceramente não sei. Não consigo dar uma resposta. Não posso, contudo, esquecer as amargas palavras de Soljenitsine em relação ao comunismo soviético: «Nenhum outro regime na terra se lhe compara no número de pessoas que matou, na dureza, no âmbito das suas ambições, no seu totalitarismo completo e feroz – não, nem o regime do seu aluno Hitler». E concluía: «Hitler era um mero discípulo, mas teve toda a sorte: os seus campos de morte tornaram-no famoso, enquanto ninguém se interessa pelos nossos».
No seu entender, em que medida é que as críticas tão contundentes de uma historiadora reputada como Irene Pimentel podem afetar não apenas o sucesso comercial deste livro, mas também a sua própria credibilidade?
Não faço ideia. Quero manter o respeito pelas pessoas e não embaraçar ninguém, mas não posso deixar de dizer que não compreendo que, sendo reputada, uma historiadora profissional desminta factos verdadeiros. Errar é humano, eu e toda a gente erramos, mas quando erramos acho que devemos corrigir o erro.
Apesar da agressividade das críticas de que foi alvo, a sua resposta é sempre bastante contida, quase cordata, tentando apenas rebater as críticas que lhe apontam. É por ‘urbanidade’ ou também por causa do seu estatuto e reputação que não responde na mesma moeda?
Quando abordo um assunto estou à espera de uma conversa civilizada. Isto não são questões pessoais, são questões profissionais. Num debate quem tem razão não precisa de usar o insulto e a descortesia, pois a verdade com naturalidade se impõe. São aqueles que estão no erro que sentem necessidade de apoucar, de amesquinhar, de intimidar e de insultar. Quando vejo os insultos já sei que o outro lado não tem argumentos e muito menos razão.