Vários juízes, constitucionalistas, professores e deputados têm-se recentemente pronunciado sobre como a última revisão constitucional angolana poderá estar a fragilizar a democracia naquele país. O que está em causa é, sobretudo, a retirada de parte da soberania do poder judicial, transferindo-a para a esfera do poder executivo – nas mãos de João Lourenço. O Nascer do SOL procurou aprofundar o debate, reunindo declarações de figuras proeminentes relacionadas com a Justiça e com Angola.
A Constituição angolana está em vigor desde 2010 e, deste então, não sofreu qualquer reforma. Contudo, este ano, João Lourenço propôs uma revisão constitucional com o argumento de que «foram identificadas situações que recomendam que se façam alterações pontuais», no sentido de adequá-las ao «actual contexto do país» – como pode ler-se na proposta.
Adão de Almeida, ministro de Estado e chefe da Casa Civil de João Lourenço, explicou à Lusa que a proposta procurará clarificar os instrumentos de fiscalização política, com o objetivo maior de uma melhoria da relação institucional entre o Presidente da República e a Assembleia Nacional.
A 18 de Março de 2021, a Assembleia Nacional angolana deu um parecer favorável à proposta de revisão constitucional com 150 votos a favor e a abstenção do principal partido da Oposição em Angola.
A UNITA absteve-se porque, embora concorde com a urgência de uma revisão da Constituição (tendo até anteriormente apresentado um conjunto de iniciativas fulcrais para esta), não concorda com um conjunto de reformas presentes na revisão proposta, e quer, por isso, discuti-la na especialidade. Além disso, demonstra-se preocupada com este timing, podendo este «ter como objetivo a não realização das eleições gerais de 2022», tal como disse Adalberto Costa Júnior, líder do partido, à Lusa.
Mas não só a UNITA levantou problemas quanto à Revisão Constitucional. A Associação de Juízes Angolanos (AJA) «repudiou com veemência» algumas alterações que esta propôs. Consideraram a proposta «um claro recuo naquilo que é a consolidação de um estado de direito, hierarquizando os tribunais e fragilizando o poder judicial», tornando-se por isso «uma verdadeira ameaça» para estes.
E que alterações são estas? Entre elas: a soberania dos tribunais passar a ser representada pelo Conselho Superior de Magistratura (um órgão administrativo, ou seja, da esfera do poder executivo) e ‘despir’ do estatuto de ‘órgão soberano’ os Tribunais de 1ª e 2ª instância, excetuando quando «tomam decisões judiciais». Embora exista quem considere tais mudanças como erros técnicos, outros consideram-nas intencionais e corporizações da vontade de João Lourenço em perpetuar-se no poder.
Rui Verde, investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Oxford, considera que a primeira alteração mencionada não passa de um «erro técnico sem intenções». Em declarações ao Nascer do SOL, explica que não vê «intenção de suprimir o poder judicial em Angola», precisamente porque «João Lourenço precisa de um poder judicial forte para efetivar o combate à corrupção», sendo que sem tal robustez esse combate seria um «fiasco». Admite, contudo, tratar-se de um «grande erro» pois «tentou-se criar uma espécie de hierarquia no poder judicial, sendo que este não dever ser hierárquico mas sim independente». Não obstante, considera a proposta de Revisão Constitucional «positiva e equilibrada», nomeadamente na questão da «independência atribuída ao Banco Nacional». Defende ainda que a revisão não atenta aos limites da Constituição e aos checks and balances de Angola – apenas os internos do poder judicial: «Ao introduzirmos um corpo estranho como o CSM estamos a dar a ideia de que há um chefe – uma espécie de general – no poder judicial, ou seja, a conceptualização do poder judicial deixa de ter uma perspetiva adequada do que é o poder judicial».
Lourenço quer ser todo poderoso, diz Mihaela Webba
Já Manuel Soares, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, que fala ao Nascer do SOL na qualidade de membro da União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa, considera a situação mais grave. Em primeiro lugar, descarta a possibilidade de incompetência ou «erro técnico». Afirma que estas alterações constituem uma ação intencional que busca «uma efetiva limitação do poder judicial» e que «atropela ostensivamente os seus princípios», revelando-se, todavia, insciente da razão que poderá ter levado a isto. Afirma que a independência dos juízes «pode estar em causa»: primeiro, porque esta alteração da composição do CSM «altera o equilíbrio de poderes, atribuindo um peso maior e excessivo aos membros de associação de política em detrimento da representação do poder judicial»; segundo, devido a «retirar-se a qualidade de soberania aos tribunais de 1ª e 2ª instância». Recorrendo a uma analogia, explica: «Se a soberania fosse um bolo, o que esta revisão está a fazer é cortá-lo às fatias e deixar as fatias maiores para o poder político e as mais pequenas para o poder judicial».
Também Mihaela Webba – especialista em Direito Constitucional, assessora jurídica do presidente da UNITA e deputada pelo mesmo partido – critica ferozmente a Revisão Constitucional, chegando a considerá-la ‘inconstitucional’. Concorda com Verde e Soares quanto ao facto de «a proposta de revisão feita pelo Presidente fragilizar o poder judicial, pois apresenta o CMS como o órgão representante deste poder». E acrescenta que «seria o mesmo que a Assembleia Nacional só ter soberania quando estivesse a legislar», reforçando que «os tribunais devem ser todos soberanos e não deve haver hierarquização de soberanias». Para Mihaela Webba, assim, «o poder judicial passa para as mãos do executivo». E atira: «Lourenço fez uma reforma a pensar na longevidade do seu mandato. Quer ser o senhor todo-poderoso. Nem Eduardo dos Santos quis colocar tantos poderes no Presidente. A Constituição já coloca poderes excessivos no Presidente da República, e ele reforça-os».