Ser um clássico é um pouco como andar por aí, ao alcance dos leitores e, sobretudo, dos outros, os que não encontram motivação para perder tanto tempo com papéis pintados com tinta. Seja como for, as obras que alguma vez traçaram entre as coordenadas dos melhores espíritos linhas monumentais vão-se aguentando, tantas vezes melhor do que as demarcações de sucessivos impérios, traficadas por esses que do papel fazem a carne ou a presença que os guie numa forma de vidência, a qual comporta também, como se sabe, uma boa dose de voyeurismo. Mas isso de se ser constantemente relido, de se estar agarrado com unhas e dentes à vida, mantendo-se inesgotável, tem também um lado um tanto rude, um gozo em provocar desacordos profundos. Como nos diz António M. Feijó, “a maioria dos textos literários canónicos foi avessa à sensibilidade do tempo, ou testou os limites dessa sensibilidade de modos memoráveis, e persiste, aliás, em muitos casos, em afrontar a sensibilidade e humanidade de quem lê”. Mas ainda pior do que um incómodo justificado, o reverso dessa fama passa ainda por se ser mal lido, suscitar interpretações absurdas, disparatadas, e significa também ficar à mão “dessas galhofeiras palavras, trocadas à pressa, no rumor da rua”, o que inclui, é claro, as afectações próprias de cada época, essas aflições que se vão sucedendo à margem daquilo que persiste, mas que tendem, pela sua natureza, a julgar que assumem uma perspectiva mais funda das coisas.
Já sabemos como “uma etapa a caminho de uma boa leitura pode falsificar o seu conteúdo” (Steiner), mas o que se sente mais amiúde é uma decorrência do hábito de ler pouco, ler mal, ler para se arreliar ou desgostar, não suspender esse juízo que vem a trouxe-mouxe e que é próprio, na verdade, daqueles a quem falta convívio literário, porque também os livros exigem silêncio. Se ninguém vai para o teatro e se põe aos berros com os actores no decorrer da peça, pouco sentido faz interromper um romance, chamar o autor à parte, e dizer-lhe que esta frase ou aquela são evidência de que se trata de um pulha. Assim, não falta quem precise que tudo seja alisado, que não exista qualquer sombra, qualquer momento de obscuridade, que cause um nervosismo nas convicções do leitor. A cada reedição dos clássicos, como há muito vinha avisando Steiner, há esta tendência para enxertá-los de notas de rodapé, e não só as explicações das referências culturais, não só esse eclipse do texto original provocado “por um oceano de comentários elementares”, mas também por esta prepotência de uma época que se julga sempre moralmente superior ao passado, que lhe vem corrigir a postura, que se enche de pruridos e quer atafulhar tudo de notas pedagógicas. Ou seja, já nem se admite que um texto literário seja perverso, ou sequer ambíguo, irónico, mais complexo. Tudo deve participar nessa formação das boas almas, e isto diz-nos muito sobre uma época de uma petulância confrangedora, num estado de emergência moralista, que ataca tudo, não deixa qualquer reserva a um pensamento sofisticado e que não atura que lhe venham atravancar as obras literárias de bem intencionadas notas de carácter sociológico, político ou seja o que for.
O preocupante é darmo-nos conta de que o desinteresse pela literatura nos nossos dias atingiu um tal ponto que quando dela se fala, na verdade, o que parece interessar é sempre outra coisa. E o exercício passa menos por ler os textos do que por tentar abalroar o seu sentido, e, deste modo, numa estupidez sempre bem intencionada, e que se agarra aos seus valores, vai-se originando um preconceito desolador, uma espécie de iliteracia que aborda o romance segundo convicções que lhe são exteriores. Às tantas, o que estas teses parecem pretender é que a literatura seja regulada e passe a funcionar como um concurso de beleza moral. Vemos, assim, repetirem-se essas elaborações teóricas algo delirantes e com muita pressa em abandonar o substracto da obra literária, o mundo que esta inventa ou recorta, a realidade que distorce singularmente, abdicando de a avaliar e criticar sob o ponto de vista que ela mesma propõe, para lançarem a coisa no interior de uma feroz controvérsia política à qual esta é alheia. E foi, de resto, contra isto, “essa atitude de pudicícia ofendida”, que se insurgiu Eça de Queirós numa carta a Fialho de Almeida, depois de este ter escrito uma crónica a indignar-se com Os Maias, não por os seus “golpes não serem bem destros, nem bem certeiros, nem bem úteis, nem bem claros, nem bem eficazes”, mas por atingirem a honra da capital portuguesa, a dignidade dos tipos que compunham aquela sociedade. Espantava-se Eça que logo aquele que tomava por um correligionário, um comparsa que tantas vezes viu “cair sobre os homens e as coisas do seu tempo, com um vigor, uma veia, um espírito, um éclat que fazem sempre a minha delícia”, mas que agora não lhe dava licença para, “com mais moderação, infinitas cautelas”, andar ao mesmo. E se admite que “o grosso cartapácio, com mil bombas, fervilha de defeitos!”, se admite que ele mesmo lhe encontra inúmeros defeitos, aquilo de que se admira é que o outro faça vista grossa sobre esses defeitos e se lance sobre ele “com indizível fúria” para acusá-lo de falta de respeito “pelas nossas virtudes, pela nossa elevação moral, pela grandeza da nossa civilização, e pelo esplendor de Lisboa como capital”. E é quando Fialho diz que os personagens de Eça são copiados uns dos outros, que este sente necessidade de lhe explicar o que vem a ser o seu romance, aquilo que pretende. Diz-nos que se trata de “uma obra que pretende ser a reprodução de uma sociedade uniforme, nivelada, chata, sem relevo, e sem saliências (como a nossa incontestavelmente é) – como queria V., a menos que eu falseasse a pintura, que os meus tipos tivessem o destaque, a dissemelhança, a forte e crespa individualidade, a possante e destacante pessoalidade, que podem ter, e têm, os tipos de uma vigorosa civilização como a de Paris ou de Londres”. Fica claro por isto que aqui se leu que antes dos africanos, dos pretos, são os portugueses, e mais especificamente os lisboetas, os primeiros a poderem tomar ofensa com a torrente do realismo queirosiano, pois foram eles o seu primeiro alvo.
A mira de Eça ainda nos segue. São suas algumas das mais achacantes, mais dolorosas expressões de abuso ou acinte social, há nas suas páginas uma troça permanente, o chiste, a pilhéria, porque por cá não se debate nem discute, antes se parola sobre os temas que já arrefeceram lá fora, quando nos entusiasma uma questão, parece já carcomida. Abundam na sua obra uma infinidade de comentários que rebaixam, que se apiedam do nosso provincianismo e macambuzice congénita. E prova disso é o uso reiterado da palavra “choldra” para se referir a Portugal. Como reforça Miguel Tamen, no texto que lhe dedica na obra “O Cânone”, Eça “é, praticamente sozinho, o responsável pelo vocabulário em que ainda hoje se lamenta o facto de Portugal”.
Ei-lo a deixar a coisa preto no branco: “Em Portugal há um só homem – que é sempre o mesmo ou sob a forma de dandy, ou de padre, ou de amanuense, ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te ir; sem mola de carácter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias. É o homem que eu pinto – sob os seus costumes diversos, casaca ou batina. E é o português verdadeiro. É o português que tem feito este Portugal que vemos.”
Mas se continuamos a engolir o nosso (mesmo que rastejante) orgulho e o lugar de Eça nunca esteve em causa entre as primeiras posições do nosso cânone literário, não deixa de ter graça que uma investigadora cabo-verdiana venha revelar algum melindre diante de umas palavras menos bondosas sobre os africanos postas na boca de um destes personagens que Eça pintou investindo neles o seu infinito repúdio e até repulsa. É sinal isto de que talvez faça mais sentido serem estes investigadores a trajarem uma batina com notas pedagógicas que os relembrem a eles mesmos e a quem com eles se cruze de que os seus escândalos representam algo como um súbito despertar para a dureza do desafio que a grande literatura nos impõe. A forma como o actual programa democrático a todo o momento instila em nós um sentimento de orgulho tantas vezes infundado gera estas figuras tão arrogantemente banais, e tudo faz para nos tornar leitores demasiado susceptíveis, que se chocam precisamente ao constatar como a posteridade de um nome possa ser “função da sua violência expressiva”. António M. Feijó deixa claro este confronto cada vez mais doloroso, ao notar que “uma democracia é, por natureza, fracturada, e uma virtude sua consiste na negociação perpétua, muitas vezes incivil, de tais fracturas. Tais fracturas são constantes. A pluralidade de interesses e de noções do que se considera ser um bem, público ou privado, é causa suficiente dessa constância”. Neste sentido, quando a investigadora Vanusa Vera-Cruz Lima recorre à teoria da raça, uma área de pensamento teórico contemporâneo que “revela como o racismo molda a realidade quotidiana do mundo”, para fazer uma releitura contemporânea de Os Maias tudo fica a postos para uma decisiva incompreensão, o que só pode resultar em disparate. Assim, Vera-Cruz Lima surge com os seus instrumentos de análise para uma realidade cuja missão é desapontá-la, e arranja-se com uns factos bem definidos, autenticados, com um ar sólido de pedaços de História, farejando em Os Maias assomos de racismo, opiniões passíveis de serem tomadas pelos leitores como incentivos a essa postura sobranceira, ofensiva, a de quem toma certas raças por inferiores.
Para Vanussa Vera-Cruz Lima, a linguagem do narrador “reproduz a superioridade da raça branca sobre a raça negra, evidenciada através do discurso, frases, escolha de palavras, pensamentos das personagens de que a raça branca merecia ter o poder absoluto sobre a raça negra”. “Ao celebrar extravagantemente a branquitude, o romance envia uma mensagem de que a negritude não é algo de que se orgulhar e, portanto, como o preto e o branco estão sempre em oposição, a glorificação de um, rebaixa o outro”, disse em entrevista à Lusa.
Para a doutoranda, “todas as personagens do romance são um produto do ambiente em que o branco é considerado superior em relação ao negro”, embora estas possam “ser divididas em camadas com diferentes intensidade, consciência e intenção”.
“João da Ega é o personagem em que o racismo mais se evidencia. De acordo com Ega, da mesma forma que Portugal aspira ser ‘civilizado’, os negros tentam agir como brancos fantasiando e vestindo a jaqueta do seu mestre”, ilustra.
Segundo a investigadora e docente, “há dois excertos em que João da Ega evidencia essas ideologias de forma bem intencional, quando descreve, em eventos sociais, a sua posição em relação à escravatura, defendendo-a para garantir os confortos da vida, e numa reflexão com Carlos da Maia, no final do romance, em que ele revela uma forte aversão ao facto de os negros estarem a fazer um esforço enorme usando certos acessórios para serem considerados imensamente ‘civilizados’ e ‘imensamente brancos'”.
Escreveu Eça (capítulo XII): “Ega declarou muito decididamente que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido quem era seriamente temido… Por isso ninguém agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse lícito dar vergastadas…”.
Vanussa Vera-Cruz Lima cita ainda uma outra passagem do capítulo IV em que a personagem João da Ega afirma: “Nós julgamo-nos civilizados, como os negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão”.
Esta professora de Português na Universidade de Massachusetts Dartmouth, nos EUA, onde está a tirar o doutoramento em Estudos e Teoria Luso-Afro-Brasileiros, faz questão de sublinhar, no entanto, que “as passagens raciais não retiram nem adicionam o valor que esta obra representa na literatura portuguesa”, mas criam “oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis”. Considera que a obra Os Maias é “uma ferramenta ideal para criar oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis, para que possamos atender às necessidades de todos os alunos”. “É um material para explorarmos valores e comportamentos relacionados com a raça que existiam na época, mas que continuam a manifestar-se em vários aspectos da sociedade actual”, adianta.
Mas poder-se-ia fazer uma pergunta simples para baralhar estes cálculos. E é esta: Será que ainda se pode representar um idiota? Parece que não, pois logo se corre o risco de um outro idiota vir ler tudo ao contrário, e interpretar num retrato ríspido e indelicado, afinal, um qualquer conteúdo nefando do ponto de vista da sã orientação numa sociedade multicultural. E, assim, do nada, de súbito, desentranham-se autos de acusação a partir de testemunhos prestados não pelo autor mas (imagine-se…) pelos seus personagens. E vai de extrair conclusões sobre os costumes daquele, os seus princípios, a sua moral ou opinião das coisas que, hoje, publicamente, tanto nos importam a nós. E, deste modo, qualquer génio do passado fica à mercê das amargas repreensões destes académicos com a sua agenda política.
Sobre este assunto, também o ex-ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, se pronunciou, lamentando que a autora da tese “não percebesse que o discurso ‘pro-escravagista’ do Ega no jantar dos Gouvarinhos era um gozo brutal do personagem para ‘épater’ a plateia.” E mais adianta: “Curiosamente todos os personagens percebem a piada, excepto o Senhor Sousa Neto, um idiota. Mas não quero insultar os que tomaram à letra as imprecações do Ega (‘os paradoxos’ como diz o conde de Gouvarinho) e as colaram ao livro e ao seu autor. O que me preocupa (e por isso digo que ‘já não se pode escrever assim’) é a total incompreensão da ironia que encontro em leitores que julgo cultos.”
E neste ponto, há que lembrar como o vice-presidente da Associação de Professores de Português, Luís Filipe Redes, logo entregou os pontos, e, em declarações à Lusa a propósito da palestra apresentada em fevereiro por Vanussa Vera-Cruz Lima em Darthmouth, afirmou que não é precisa “uma análise muito profunda para compreender os preconceitos raciais presentes em Os Maias e em outros textos de Eça”. Mas talvez seja por falta de uma análise profunda que se torna tão fácil aos leitores de hoje fazerem passar tratos de polé qualquer autor que teste os limites da sensibilidade e humanidade de quem o lê.
A inteligência escoicinhante que se encontra nas páginas prescientes de um enormíssimo escritor como Eça permite que, amiúde, as voltas que dá no túmulo se tornem audíveis, conseguindo nós ouvir-lhe ainda uns resmungos arrepiantes quando alguma das suas obras é espiolhada sem critério por esse progressivismo de bibe-e-calção. E basta irmos à Correspondêndia de Fradique Mendes para o ouvir vituperar contra a grossa asneira que agora se permite cutucar muito de lado Os Maias. “Com excepção de alguns filósofos escravizados pelo método, e de alguns devotos roídos pelo escrúpulo, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluidas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou – apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos ‘Este é uma besta!’ Aquele é um maroto!’”
E neste ponto retomamos a Carta dirigida por Eça a Fialho de Almeida, que abre de forma singularíssima, notando que os franceses falam do espalhafato que faz Satanás quando o mergulham numa “pia de mármore, cheia a transbordar de água benta da virtude”. É assim que qualifica a crónica daquele, que em vez de julgar os méritos do seu “livreco” com base no que este se propõe dar-nos chapada, com doses maravilhosas de pormenor, ironia e malvadez aquela sociedade lisboeta de finais do século XIX. E compara-se, neste majestoso passo de retórica, ao “venerável Pai da Mentira”, concedendo que seria uma escandalosa afronta pretender julgar os seus atributos enquanto ficcionista mergulhando-o na tal pia. E diz-lhe que pode imaginar “como Belzebu berrará e escoucinhará ao sentir o contacto untuoso do detestado líquido. Pois, querido amigo, eu escoucinhei e berrei, enquanto V., com mão dura e forte, me estava mergulhando na água benta da sua crónica sobre Os Maias”.
E agora podemos estender esta analogia rigorosa, e perceber como Eça, em resposta à tão apressada crítica do seu livro, não pediu outra coisa senão que o libertassem dessas funções menores entre quem se dedica às artes literárias, preferiu que lhe fossem consentidas, enquanto romancista, nada menos que as capacidades de um mentiroso arguto, e escolheu a mais indefensável das posições na escala desse equívoco que os puritanos apertam ao peito, julgando-se honrados por fazerem em todos os momentos a defesa da virtude. “Eu, com efeito, represento para V. Satanás, o pai de toda a falsidade. Eu sou aquele mafarrico que escolhe, para personagens do seu livro, não sei que janotas petulantes e estrangeirados, em vez de dar, nessas páginas, o lugar proeminente ao marquês da Foz, aos empreiteiros das obras do porto de Lisboa, aos rapazes beneméritos que foram premiados na escola, aos construtores do bairro Estefânia, ao Conselho de Estado, etc., etc.” E a esta lista poder-se-ia acrescentar hoje esse bando de rapazes e raparigas com as suas especulações beneméritas sempre à cata de algum pecado de natureza moral, susceptível de animar as hostes no que toca à etiqueta de uma sociedade que, mesmo quando se orgulha de atitudes progressistas, cedo resvala para juízos destemperados, para a tal atitude de pudicícia ofendida, e assim prova, curiosamente, o quanto a obra de Eça mantém o seu vigor mordaz ao falar-nos numa “sociedade uniforme, nivelada, chata, sem relevo, e sem saliências”. Mas para satisfazer a sanha destes juízes ligeiros, para que não o façam responder mil vezes nesses tribunais de recurso para que esses futuros figurões e figurantes reclamem a sua hora enquanto paladinos bondosos que saem em defesa desses valores que se aplicam e tão cedo estalam como verniz das unhas, Eça é quem logo confessa qualquer que seja o crime moral que pretendam colar à sua figura: “Eu sou aquele porco-sujo que pretende que as mulheres de Lisboa têm amantes, e que, nos jantares de sociedade, em vez de discutirem Hegel, o positivismo, e a psicologia (sic) das religiões, falam de criadas e de cabeleireiros! Eu sou aquele génio da maledicência, que afirma que os esplendores da Avenida são talvez inferiores aos da Via Ápia, e que a sociedade que a frequenta não é talvez nem a mais culta nem a mais original do Universo, etc., etc., por aí além.”
Aí está, e desta confissão retire cada um o que puder, à medida das suas conveniências ou do carácter que reste à sua inteligência. Mas, para não irmos embora cada um acenando ao funesto cortejo dos seus juízos ligeiros, lembremos o que mais detidamente nos foi dito sobre Fradique Mendes, nos aspectos em que este se aproxima de João da Ega, quando considera que o imperialismo europeu “pisa e retalha tão desassombradamente” a África, “como se sangra e se corta a rês bruta, para nutrir o animal pensante”. Neste personagem que nasceu como uma ficção colectiva assinada em comum com Antero de Quental e Jaime Batalha Reis ao tempo do Cenáculo, Eça ensaiou realmente uma consciência superior, alguém que viajou muito pela América do Sul desde o Amazonas até às areias da Patagónia; pela China e Índia, através da África Austral desde o Cabo até aos montes de Zokunga, isto nos diz o Dicionário de Eça de Queirós, da responsabilidade de Alfredo Campos Matos.
“O que tornava estas viagens”, dizem as Memórias e Notas, “tão fecundas como ensino era a sua rápida e carinhosa simpatia por todos os povos. Nunca visitou países à maneira do detestável turista francês, para notar de alto e pecamente os ‘defeitos’ – isto é, as divergências desse tipo de civilização mediano e genérico donde saía e que preferia. Fradique amava logo os costumes, as ideias, os preconceitos dos homens que o cercavam; e, fundindo-se com eles no seu modo de pensar e de sentir, recebia uma lição directa e viva de cada sociedade em que mergulhava (…) E estava tão homogeneamente numa cervejaria filosófica da Alemanha, aprofundando o Absoluto entre professores de Tubinga – como numa aringa africana da terra de Matabeles…” Eis, sucintamente, o que Eça considerava a atitude desejável de uma figura ideal da sua geração, do tal dandy aristocrata, rico, belo, cosmopolita, superiormente inteligente. E vale a pena notar ainda que Fradique Mendes, de acordo com aquela obra de referência nos estudos queirosianos, “nunca sancionou ele o despotismo e a violência dos europeus, mostrando sempre simpatia pelos costumes do vasto continente africano”. Adianta ainda que, tal como esta personagem, Eça “tinha natural afeição e respeito pelo Outro, procurando fundir-se com seu modo de pensar e de sentir”.
Quanto ao motivo desta abertura, “compreensão acolhedora, tão rara e original no seu tempo”, essa simpatia que em tantas das suas páginas é dirigida aos africanos, diz-nos esta obra de crítica que isso poderá justificar-se com base em circunstâncias biográficas: “Na verdade, nos anos que passou na casa do seu avô, em Verdemilho, conviveu Eça com Rosa e Matheus, o casal de africanos trazidos do Brasil. O velho escudeiro preto foi quem o iniciou no fabuloso mundo da ficção, ao lhe contar velhas histórias. Matheus, recorde-se, era tão estimado pela avó do romancista que, em testamento, ela lhe deixou uma herança de igual valor àquele legado instituído em favor do neto, garantindo-lhe a educação. Uma rara atitude mental e afectiva, herdada dos avós, que as ideias políticas e filosóficas bebidas na juventude irão desenvolver e firmar para sempre.”