O Ministério Público prescinde de ver reapreciados os crimes da Operação Marquês que Ivo Rosa pronunciou para julgamento, mas quer que o resto da acusação e dos arguidos seja levado à barra do tribunal.
No recurso com mais de 1800 páginas entregue esta semana à Relação de Lisboa, os magistrados Rosário Teixeira e Vítor Pinto arrasam a decisão instrutória e acusam o juiz de instrução de «perverter» a acusação e de menosprezar o inquérito.
E, não se opondo a que avance o julgamento dos crimes (menores) que Rosa considerou indiciados e que não tinham prescrito, querem que os maiores sejam objeto de reapreciação por parte da Relação, incluindo os crimes de corrupção passiva imputados na acusação a José Sócrates, Carlos Santos Silva, Zeinal Bava, Armando Vara e Henrique Granadeiro, e os crimes de corrupção ativa de titular de cargo político imputados a Joaquim Barroca, ex-administrador do grupo Lena, Ricardo Salgado, ex-presidente do BES, e Rui Horta e Costa, administrador não-executivo dos CTT.
Na decisão instrutória da Operação Marquês, proferida em abril, o ex-primeiro-ministro e Carlos Santos Silva, para o MP o testa de ferro de José Sócrates, foram pronunciados por três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos. No recurso entregue pelo MP esta semana na Relação, já depois do prazo estipulado, os magistrados insistem nos três crimes de corrupção passiva imputados ao ex-primeiro-ministro.
No âmbito da relação com Joaquim Barroca do Grupo Lena, declaram que «ocorreram sucessivos atos suscetíveis de preencherem o tipo penal de corrupção» e que a decisão instrutória de Ivo Rosa «não atende e mostra não perceber o modus operandi em causa nos autos e plasmado na acusação, em que o acordo sobre os pagamentos indevidos era precedido da definição da sua circulação, com o propósito de ocultar a sua origem e o seu beneficiário final», lê-se no recurso, reconhecendo que há um problema na numeração dos artigos na imputação jurídica, mas que poderia ter sido ultrapassado.
Embora considerem correto o entendimento do juiz de instrução de que aos arguidos José Sócrates e Carlos Santos Silva «foi imputado um crime de corrupção passiva para a prática de ato não contrário aos deveres do cargo, na redação da Lei 108/2001, punido com pena até 3 anos e, como tal, com prazo de prescrição de 5 anos, atendendo à data da sua consumação – 7.06.2013 (quando foi assinado o contrato entre a LEC SA, do Grupo Lena e a XLM, controlada por Santos Silva) –, o mesmo não se encontra prescrito», contrariando assim a apreciação de Ivo Rosa, que antecipou o momento da consumação deste crime para 25 de janeiro de 2007, data de solicitação e aceitação de vantagem.
Já no capítulo Vale do Lobo, o MP considera também que a decisão de considerar não provado o crime de corrupção passiva imputado ao arguido José Sócrates deve ser alterada, «não só face ao aproveitamento final pelo arguido dos fundos transferidos para a esfera do arguido Carlos Santos Silva, como face ao seu relacionamento e entendimento com arguido Armando Vara, relativamente ao qual agiu como sendo o ‘homem de trás’», acusando Ivo Rosa de inverter a ordem dos diplomas, isto mais uma vez porque o MP usou na imputação jurídica os termos do Código Penal de 1987 e Ivo Rosa a lei 108/2001.
Quanto à PT, o MP insiste também que «colheram-se indícios suficientes nos autos que, em contrapartida da defesa dos interesses do GES relativamente ao curso e a administração do Grupo Portugal Telecom […], o arguido Ricardo Salgado, entre 2006 e 2012, pagou 29 milhões de euros ao arguido José Sócrates, 25,2 milhões de euros ao arguido Zeinal Bava e 20 milhões de euros ao arguido Henrique Granadeiro», recusando também que este terceiro crime de corrupção passiva imputado a José Sócrates tenha prescrito.
E aqui volta a ser mencionada a mesma questão: o MP assume que atende à redação introduzida pela lei 108/2001, que alterou a numeração dos crimes, mantém que a imputação se referia aos termos da versão atual da lei 34/87. «Mais seria, no mínimo, absurdo que o Ministério Público tivesse imputado ao arguido Ricardo Salgado um crime de corrupção ativa para ato ilícito e ao arguido José Sócrates a prática de um crime de corrupção passiva para ato lícito», argumentam. «Note-se que, lida de outra forma, a imputação jurídica feita na acusação não faz sentido, até porque se refere a um art.º 19.º, n.ºs 2 e 3, que, na versão da Lei 108/2001, se reportava aos pressupostos da dispensa da pena, sem qualquer correspondência com os factos narrados na acusação».
Para o MP, perante isto, Ivo Rosa deveria ter suscitado uma alteração não substancial dos fatos, «face à manifesta desconformidade entre os factos narrados e o seu entendimento da imputação, diligência que omitiu, viciando os termos posteriores do processo, em particular quando fez prevalecer e decidiu com base na interpretação da imputação que é desconforme com os factos narrados».
Em suma, o MP considera que «o procedimento criminal pelo crime de corrupção passiva para a prática de atos contrários aos deveres do cargo, quer como titular de cargo político, quer como funcionário, imputado ao arguido José Sócrates (com referência a atos praticados no interesse do arguido Ricardo Salgado, relativamente a negócios do Grupo PT e GES […] permanece válido».
Ivo Rosa no «poço do absurdo da ingenuidade»
No recurso, o MP ataca a leitura de Ivo Rosa da acusação e a arquitetura da decisão instrutória, chegando ao ponto de dar uma ‘aula’ sobre provas diretas, indiretas e inferências. Os magistrados acusam Ivo Rosa de atos «cegos de fé» e crenças pré-adquiridas.
Por exemplo nesta passagem: «A frase final de folhas 1092 da DI (Decisão Instrutória) ‘…Deste modo, estando já o contrato assinado com a ELOS não faz qualquer sentido afirmar que o Grupo Lena, depois de Outubro de 2010, precisava de obter o apoio do arguido José Sócrates no âmbito do concurso RAV Poceirão-Caia …’, deve cair, mais uma vez, para o poço do absurdo da ingenuidade, para além do pré-juízo que revela sobre os temas da corrupção».
Recurso arrasador
Oito considerações introdutórias do MP sobre a decisão instrutória de Ivo Rosa no recurso interposto na Relação
Revela menosprezo e incompreensão
1. «A decisão instrutória que é objeto do presente recurso revela menosprezo e incompreensão pelo trabalho de recolha de prova feito em sede de inquérito e procura apoucar as intervenções judiciais, proferidas pelo juiz de instrução e pelos
Tribunais de recurso na mesma fase de inquérito»
Forçar lacunas
2. «Por repetidas vezes, a decisão instrutória, na parte de não pronúncia, manifesta uma preocupação principal em forçar a existência de lacunas e contradições na acusação e de encontrar pretensas omissões de diligências em inquérito».
Interpretações erradas
3. «Para alcançar esse resultado de censura da acusação, a decisão instrutória recorre a interpretações erradas e viciadas do narrativo vertido na acusação, isto é, faz uma leitura tendenciosa e adulterada dos factos narrados na acusação».
Omissão de factos
4. «Esse desprezo sobre o narrativo acusatório tem a sua principal expressão na circunstância de a decisão instrutória ter omitido os factos relacionados com os movimentos financeiros, que ocupam uma parte significativa da acusação, apesar de os admitir como indiciados».
Factos inúteis
5. «No entanto, o narrativo das operações financeiras não foi considerado afetado porvícios na recolha da prova, uma vez que se suporta nos pedidos de informação bancária e nas Cartas Rogatórias emitidas, mas a decisão instrutória considera esses factos inúteis, isto é, incapazes de poderem sustentar a interpretação da acusação e estéreis em sede de poderem integrar os ilícitos tipificados».
Vícios de apreciação
6. «A eliminação, apelidada de ‘expurgo’, de factos narrados na acusação, sem uma indicação clara e reportada à acusação dos factos indiciados e não indiciados, é uma forma de ocultar os vícios de apreciação inseridos na decisão de não pronúncia, como se essa apreciação não suportasse sequer o confronto com os factos relativos às operações financeiras narrados na acusação»
Desvirtua suporte legal
7. «A decisão instrutória perverte o sentido narrativo da acusação (…) mas também desvirtua e adultera o suporte legal e interpretativo das soluções jurídicas encontradas, de forma a conseguir fundamento para afirmar que estão viciadas ou que são violadoras de princípios constitucionais».
Juízos de inconstitucionalidade pervertidos
8. «Os próprios juízos de inconstitucionalidade formulados na decisão instrutória encontram-se pervertidos, sendo apresentados com formulações que não correspondem às interpretações jurídicas subjacentes à acusação, muitas das vezes de forma a gerarem uma imediata resposta de aceitação da inconformidade com a Constituição da República».