A ditadura do feio

Um texto pode tratar de coisas más, sujas, desagradáveis, e assim ser grande literatura. Mas não é por tratar de coisas más, sujas e desagradáveis que se torna automaticamente uma obra-prima.

Diabos cornudos, carrascos grotescos, ceguinhos, tolos, mendigos andrajosos, velhas desdentadas… Quem disse que a arte é uma perpétua busca do belo? Dos Juízos Finais da Idade Média aos nossos dias, os exemplos abundam nas igrejas, galerias e museus: na arte – como na vida – a fealdade nunca deixou de ter o seu lugar de pleno direito.

O extraordinário, porém, é que, através da sensibilidade e do talento de um grande artista, até o feio pode tornar-se admirável. E, num certo sentido… belo. O pintor inglês John Constable dizia: «Nunca vi uma coisa que fosse feia». Talvez fosse um optimista, um lírico ou apenas um pouco míope… Mas a arte consegue de facto transfigurar o feio noutra coisa que causa prazer à vista e ao intelecto. Algumas décadas depois de Constable, Van Gogh diria algo parecido: «Vejo pinturas e desenhos nas cabanas mais pobres, nos recantos mais sujos». E como tinha razão!

Já na literatura, que também pode ser uma forma de arte, durante muito tempo certos temas, certos vocábulos e certas realidades estiveram interditos. Os livros enchiam-se de palavras delicodoces, a poesia só exprimia os sentimentos mais nobres e delicados. O século XX, como se sabe, varreu tudo isso à bruta. Mas já muito antes poetas malditos como Baudelaire e Lautréamont haviam desafiado a ‘moral burguesa’ e as regras do bom comportamento. Um dos poemas de As Flores do Mal (1857) descrevia a carcaça de um animal em decomposição:
«E as moscas zuniam à volta deste ventre pútrido
donde saíam negros batalhões
de larvas que escorriam como um líquido espesso…»

Hoje a beleza é coisa ultrapassada. O crítico de arte Arthur Danto falou mesmo da kalliphobia – horror ao belo – como «uma epidemia dos círculos vanguardistas desde o início do século XX». Pois eu diria que não são apenas os círculos vanguardistas: a rejeição do belo tornou-se uma espécie de voga.

E, aqui chegados, torna-se conveniente fazer uma distinção. Grandes escritores perceberam que a literatura pode falar de tudo, inclusive das coisas mais feias e sujas, de violência, de crueldade, dos instintos mais baixos. Dostoievsky e Henry Miller, cujos romances chocaram pelo desassombro, são excelentes exemplos disso. Nas mãos de um grande escritor esse material transforma-se em grande literatura.

O que se passa é que hoje se verifica uma tendência para confundir certas características, outrora proibidas ou mal vistas, com qualidade. O belo é desdenhosamente remetido para as revistas de moda, para os cartazes publicitários e para as caixas de chocolates. Sem que muitos se apercebam, impôs-se um certo culto, se não uma ditadura, do feio.

Mas tal como a maioria dos romances que só falavam de sentimentos edificantes não era grande coisa, também nem todos os livros ‘duros’, ‘incómodos’, ‘viscerais’ (para usar alguns adjetivos hoje muito populares) são necessariamente geniais. Van Gogh via pinturas e desenhos «nas cabanas mais pobres, nos recantos mais sujos». Mas isso era Van Gogh… Nas mãos de um aprendiz de feiticeiro, um recanto sujo não passa disso.