por Felícia Cabrita e Marta F. Reis
O juiz Ivo Rosa agiu por má-fé, é a conclusão que se pode retirar do recurso do Ministério Público sobre a decisão instrutória do caso Marquês. Os magistrados Rosário Teixeira e Vítor Pinto, que pretendem agora que o Tribunal da Relação de Lisboa anule esta decisão e leve a julgamento os principais arguidos da Operação Marquês, não são brandos e acusam o magistrado de ter feito uma “leitura tendenciosa e adulterada” da acusação, menosprezando o trabalho de recolha de prova em sede de inquérito e de ter mesmo procurado “apoucar as intervenções judiciais, proferidas pelo juiz de instrução e pelos Tribunais de recurso na mesma fase de inquérito”.
Para o MP, o juiz teve como principal preocupação “forçar a existência de lacunas e contradições na acusação” e de encontrar pretensas omissões de diligências por parte do MP para, deste modo, adulterar a acusação sendo que, para atingir os seus objetivos, ignorou a parte mais importante da prova alicerçada amplamente nos “movimentos financeiros” suportados nos pedidos de informação bancária e nas Cartas Rogatórias.
O MP considera ainda que a eliminação, o “expurgo”, de factos narrados na acusação, “é uma forma de ocultar os vícios de apreciação inseridos na decisão de não pronúncia, como se essa apreciação não suportasse sequer o confronto com os factos relativos às operações financeiras narrados na acusação. “ Sem poupar nas palavras, o MP diz que a decisão instrutória “perverte o sentido narrativo da acusação, imputando à mesma significâncias erradas e alterando a cronologia dos factos e o sentido de ação dos arguidos” e “desvirtua e adultera o suporte legal e interpretativo das soluções jurídicas encontradas, de forma a conseguir fundamento para afirmar que estão viciadas ou que são violadoras de princípios constitucionais”. E contesta ainda os juízos de inconstitucionalidade formulados na decisão instrutória, considerando que se encontram pervertidos e com um propósito:_“gerarem uma imediata resposta de aceitação da inconformidade com a Constituição da República”.
No recurso de mais de 1800 páginas, o Ministério Público rebate ponto a ponto a apreciação que o juiz fez em relação a todos os arguidos, com exceção dos crimes prescritos e daqueles cujos factos foram autonomizados por Ivo Rosa e que já foram enviados para julgamento.
O que quer dizer que o MP já nada pode fazer em relação aos crimes de abuso de confiança pelos quais Ricardo Salgado se encontra a ser julgado, aos crimes de branqueamentos de capitais e falsificação de documentos pelos quais José Sócrates e Carlos Santos Silva aguardam julgamento, de posse de arma proibida que levará também à barra João Perna, e aos crimes de branqueamento e fraude fiscal que já levaram ao julgamento e condenação de Armando branqueamento e fraude fiscal pelos quais já foi julgado e condenado.
Ivo Rosa com “crenças pré-adquiridas”
O recurso do Ministério Público desconstrói a arquitetura do despacho da decisão instrutória, proferido em abril, arrasando a metodologia seguida por Ivo Rosa em vários pontos. “Em sede da apreciação do valor probatório de um depoimento, não basta o juiz dizer que acredita nesse testemunho, uma vez que tal representaria basear a decisão num acto de fé cego, que transformaria os juízos sobre a prova em meras proclamações intuitivas, baseadas apenas nas perceções íntimas do julgador”. Diz ainda que a decisão instrutória “revela ser o fruto de uma apreciação dos indícios suportada na intuição e em crenças pré-adquiridas, revelando incapacidade de uma análise cruzada e global dos indícios, o que implicou o cometimento de erros lógicos e mesmo o cair em falsidades empíricas.”
Os magistrados consideram ainda que o juiz de instrução conferiu a determinados indícios e depoimentos “uma prevalência sobre os demais para a formação da sua convicção, tal como revela isolar outros indícios que pretende desvalorizar, razão pela qual usa expressões, referenciadas a indícios, tais como ‘por si só’ (repetida 50 vezes ao longo do texto), ‘que nos permita’ (repetida 30 vezes) e ‘não é possível’ (utilizada 182 vezes).”
Eis alguns dos exemplos invocados: “Se a decisão instrutória reconhece a utilização de contas tituladas por Joaquim Barroca para fazer passar fundos de terceiros, a pedido de Carlos Santos Silva, também deveria reconhecer o mesmo modus operandi quando o arguido Ricardo Salgado utiliza contas controladas por Hélder Bataglia”, lê-se no recurso.
O MP dá ainda uma lição a Ivo Rosa sobre provas diretas, indiretas e juízos de inferência, considerando que este foi um erro cometido “repetidamente” ao longo da decisão instrutória, de modo a forçar respostas negativas para questões de insuficiência da prova. Segundo o MP, a distinção entre prova direta e prova indireta assenta na “conexão entre o facto objeto do processo e o facto que constitui o objeto material e imediato do meio de prova, sendo certo que quando os meios de prova versam sobre um enunciado acerca de um facto diferente, acerca do qual se pode extrair razoavelmente uma inferência acerca de um facto relevante, então as provas são indiretas ou circunstanciais”.
Um exemplo daquilo que o MP considera um erro: pretender tirar a prova da prática de atos corruptos por José Sócrates apenas a partir da admissão de operações da passagem de fundos por contas de Carlos Santo Silva e de Joaquim Barroca. “A realização de operações de passagem de fundos por contas de terceiros, a pedido de Carlos Santos Silva (relativamente a contas de Joaquim Barroca) e a pedido Ricardo Salgado (relativamente a contas de Hélder Bataglia), apenas permite inferir, para além de dúvida razoável, que existe uma justificação oculta, que se pretende encobrir, para a realização dessas operações”, lê-se no recurso. “A etapa seguinte passa por procurar indagar qual foi a utilização dada aos fundos colocados nas contas de Carlos Santos Silva. Ao constatarmos que os fundos serviram para a realização de entregas em numerário, pagamentos e aquisições no interesse do arguido José Sócrates que se encontram suportados em prova direta (designadamente por interceções telefónicas), então pode-se inferir que esses fundos pertencem ao arguido José Sócrates”.
Segundo o MP, Ivo Rosa “utilizando uma metodologia de análise em que começa por identificar os elementos de prova, faz a sua análise pessoal dos mesmos e, só depois, se preocupa com o que foi narrado na acusação”.