“Ser refugiado é como ser um animal numa jaula”

Mustafá Karaali, 34 anos, repórter de guerra, fez na Síria, onde nasceu, a cobertura da Primavera Árabe – a revolução, nascida de protestos populares, que prometia levar a democracia a todo o Médio Oriente e Norte de África.

Sentiu o sopro quente da esperança e o medo frio da morte. Em 2012, foi sequestrado por um grupo extremista islâmico com dois colegas de profissão – um deles foi o primeiro jornalista filmado a ser decapitado, e do outro ainda hoje se desconhece o paradeiro. Nessa época, ele também morreu um pouco. Passados dez anos, Mustafá Karaali, agora refugiado na Turquia, fala com o Nascer do Sol  daquele e destes tempos que vai arquivando na memória. Ser refugiado, diz, «é como ser um animal numa jaula, não ter pátria, não ter família nem amigos, ter a memória rodeada de cadáveres, os do passado, os do futuro». Roubaram-lhe quase tudo, mas não perdeu o dom precioso da indignação moral, o poder da gargalhada e a necessidade natural de chorar.

É um repórter com a cabeça a prémio no seu país: se o apanham é executado. De que o acusam?

Sou procurado por traição ao Estado porque trabalho com agências de comunicação social americanas: segundo o regime sírio, tudo o que faço é contra o meu próprio país. É esta a noção que têm do direito de informar e da liberdade de expressão, mas eu trabalho para o mundo, para o meu povo, para desmascarar as atrocidades cometidas por [Bashar al-] Assad [Presidente da Síria].

Tudo começou com a Primavera Árabe, faz agora dez anos, quando se pensou que a democracia podia chegar ao Médio Oriente e ao Norte de África. Estava na Síria nessa altura?

Não, estava no Dubai desde 2006, onde era cameraman do Canal Oriente. Saí da Síria quando ainda não tinha terminado a faculdade (tinha 20 anos) e decidi ir para o Dubai exatamente por não haver liberdade de expressão. No meu país, um jornalista ou escreve sobre plantas e animais ou faz a propaganda do regime. Por outro lado, faço parte de uma família de oposicionistas e o meu pai esteve preso. Só no Dubai, por pesquisas na internet, aprofundei o meu conhecimento sobre os massacres perpetrados no regime de Hafez al-Assad [Presidente da Síria entre 1971 e 2000 e pai de Bashar], um dos mais repressivos da região. Por isso, mal chegaram as primeiras notícias sobre a Primavera Árabe, decidi que tinha de voltar ao meu país, para ser mais uma peça da revolução e documentar os protestos com a minha câmara. 

Por que foi preso o seu pai?

Foi em 1982, ainda no tempo de Hafez Al-Assad, quando se deu o massacre levado a cabo pelo exército em Hama. O regime recrutou homens que já estavam na reserva – como era o caso do meu pai – para reprimir a rebelião de islâmicos sunitas. Mataram cerca de 25 mil pessoas, a maioria civis, e no exterior Assad foi acusado de ter conduzido o mais mortífero ataque contra o seu próprio povo em todo o Médio Oriente. O meu pai recusou ir e esteve preso nove meses. Quando saiu, não lhe deram mais emprego na função pública e teve de emigrar para a Grécia, deixando a família para trás.

Como sobreviveram?

O meu pai era engenheiro mecânico, conseguiu trabalho e enviava-nos dinheiro. Mas eu cresci sem saber por que é que isto acontecera. Quando perguntava à minha mãe por que é que ele não vivia connosco, ela respondia sempre que havia coisas de que não se podia falar porque as paredes tinham ouvidos.

Quando foi para o Dubai, já tinha feito o serviço militar?

Não, ainda era estudante, e essa foi também uma das razões que me levaram a ir para lá. Bashar al-Assad, após a morte do pai, subiu ao poder e as mudanças prometidas ficaram pelo caminho. Eu não estava para servir no exército do regime.

Qual foi a sua reação quando começaram os protestos? 

De euforia, claro. A Primavera Árabe, apesar da forma como acabou, foi dos momentos mais bonitos da história do mundo. Diversos países do Médio Oriente e do Norte de África, como a Tunísia, a Líbia, o Egito e a Síria, uniram-se e acreditaram que se podiam livrar dos tiranos. Tudo começou com uma onda de protestos pacíficos em que se pediam coisas tão simples como a democracia, a liberdade e melhores salários. E eu não podia perder a oportunidade de viver aquele momento. 

Diz que foi dos momentos mais bonitos do mundo, mas fracassou. Alguns desses déspotas foram depostos, houve eleições livres mas que acabaram por dar a vitória a extremistas islâmicos, como aconteceu no Egito. Assad resistiu e, com uma fúria assassina, caiu sobre os rebeldes, o que desencadeou uma guerra civil que dura até hoje. Contava com isso?

Não, de todo. Mas Assad foi muito hábil nisso. Estavam na prisão de Saydnaya, havia 15/20 anos, 1.400 homens que pertenciam a grupos extremistas islâmicos, ele mandou libertá-los e espalhá-los por todos os cantos da Síria. E a partir daí, não sei mesmo como, esses homens transformaram-se em líderes rebeldes. Começaram a pedir às pessoas para lutarem com eles, e assim começou a época da jihad. Foram momentos horríveis, em que sírios lutaram uns contra os outros.

E foram eles que tramaram a nossa revolução: com os extremistas islâmicos ao barulho, Assad pode dizer ao mundo que não estava a matar pessoas inocentes, mas a lutar contra terroristas. Mas ele contou com países como os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita, o Qatar. Países cujos líderes tinham medo de que esse ‘cancro’, como apelidavam a revolução, também lá chegasse e os fizesse cair da cadeira. Foi assim que se desmoronou a Primavera Árabe e se regrediu a um obscurantismo medieval.

Quando regressa à Síria, estabelece relações com a oposição. Já lá conhecia alguém?

Fui para a minha cidade – Binnish, no noroeste da Síria – e, através de amigos com quem tinha feito o liceu e a faculdade, juntei-me à revolução. Levava sempre a câmara comigo. Tinha contactos com as agências noticiosas Reuters e Associated Press (AP) e enviava-lhes as fotos, para mostrar à comunidade internacional que a população estava a protestar, que o regime estava a matá-la e que era necessário a intervenção das Nações Unidas.

O que mais o impressionou nessa fase?

O cerco e a morte de todos os habitantes da cidade de Taftanaz, a sete quilómetros da minha. O exército chegou lá com tanques e encurralou-os, enquanto os aviões bombardeavam. Estiveram lá três dias. Nunca mais me esqueço do odor da cidade quando lá entrei. Era um cheiro muito mau. Pensei: «Isto é o cheiro da guerra». Não se via ninguém. Dei com um gato pequeno, ainda vivo, no meio dos destroços, e libertei-o. Foi a minha primeira foto lá.

Pensei que as pessoas tinham fugido e que só os animais estavam em apuros. Fui andando pela cidade, até que entrei numa enorme mesquita, onde deparo com 70 corpos… de mulheres, crianças, homens idosos e jovens. Todos mortos com tiros na cabeça. Um a um. Tentei fotografar, mas o cheiro era tão mau, tão mau – porque as pessoas tinham sido mortas há três dias –, que desisti. Tapei a boca e o nariz com o meu cachecol, mas quando ia fazer a foto tive de fugir para vomitar. Entrei e saí várias vezes para vomitar, sem conseguir fazer uma foto. Pensei que não ia conseguir.

Mas a necessidade de passar aquelas imagens da execução de civis para a comunidade internacional, de desmascarar aquele assassino, desbloqueou-me. Estava convencido de que, com aquelas fotos, ia desmascarar Assad e convencer as Nações Unidas a intervir. Mandei tudo para a Human Rights Watch [organização internacional de defesa dos direitos humanos], para eles verem os corpos e como eles foram executados. Mas esperei meses sem qualquer resposta. Foi por isso que as pessoas se foram armando. Primeiro, aguardaram calmamente pela ajuda das Nações Unidas e depois perceberam que tinham de ser elas a protegerem-se e começaram a armar-se.

Ao publicar as suas fotografias, não temeu as consequências, não teve medo da reação do governo?

Sim, claro que tinha medo. Tomei cautelas: não dormia em casa e andava por casas de amigos. Mas o exército do regime foi à minha cidade para me prender, destruíram a minha casa e levaram o meu passaporte.

E a sua família não sofreu represálias?

Nessa altura, a minha família também já tinha fugido. Mais tarde, as forças de Assad, quando já não conseguiam entrar nas cidades que estavam nas mãos da oposição, começaram a usar uma estratégia inspirada nos seus aliados russos. Quando a oposição atacava bases militares, eles retaliavam a partir das suas, bombardeando aleatoriamente as cidades. A minha casa foi atingida por duas vezes, perdi um irmão com 24 anos e uma sobrinha com 7. Ele já matou milhares de civis com este método.

Atualmente também?

Ainda há poucos dias, os russos bombardearam uma casa em Idlib, mataram uma mulher e os seus quatro filhos enquanto dormiam. As crianças ficaram completamente desfeitas. Há um vídeo no Instagram que se tornou viral, com uma legenda a dizer «por favor, protejam os civis», em que aparece o pai a chorar e a segurar o braço de um dos filhos enquanto tenta agarrar na cabeça de outra delas. Horrível. Mas a comunidade internacional, passados 10 anos, já esqueceu os sírios. Ninguém quer saber.

Quando as pessoas se começam a armar e rebenta a guerra civil, de que lado fica?

Quando a guerra civil começa, sem que as Nações Unidas nos tivessem tentado ajudar, forma-se o Exército Sírio Livre e uma série de grupos jihadistas, como o Jabhat al-Nusra (um ramo da Al-Qaeda), o ISIS, etc. E, como já disse, muitos sírios começaram a juntar-se a esses grupos jihadistas e acabaram a matar-se uns aos outros. Aí, decidi dar um passo atrás, afastar-me dos rebeldes e cobrir apenas a guerra.

Não tinha experiência de guerra. Como é que se safou?

Estive para morrer três vezes [risos].

Mas não foi uma experiência mística…

[Risos] Uma vez, estava a ir para uma batalha com um grupo rebelde e o líder perguntou-me por que estava a ir com eles. Disse-lhe que ia cobrir a guerra, mas ele nem sabia o que isso era e perguntou-me: «Por que vais tirar fotografias? Isso é útil?». Estive ali um bom bocado a dar-lhe uma lição de jornalismo, até que ele mudou de tema: «E vais para a luta sem arma?». Tentei, em vão, explicar-lhe que a minha arma era a câmara, mas ele exclamou que isso não era permitido, que assim ia morrer, e passou-me a arma dele. Recusei e insisti que a minha arma era outra.

Ele, já muito irritado, disparou: «Estás a tentar chatear-me a cabeça? Isso é a tua arma?». Tentei fazer-me ouvir mais uma vez: «É assim, eu não preciso de arma porque tu e os teus homens protegem-me. Eu faço as fotos e o mundo inteiro vai perceber que o Assad é um criminoso de guerra.» Mas não o convenci. Passou-me uma granada para a mão e deu-me um conselho: «Se fores cercado pelo exército, tira a tampa e atira a granada para cima de ti.»

As minhas mãos tremiam com o medo. Mais tarde, quando estavam todos na linha da frente, eu só pensava que o raio da granada podia explodir a qualquer momento. Então, decidi enterrá-la no chão e fugi. No final, ele perguntou-me pela granada e eu disse-lhe que a tinha atirado contra os inimigos. Ficou todo contente [risos]. 

Nunca tinha estado num palco de guerra e teve de se desenrascar.

Tive de aprender a sobreviver. Noutra situação, essa sem graça alguma, estava com um grupo de pessoas que também não tinham qualquer experiência militar e tentavam fazer um buraco na parede de um prédio para colocar uma bazuca e destruir uns tanques que estavam a 200 metros de nós. Toda a gente estava a fumar e a beber chá (mesmo na linha da frente havia sempre um bule de chá…).

Um dos rebeldes tinha um walkie-talkie para espiar o exército, e, de repente, ouve-se: «Está a sair fumo daquele edifício, expludam com aquilo.» Quando ouvi a ordem, em vez de sair do prédio e esconder-me noutro ao lado e deitar-me no chão, escondi-me nas traseiras do edifício onde estávamos. Sentei-me de cócoras, com o corpo contra a parede e a cabeça nos joelhos.

Em poucos segundos, explodiram com aquilo. Morreram nove pessoas. Só via corpos à minha frente, pessoas que tinham perdido mãos, cabeças… Sobrevivi, mas deitava sangue pelos ouvidos e até hoje tenho problemas: sempre que há barulhos muito altos, fico com dores horríveis de cabeça e deixo de ouvir. Depois, fui resgatado e levado para um hospital de campanha. Foi no terreno que fui aprendendo.

Em 2012, conheceu dois repórteres de guerra com tarimba, o americano James Foley e o inglês John Cantlie. James acabou por ser decapitado pelo ISIS e até hoje não se sabe o que é feito de John. Estava com eles quando foram sequestrados. Qual foi a importância destes dois homens na sua vida?

Quando comecei, não sabia nada sobre fotografia de guerra nem como me proteger numa batalha. Andava lá no meio, a tentar usar as minhas habilidades básicas de sobrevivência. Mas eram habilidades muito más, como já deve ter percebido. O James e o John foram muito importantes no meu crescimento profissional e humano, fizemos vários trabalhos juntos e ensinaram-me técnicas de defesa. Eram profissionais, tinham estado em muitos palcos de guerra. O John, por exemplo, fez a cobertura da guerra no Iraque, na Somália, na Líbia e no Afeganistão. 

Se ele fosse vivo, deveria estar a cismar bastante com esta retirada dos EUA do Afeganistão.

Estaria com certeza muito revoltado. A América não fez nada no Afeganistão. Só fizeram merda. Foram 20 anos a perder rios de dinheiro, mataram milhares de pessoas para depois deixarem os talibãs regressarem ao controlo do país, ou seja, voltou-se à estaca zero. E deixaram tudo como agora vemos, sem nenhum plano para o futuro. E são os responsáveis pela morte dos meus amigos.

Considera que os EUA foram responsáveis pela morte de James?

Claro! Os EUA diziam que nunca negociavam com terroristas e não pagaram o resgate que os jihadistas pediam pela entrega dele. O James só foi executado em 2014, logo a seguir o exército americano invadiu a Síria. Eles tinham cometido um grande erro ao invadirem o Afeganistão e o Iraque.

Os americanos estavam muito descontentes e eles, para entrarem na Síria, tinham de ter a opinião pública do seu lado. Por isso, quando o James, em 2014, foi decapitado, já podiam dizer que os terroristas tinham matado um deles e conseguiram o pretexto para entrar na Síria.

Dois outros jornalistas espanhóis, o Javier Espinosa e o Ricardo Vilanova, também foram raptados por um grupo armado ligado à al-Qaeda mas foram libertados, no mesmo ano em que o James foi assassinado, porque o governo do seu país pagou o resgate. Os EUA, porém, precisavam de mártires e de mostrarem que havia terrorismo na Síria para lá porem o pé. Era a sua política. Um nojo.

Como conheceu o James e o John?

Foi durante um protesto na minha cidade. Um amigo ligou-me a dizer que eles precisavam de ajuda porque não conheciam a região e ele não sabia falar inglês. Ficaram em minha casa, falámos muito sobre a situação na Síria, sobre a guerra, e ficámos amigos. Mas de início eu odiei o John, odiei mesmo.

Porquê?

Quando nos conhecemos, mostrei-lhe as minhas fotos e ele disse logo que eu tinha muito para aprender e que me ensinava se eu aceitasse todas as críticas que ele me fizesse, sem as discutir. Fizemos um acordo. Nesse mesmo dia, fomos cobrir um combate e fiz centenas de fotos.

Quando voltámos para minha casa, ele abriu o computador, introduziu o cartão de memória da minha câmara, deu uma vista de olhos e começou a apagar, apagar, apagar. Foi tão estranho ver alguém a apagar as fotografias que eu tanto me esforçara para tirar que fui agressivo: «Mas o que estás a fazer?». E ele respondeu-me: «Questionaste-me, quebrou-se o acordo!». «Mas tu não me ensinaste nada!», disse eu. E ele retorquiu: «Ok, vou começar a ensinar-te a partir de agora.» E durante um mês escolheu as fotografias por mim.

Era um estilo…

Foi o meu verdadeiro professor, mas era um verdadeiro trouble maker.

Por que diz isso?

Ele criava-nos muitos problemas. Era um tipo corajoso, mas completamente maluco. Corria para a frente dos tanques, foi atingido num pulso numa explosão e outra vez numa perna, parecia não temer a morte: estava sempre a tentar tirar a sua melhor fotografia, mas era muito falador. Vou dar um exemplo.

Numa das ocasiões em que ele ia regressar a Inglaterra e estava a fazer a retirada pela Turquia, foi raptado pela primeira vez por um grupo jihadista. Foi muito torturado, mas conseguiu fugir, apesar de o terem atingido numa mão. Passado um tempo, ligou-me a dizer que ia voltar e que queria que eu fosse com ele a Alepo. Disse-lhe que corria perigo, que tinha todos os grupos jihadistas atrás dele, mas não o dissuadi.

Quando lá chegámos, havia muitos jihadistas estrangeiros nas ruas e alguns falavam inglês. O Exército Sírio Livre avisou-o para não falar com eles. Mas ele não resistiu. Foi-lhes tirando nabos da púcara, até que um deles lhe perguntou se conhecia o jornalista britânico John Cantlie.

Conheceram-no?

Aparentemente, não. Tinham esbarrado nele, mas não lhe conheciam o rosto. E ele ainda lhes perguntou por que o procuravam, ao que eles o informaram que esse jornalista era procurado por ter fugido de um grupo jihadista. Nesse momento, percebi logo que ele estava em apuros e pedi ao Exército Livre Sírio para nos tirar dali, ou morríamos todos.

O James era da mesma têmpera?

Muito diferente. Também tinha muita experiência e coragem, mas era o oposto de John; era uma pessoa muito reservada e de grande sensibilidade. Lembro-me de uma vez irmos a um hospital de campanha e de ele ter começado a chorar quando viu uma série de crianças mortas. Sentou-se ao meu lado e perguntou-me o que é que eu achava que era mais necessário para a Síria naquele momento. Falei-lhe em equipamento médico – e ele conseguiu mobilizar gente nos EUA. De tal forma que, em pouco tempo, chegaram a Alepo três ambulâncias completamente equipadas.

Mas eram amigos, funcionavam em dupla?

Sim. Mas o James passava a vida a dar-lhe conselhos, a refreá-lo. Foi por causa da imprudência do John que acabámos por ser sequestrados e eles mortos [as lágrimas correm].

O que aconteceu exatamente? James foi o primeiro fotojornalista de guerra americano a ser filmado enquanto era decapitado e o vídeo circulou pela internet. Quanto a John, até hoje, não há notícia, sendo muito pouco provável que esteja vivo. O Mustafá foi o único sobrevivente e a única testemunha…

Isso foi em novembro de 2012. Nós estávamos num cibercafé a fazer upload das nossas fotografias quando entrou um homem com uma barba muito grande e um chapéu a meio da cabeça. O John estava ao telemóvel e, quando o viu, para variar, não resistiu a meter-se com ele: «Ó Che Guevara!».

O outro olhou-o de lado. James disse-lhe para estar quieto, tínhamos percebido pelo olhar do outro que estávamos em perigo. Ele sentou-se, abriu o seu computador. Esteve ali cerca de 15 minutos e saiu sem tirar os olhos de nós. A dada altura, saímos e pusemos as nossas coisas no táxi que andava connosco. Arrancámos e, pouco tempo depois, o motorista disse-nos que estávamos a ser seguidos por uma carrinha.

Já não dava para arrepiar caminho?

Não. Rapidamente, encostaram-se ao nosso carro para nos tentar intercetar. John disse ao taxista: «Continua, não pares!». Mas eles conseguiram bloquear-nos, saíram da carrinha, começaram a disparar e mandaram-nos deitar no chão. 

O que se sente num momento desses?

[Voz trémula] Medo, só medo. Um medo vibrante.

O que aconteceu depois?

Eu tinha um lenço ao pescoço. Um deles tirou-mo e ordenou-me que atasse as mãos do John. 

E fez isso?

Primeiro recusei, mas eles começaram a atirar para o chão e tive medo que os matassem [chora].

Se necessitar podemos fazer uma pausa!

Não é preciso. Então aproximei-me do John e só lhe dizia: «Desculpa John, desculpa!». E ele, que tinha já sido sequestrado por eles, gritava: «Por favor, ajuda-me Mustafá! Outra vez não, não me deixes outra vez nas mãos deles!». Enquanto lhe atava as mãos, comecei a chorar.

Era meu amigo, o meu professor, estava a amarrá-lo e não conseguia ajudá-lo. Depois, como nos tinham pedido os bilhetes de identidade e perceberam que eu era sírio, meteram-nos na carrinha e mandaram-me embora. Gritei com eles, disse que não os deixava. Mas avisaram-me que, se dissesse mais uma palavra, matavam o taxista e depois a mim.

O que sentiu ao deixar os seus amigos para trás?

Foi uma mistura de sentimentos: medo, revolta, culpa, humilhação… [não contém as lágrimas].

A humilhação é talvez a maior agressão à condição humana. Deixa um homem completamente indefeso.

Sim, estou sempre a pensar naquele momento. Senti-me impotente. Acho que a culpa é minha, estou sempre a castigar-me pelo que aconteceu, porque não consegui fazer nada para os salvar. Sempre que me lembro do James e do John, falo comigo próprio e, no fundo, sei que a culpa é minha. Lembro-me quando ele me disse «Por favor, ajuda-me Mustafá!» e como eu não o consegui ajudar. O John foi visto pela última vez em Mossul, no Iraque. E depois desapareceu. Até hoje não se soube mais nada dele. Desculpe, não quero falar mais nisto!

Depois do que aconteceu, pensou em abandonar o jornalismo?

Estive uns sete meses parado. Tudo era preto aos meus olhos, só queria morrer. Odiava as câmaras, odiava tudo. Os meus amigos tinham desaparecido à frente dos meus olhos, sabe o que isso é? Pensei desistir, ficar sentado em casa, não fazer nada.

Tive uma grande ajuda de uma fotojornalista, a Nicole Tung, que era a melhor amiga do James. Nunca me esqueço do que ela me disse: «Mustafá, se o James voltasse, iria ficar muito triste por teres desistido do jornalismo.» Da Reuters e da AP também me ligavam, diziam-me que o mundo não tinha parado por causa dos meus amigos. E decidi voltar ao trabalho, mas levou o seu tempo. 

Voltou a passar por uma situação idêntica?

Com a dimensão desta tragédia, não. Mas em 2016, já eu era casado e tinha uma filha, fui sequestrado. Era o dia de anos de um amigo e estávamos os dois a ir para casa dele, onde havia uma festa, quando me raptaram. Nunca soube quem eles eram.

Estive horas com uma Kalashnikov apontada à cabeça e a levar pancada. Tiraram-me o computador e a minha máquina, partiram tudo. Perdi quase tudo o que fiz durante a revolução, cerca de 12 mil fotografias. Dois dias depois, deixaram-nos ir embora. Essa altura foi muito difícil para mim. Quando voltei a casa, a minha mulher chorava e disse-me que tínhamos de sair do país. Pressionou-me muito, porque, se eu morresse, ficava sozinha com as nossas filhas. Foi aí que decidi vir para a Turquia.

É uma espécie de capitulação?

Não estou a desistir da minha luta, pois isso seria como desistir de mim. Estou apenas, por questões de segurança, a dar um passo atrás, mas ainda estou a trabalhar com as minhas pessoas que estão lá dentro, ainda estou a lutar para recuperar a minha liberdade. Estamos num momento muito difícil.

Como disse antes, existe um grande conflito entre o nosso povo, que se está a digladiar entre si e parece ter-se esquecido de Assad. Mas o próprio regime também está em conflito. A Síria neste momento parece um bolo cortado em fatias: a zona Norte-Este, a chamada área curda, é dos EUA; o Norte é da Síria; Alepo norte e Idlib estão nas mãos da Turquia; o Sul é do Irão e o Centro é da Rússia.

A zona costeira é de Assad?

Já não há Assad. Até em Damasco, ele já só tem lá o seu castelo. Se os russos deixassem de apoiar a Síria, o regime caía como um baralho de cartas. Os sírios são os únicos que não têm nada. Tiraram-nos o país. A Rússia tornou-se na potência mais importante do Médio Oriente, e a culpa foi de Obama, ao dar luz verde aos russos, em 2015, para entrarem na Síria. Eles souberam aproveitar e criaram boas relações com outros países árabes. 

E com a saída dos EUA do Afeganistão, a Rússia continua a ganhar terreno?

Claro, porque os talibãs também têm uma boa relação com a Rússia. Outro erro que não percebo. Acho que Joe Biden, como o Afeganistão tem fronteira com a China, quando manteve a decisão de retirar as tropas, devia estar a pensar lixá-los [aos chineses], pensando que estes grupos terroristas iriam desestabilizá-los. Mas acabou por ser o contrário. Foi precisamente com os chineses que os talibãs começaram a negociar, e estes receberam-nos bem, tal como os russos, e assim os americanos vão perdendo o poder.

Acredita, como há quem defenda, que os talibãs que agora estão no poder no Afeganistão são menos radicais do que os de há 20 anos?

Por enquanto vão andar de falinhas mansas, mas, quando assentarem no poder, quando tiverem o controlo total, vão mostrar as garras e os dentes. Usam sempre esta estratégia. Tal como o DAESH, que começou por esconder as garras para as pessoas se juntarem a eles e depois foi o que se viu. 

Como é que se adaptou à vida na Turquia? Para um jornalista, o regime de Erdogan está nos antípodas do paraíso.

Não há grande diferença. Até os jornalistas sírios na Turquia correm perigo se escrevem sobre o que se está a passar no seu país. Temos de nos calar, não é seguro. Honestamente, eu não gosto da Turquia e a vida aqui – desculpe a expressão – é uma merda, mas é mesmo uma merda. A maior parte dos refugiados vive abaixo do limiar da pobreza. Quando aqui chegamos, dão-nos «proteção temporária», como se diz, mas é mais um sofrimento sem fim à vista. Foi muito difícil quando cheguei.

Não falava a língua e não nos dão cursos de turco, para podermos inserir-nos na sociedade. Como não conhecia ninguém, andei sete meses a procurar trabalho em fábricas. Tinha de fazer fosse o que fosse para arranjar de comer para a minha família e para pagar a renda da casa. Não tive hipóteses. Então, percebi que tinha de ter o meu próprio trabalho e criei uma produtora de conteúdos humorísticos, a Rolling Productions. Também faço umas coisas para a Al Jazeera e mantenho a colaboração com uma das agências de informação americanas com quem já trabalhava.

Qual é o sentimento de se ser refugiado?

É como ser um animal numa jaula, não ter pátria, não ter família nem amigos. Ter a memória rodeada de cadáveres, os do passado, os do futuro.

Mas não cruzou os braços. Sei que está à frente de uma ONG que tem como objetivo a educação de crianças refugiadas. Não deve ser fácil, sem meios, criar uma organização destas na Turquia.

Não podia ficar em casa a reclamar e a queixar-me de que ninguém me tinha ajudado. Se calhar morria de sofrimento. E queria ajudar o meu povo. Então, um amigo meu que soube que uma ONG virada para a educação de crianças ia fechar por ter esgotado os fundos perguntou-se se eu não queria ficar à sua frente.

Falei com a minha mulher, que é educadora infantil, começámo-nos a mexer, a pedir apoios a amigos, e, de repente, tinha 1.100 euros. Nem queria acreditar. Começámos assim. Mas sempre com muitas dificuldades. Com a pandemia, perdemos os financiamentos, não conseguimos pagar a renda e tivemos de fechar. Foi muito mau para as crianças. Entretanto, uma associação emprestou-nos um espaço, temos em curso uma angariação de fundos e já conseguimos uma casa, que andamos a remodelar. Quer contribuir? [risos] 

Já contribuí. Quantas crianças tem a Kids Rainbow?

Por enquanto, 45. Mas temos uma lista de espera enorme: quase 200.

Qual é a ideia do projeto?

Em primeiro lugar, dar-lhes ferramentas para se inserirem na sociedade. A maior parte das crianças refugiadas não tem acesso ao ensino público, apesar de isso lhes ser permitido se se mantiveram sempre na cidade onde entraram e onde obtiveram a «proteção temporária». Fora desse local, perdem esse direito.

O problema é que não há emprego, as famílias veem-se obrigadas a procurá-lo nas grandes zonas industriais e os filhos, para ajudar os pais, acabam por ir também para as fábricas ou então vendem flores nas ruas e lavam carros. Alguns não têm casa, vivem nas ruas. São miúdos que cresceram sob a guerra civil, muitos nem se sabem sentar ou nunca tinham visto uma cadeira. Não sabem socializar, mesmo entre eles, e, claro, não gostam da escola.

Não deve ser fácil atraí-los para o projeto.

Por isso, não temos um método de ensino convencional. Arranjamos uma forma de chegar a eles através de uma educação ‘não-formal’. Mas há temas obrigatórios, como aulas de árabe, dialeto sírio, turco, inglês, para os ajudar a integrarem-se na sociedade. Também os ensinamos a terem comportamentos amigos do ambiente, fazemos workshops de fotografia, de cinema, de teatro. Mas, sobretudo, damos atenção às suas inclinações naturais.

Eu, por exemplo, quando era miúdo, estava sempre a desenhar, mas nem em casa nem na escola me incentivaram a seguir essa vocação. Hoje, continuo a desenhar, mas podia ser artista, sei lá! Eu quero que as nossas crianças possam seguir os seus sonhos. 

Um homem sem sonhos é um homem morto. Desistiu dos seus sonhos ou ainda acha que o futuro pode trazer uma reparação à utopia vencida?

Tenho muitos sonhos. A Síria ainda vai tornar-se um país democrático, onde o povo pode votar e escolher quem quer ter no governo e tirar-lhe o tapete se for caso disso. Um país onde haja liberdade de expressão e liberdade de imprensa, sem que os jornalistas acabem na prisão ou mortos. Queria tanto que as minhas filhas crescessem fazendo parte da Síria, como políticas, jornalistas, o que quisessem ser… Este é o meu sonho, um sonho simples. Mas já se esqueceram de nós. Todos os dias se cometem crimes de guerra, matam-se civis, mas a comunidade internacional deixou de se assombrar. A morte vulgarizou-se. 
 
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