Os três “florentinos” em Luanda

Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Augusto Santos Silva participam na próxima semana, na capital angolana, em mais uma cimeira de chefes de Estado e de Governo da CPLP.

Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Augusto Santos Silva são as três personagens ‘florentinas’ da vida política portuguesa – a adjetivação é do historiador Lourenço Pereira Coutinho, num artigo de opinião do Expresso, e faz todo o sentido. Enfim, se não tivermos em conta que os políticos florentinos rivalizavam entre eles com relativa impunidade. 

Mas esta ideia que remete para os políticos do renascimento italiano serve para falar da sua «inteligência, diplomacia, astúcia, pragmatismo e doses generosas de cinismo». A relativa surpresa para o historiador é o facto de só agora ter reparado no outro «político florentino» do Governo, «este mais discreto e fiável», que é Augusto Santos Silva. Fátima Bonifácio, outra historiadora, num artigo no Público, escreve sobre Santos Silva: «Exímio manipulador, capaz de quase tudo para defender a sua causa, a causa do poder, a causa da oligarquia endogâmica que preside os nossos destinos». 

No passado fim de semana, Augusto Santos Silva, e depois de ter criado um ‘facto’ político com uma entrevista de vida – escapou-nos a quase todos o seu caráter ‘florentino’ –, obrigou o primeiro-ministro a declarar que «não está prevista nenhuma remodelação no horizonte».

Mas coube ao ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros conduzir a extraordinária viragem no caso Cabrita, a imoralidade mudou de rumo e passou a ser outra, a utilização do acidente como argumento político, e funcionou, de tal forma que Rui Rio, líder do PSD, foi levado a dizer «penso que sim, penso que é imoral tirar vantagens políticas do desastre que houve com o carro do ministro da Administração Interna». 

E não foi só Santos Silva que falou em nome da imoralidade, Carlos César, o presidente do PS, a partir da sede do partido, no Rato, afirmou que «o que me parece inacreditável, custa mesmo a ouvir, é fazer críticas a um ministro com base num acidente do qual resultou uma morte e no qual evidentemente o ministro não pode estar envolvido enquanto titular de um cargo político».

E o assunto do ministro da Administração Interna está por agora adiado, no entanto, e como também escreve Bonifácio, «casos como este desacreditam a democracia. Os golpes de Estado passaram de moda. Hoje em dia, a democracia destrói-se por dentro». 

A tudo isto está atento o Presidente da República, e a pressão que tem colocado sobre o Governo, ou melhor, sobre António Costa, tem vindo a acentuar-se nas últimas semanas, tudo por causa da pandemia, sendo, como diz Marcelo, que «há mais vida para lá da pandemia».

E esta semana deu sinais claros disse mesmo, quando reuniu com a Associação Business Roundtable Portugal (BRP), que agremia os 42 líderes das maiores empresas a trabalhar em Portugal, e a SEDES, o grupo de reflexão criado nos anos 70, no início da ‘primavera marcelista’, congregando os moderados que queriam mudar o regime por dentro, muito ligados à ‘ala liberal’, e por quem, naturalmente, o Presidente tem a maior estima. Marcelo já assegurou que estará presente no encerramento do V Congresso da Sedes, em 5 de dezembro, no Campus da Nova SBE.

E ao que tudo indica, ontem como hoje, o grupo de pensadores que inclui pessoas ligados ao PS, PSD e CDS, «quer dar de beber a quem tem SEDES» – um slogan da altura – com uma visão reformista para a próxima década, o que soa mesmo a sapato para o pé do Presidente.

É neste clima de, ainda, amena tensão entre o Presidente da República e o primeiro-ministro que ambos vão viajar para Luanda, na companhia de Augusto Santos Silva, para participarem na XIII Cimeira da CPLP. E é em Luanda que António Costa vai celebrar o seu 60.º aniversário, certamente com um e com outro. Os três ‘florentinos’ da política portuguesa vão estar juntos, num momento simbólico da vida do primeiro-ministro e quando tanto se discute o seu futuro para além de 2023. 

E enquanto alguns discutem se Costa sai ou fica no Governo e no país, debate que o próprio vai condimentando a gosto, e entretidos ou distraídos com José ‘Joe’ Berardo e Luís Filipe Vieira, o ministro da Administração Interna cola os bocados da sua ação política, e não por acaso, anunciou, por estes dias, a suspensão da reconversão da ala da prisão de Caxias em centro temporário para imigrantes.

E a fechar a semana explicou que não se justifica «uma Polícia para estrangeiros», na Assembleia da República, num debate para discutir a proposta do Governo que define a passagem das competências do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para a PSP, GNR e PJ. Temos, então, que não se passa nada até se passar alguma coisa.

Amigos improváveis 

Durante o primeiro mandato do Presidente da República, tivemos dois homens e quase o mesmo discurso: Marcelo e Costa atravessaram as primeiras vagas da pandemia na mesma onda. E, de repente, tudo mudou. Nas páginas deste jornal, e citando Miguel Poiares Maduro, escrevemos «Marcelo vai fazer Costa pagar por o ter desautorizado». 

Aconteceu há um mês, quando o PR disse «comigo o país já não volta atrás» e o PM lembrou que cabe ao Governo tomar as medidas a cada momento. De então para cá, há uma camada de gelo fino que se quebra e revela o dissídio entre PR e PM, que terá, certamente, um intervalo a Sul, a cimeira da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) assim o exige, e o aniversário do primeiro-ministro pode funcionar como a cereja no topo do bolo da celebração.

Mas, depois, estaremos de volta à política doméstica e, quem sabe, à necessidade de um e outro fazerem uso das suas ‘generosas doses de cinismo’ para que a relação entre Belém e São Bento não seja mais um fator de instabilidade ou de erosão do Governo, ou seja, do primeiro-ministro.

Entretanto, António Costa gere como ninguém a comunicação política com o tal espírito florentino, é quase brilhante, e este por estes dias estaremos a discutir o umbigo do primeiro-ministro, ou o tabu se é ou não candidato a primeiro-ministro em 2023. A esmagadora maioria das evidências apontam para que seja, afunilando uma carreira política de Costa na realidade doméstica, porque, dizem, Costa não é Barroso. Outros há, menos, que dizem que talvez não. 

Muito recentemente, o primeiro-ministro afirmou que «a ideia de que a Europa é governável por um diretório franco-alemão acabou». A Europa tem de mudar, diz o primeiro-ministro português, e a Europa vai mudar, dizem as sondagens que apontam para ganhos dos partidos da direita. E que papel é que António Costa quer desempenhar na Europa da mudança, se é que pode desempenhar algum? 

A 1 de maio de 2023, Charles Michel, o presidente do Conselho Europeu deixará o cargo de dois anos e meio. Em tempos o primeiro-ministro disse que quando foi convidado para um cargo europeu, em 2019, «não era o momento» e que agora não há um cargo disponível. Poderá haver, em maio de 2023. Em 2023 Costa, e não se sabe em que circunstâncias, entrará num terceiro mandato como primeiro-ministro, e será que vai mesmo a jogo? Para quê? Para gerir declínio e erosão? Teremos dois anos para todas as respostas, por agora Costa criou um tabu que vai fazer durar, pelo menos, até ao congresso dos socialistas marcado para o final de Agosto. Entretanto, viaja para Angola.

E se Costa segue de perto a política angolana, pode ter no Presidente João Lourenço um exemplo de como fazer as coisas, ou seja, várias foram as vezes em que o Presidente angolano fez nomeações e exonerações em vésperas de partir para o estrangeiro em viagem oficial, deixando, aqui e ali, o país a arder. Poderá Costa fazer o mesmo, e, se assim for, no início da próxima semana, o ministro das golas inflamáveis pode ser substituído. Costa falou do horizonte, mas disse se no fio do horizonte estava o fim de Eduardo Cabrita no Governo. 

CPLP entre a mobilidade e os direitos humanos 

Há um par de semanas, o principal jornal da Televisão Pública de Angola (TPA), fez um editorial duríssimo contra os órgãos de comunicação social portugueses devido à forma como os assuntos da Justiça angolana são tratados em Portugal, especialmente quando envolvem ministro angolanos que funções. A acusação foi de que os media portugueses fazem campanhas de «desestabilização» e «ingerência abusiva» em assuntos de outros Estados. O tema foi relativamente debatido em Luanda e quase nada em Lisboa, mas lançou sinais de alerta nos meios diplomáticos.