Marcelo intromete-se demasiado na política nacional?

Ontem, mais uma vez, ‘Belém’ decidiu comentar assuntos da política nacional – desta vez dizendo que “Moedas significa um novo ‘ciclo político’. Deve ‘Belém’ continuara opinar? 

Ontem, o jornal Público noticiava o facto de “Belém admitir que Moedas significa um ‘novo ciclo’ político”. Belém, ou seja, Marcelo por interposta pessoa. Segundo a notícia, este momento de viragem preocupa o Presidente da República, que no dia a seguir às eleições ressalvou “não fazerem sentido” crises políticas nos próximos dois anos, pois “importa que haja Orçamento de Estado para 2022 e 2023”.

Embora o artigo não cite diretamente Marcelo Rebelo de Sousa, cita os “mais próximos de Marcelo” em Belém – ou seja, Marcelo. Segunda estas – ou este –, após a vitória em Lisboa, Moedas fica agora “numa posição muito forte para mais tarde marcar a viragem”, pois criou “um ciclo próprio”.

Recorde-se ainda que Marcelo ainda há dois meses pedia, reiterada e publicamente, “oposição” firme à governação socialista. O objetivo? Teoricamente, dissipar “os vazios” que propiciam “movimentos inorgânicos”. Contudo, as linhas parecem não ser assim tão retas: note-se que, em maio, a cúpula de Rio não ficou agradada com o facto de Marcelo ter insistido que as próximas eleições do PSD traduzir-se-iam num momento definidor do ciclo político. À RTP, Marcelo, questionado sobre a continuidade de Rio à frente do partido, dizia ser preciso ver se o líder “não quer ou não pode [continuar]”, rematando com um já clássico pedido de alternativa de direita ao PS. Na altura, dentro do PSD, falava-se de um “embaraço intencional” para dar “gás” aos adversários internos de Rio, conforme noticiava o Observador. “Uma maldade que não surpreende”. “Uma interferência completamente desnecessária”.

Aqui chegados, pergunta-se: interferirá Marcelo demasiado na vida política nacional? E será que ter – ou o seus companheiros terem – admitido que a vitória de Moedas significa um “novo ciclo político” revela-se, novamente, uma dessas interferências desnecessárias?

 

“Fala tanto que as pessoas não o ouvem”

António Galamba, último governador civil de Lisboa e deputado pelo PS durante cinco legislaturas – parte da ala Segurista –, começa por dizer, ao i, que o Presidente da República deve “exercer as suas funções e não deve ser comentador político”. Segundo o socialista, Marcelo, por ter responsabilidades concretas, “não faz parte do jogo e, ao dizer essas coisas, está a fazer parte do jogo”. E desabafa: “Não faz sentido mas é o Presidente que temos – que não se salvaguarda e que depois não tem margem de manobra para poder intervir. O Presidente que já foi parte da solução está cada vez mais a querer ser parte do problema”.

No entender do antigo deputado, Marcelo “faz isto demasiadas vezes – de forma direta ou indireta”, algo que já não considera “defeito” mas sim “feitio”. “Fala tanto que as pessoas não o ouvem. Acaba por ser mais um. Ao banalizar cada vez mais as suas intervenções depois não é valorizado e acabará por ser desrespeitado. Ora fala demais, ora intervém demais de forma discreta – às vezes passando para a comunicação social através do gabinete ou por interposta pessoa”, no que pareceu ser uma alusão a este caso concreto.

A seu ver, esta forma de estar não é a “mais adequada” para um Presidente da República: “É o modelo que ele escolheu e que os portugueses gostam”. Afiando a crítica, Galamba defende ainda que esta postura de Marcelo contribui para a “degradação e pulverização que se vai assistindo na sociedade portuguesa”. Por fim, puxa a culatra atrás – “desde o tempo em que ele alegadamente tocava nas campainhas à noite que se sabe o que contar. Não há aqui nada de novo” – e dispara contra António Costa: “Ainda assim, é bom relembrar que teve o apoio do primeiro-ministro na sua recandidatura”.

 

“Marcelo ainda tem uma ala de comentador”

Se por um lado António Galamba rasga a postura pública de Marcelo de alto a baixo, por outro, Carlos Guimarães Pinto não a vê como problemática. Ao i, começa por explicar que já há “alguma história de Belém – e não só deste Presidente – ter alguma interferência nas mudanças de ciclo”, relembrando que Soares “fê-lo com as presidências abertas”, Sampaio “fê-lo na forma como sabemos” e que até “o próprio Cavaco chegou a fazê-lo”. Por estas razões, não vê as ingerências de Marcelo como “particularmente chocantes” e considera que até se “enquadram bem no seu perfil”.

Mais do que isso, o antigo líder do IL nem sequer considera que Marcelo fale demasiadas vezes: “Ele fala mais que os outros, certamente; mas não penso que fale demasiado. Ele intervém e fala sobre outras coisas, ainda tem uma ala de comentador. Mas não parece que esteja fora de sítio”, reiterando que estas posturas presidenciais são comuns.

 

“Um estilo político diferente”

Se por um lado António Galamba critica a eventual overdose interventiva de Marcelo e, por outro, Guimarães Pinto não, já António Costa Pinto está desacreditado que a frase em tópico seja mesmo dele. “Marcelo sempre habituou Portugal a comentar e falar diretamente. E, portanto, quando ele achar que abriu um ‘novo ciclo político’, ele di-lo-á seguramente”. Explica que Marcelo “tem sido até muitas vezes criticado pelo excesso de opinião” e, por isso, “não terá problema em fazer nenhum comentário sobre a situação política”. “Toda a intervenção pública de Marcelo tem sido a favor de consolidar uma alternativa partidária à direita para este Governo. O que saiu na notícia do Público é consonante com esta preocupação. Não tanto com um ‘ciclo político’, mas o das eleições terem aberto no espaço público uma ideia de reforço do PSD”. No entender do politólogo, o fundamental para Marcelo é mesmo a “estabilidade governativa e as alianças de viabilização do orçamento”, razão pela qual não crê que o Presidente da República esteja preocupado com o ‘novo ciclo político’.

Tal como Guimarães Pinto, António Costa Pinto também não considera que Marcelo fale em demasia, Vê-o, antes, com “um estilo político diferente”, explicando que “os Presidentes da República, enquanto órgão institucional unipessoal, imprimem um estilo próprio à sua governação”. Sob essa alçada, cada um poderá, então, “decidir o modo de intervenção na vida pública”, rematando: “Marcelo, como é conhecido, escolheu este estilo político”. Que não crítica: “Não me situo na crítica de aqui ou acolá. É natural a crítica, mas, sob o ponto de vista estrito do funcionamento democrático português, isso não tem crítica possível”.