Manuel Alegre. “Há hoje um certo abastardamento da cultura, da educação, da civilização”

Foi em 1971 que Manuel Alegre publicou, em Portugal, “Um Barco para Ítaca”, escrito durante o exílio argelino. Era então um Ulisses a contragosto, sem arco e sem Penélope. 50 anos depois, este poema dramático conhece a primeira edição autónoma na Dom Quixote. O tempo não o matou, antes lhe deu, em muitos lances, uma…

Quando, nos começos de 1965, foi publicado em Coimbra, na colecção de poesia Cancioneiro Vértice, “Praça da Canção”, o primeiro livro de Alegre – escrito, em boa parte, durante o tempo passado na prisão de Luanda e completado já em Portugal, antes da partida para o exílio – ninguém suspeitaria, apesar da extraordinária recepção que logo desencadeou, quer junto da crítica, quer dos leitores, que acabara de sair um dos títulos mais emblemáticos da literatura portuguesa cujo valor simbólico e o alcance cultural o autor não podia prever. O que também não poderia prever é que que há timbres e rimas (“Meu poema a rimar com minha vida”) que demoram a passar em certos crivos críticos. É para si que o poeta volta o ónus da culpa num poema de lucidez e irónica provocação, justamente intitulado «Mea Culpa» (“Nada Está Escrito”, 2012): “Desculpem lá se tenho biografia/ e se vivi a vida intensamente/ dedicado à política e à poesia/ o que não é por certo conveniente/ Mas foi assim que aconteceu / e o destino bateu à minha porta. / Eu sei: eu é um outro e esse fui eu. / Na vitória e na derrota / na tristeza e na alegria”. Pede aqui o poeta muitas desculpas por ter biografia, pelo encontro entre o seu itinerário político e existencial, de domínio público, e o itinerário poético, insistentemente pontuado pelas figuras da ausência e da falta («É preciso um país», «já não passam caravelas», «falta uma fúria./ Neste país lamúria»), enfim, desculpas por ter enlaçado política e poesia no mesmo nó.

Ulisses a contra-gosto, construiu verso a verso o barco que lhe permitiu encontrar o caminho de regresso ao país que descobriu a própria ideia de descoberta, mas continua ainda sem se encontrar, “Ítaca em si mesma perdida”. Um regresso não é uma mera viagem ao contrário.

Esta edição de “Um Barco para Ítaca” merece ser saudada. Não com aquele respeitoso descaso que por vezes usamos para manter em bom pé de cortesia as nossas relações literárias ou aquela distância cautelar que guardamos de certas velharias de museu literário, por já nada terem a dizer-nos, mas com a certeza de quem fica face a um livro suficientemente vivo para nos fazer interrogar “o tempo viscoso e coaxado”, “com asas de rapina/ e bico de milhafre” e acelerar o pulso.

 

À sua biografia, pela qual, aliás, pede muitas e irónicas desculpas num conhecido poema, não faltam o exílio, a prisão, estadas em casas que mais se assemelhariam a quadrículas apertadas. Se há pessoa que, à partida, estaria preparada para lidar com o confinamento que a pandemia impôs, essa pessoa seria Manuel Alegre. Foi assim?

Eu tenho algum treino de confinamento, é certo: prisão, exílio, isolamento. E depois da minha reforma, outra vez um certo treino de auto-isolamento: procura de solidão para trabalhar, para ler, para arranjar os meus papéis, para escrever as minhas coisas. Mas evidentemente prefiro andar sem máscara, é claro, gosto de estar com os meus amigos, de almoçar fora, de passear, de nadar na piscina, no mar, o que me tem feito muita falta. E mesmo a caça, que eu gosto de praticar.

Como é que lidou com o risco?

Não é agradável a sensação de risco. Já enfrentei muitas coisas – risco, perigo, morte a rondar, a mim e aos amigos – e não tive propriamente medo da morte, mas esta coisa… Assustava-me a hipótese de poder ser internado com um tubo na boca. Temia a morte anónima, impessoal, o contrário de tudo aquilo que li no Rilke: a morte própria. Aquela morte anónima era o que mais me amedrontava. Felizmente, não aconteceu, consegui passar entre os pingos da chuva. E depois veio a vacina, mas ainda há muito por saber. Quando era miúdo e andava na escola, na ausência delas e de antibióticos, morria-se de tifo, de poliomielite, podia-se morrer com um furúnculo, apanhava-se uma septicemia e podia-se morrer com uma infecção num dente, morria-se com coisas absurdas. E depois vieram as vacinas, por tentativas, por processos vários.

Entretanto, já teve direito a uma festa de desconfinamento no Teatro São Luiz. O que lhe pareceu essa noite de homenagem que pretendeu assinalar os seus 85 anos?

Foi um momento muito bom, talvez irrepetível, um desconfinamento com música e poesia, sem nenhum aspecto de gala.

Desagrada-lhe, esse aspecto?

Nunca gostei, só vou às galas a que não posso deixar de ir, são coisas muito pomposas, muito aborrecidas, em que as pessoas falam para se ouvir. Detesto galas. Aquela noite foi o contrário disso, sem pieguice, uma coisa muito sóbria, sem discursos, com grande ritmo, sala cheia, embora ainda de máscara. E esta gente nova também não está para galas: quer poesia, quer cantar, quer estar junta, não está para coisas balofas.

Como se se tivesse adensado a noção da urgência de viver?

Isso aconteceu noutras situações históricas, antes da primeira grande guerra e depois logo a seguir. Houve um corte de civilização, a libertação de costumes, o avanço das mulheres, a maneira de vestir. Havia ânsia de viver, como se as pessoas não se importassem de morrer desde que vivessem intensamente, que experimentassem tudo, num dia ou numa semana. A vida não se adia nem se rebobina. Só se tem 20 anos uma vez e eu percebo a impaciência dos jovens.

85 anos, uma extensa lista de livros e prémios e uma etiqueta que parece ter-se-lhe colado com força teimosa: “o poeta da Praça da Canção”. Tem-lhe sido difícil desembaraçar-se desta etiqueta?

Eu acho que isso já foi mais que removido. Lembro-me de uma vez o Mário Cláudio me ter dito: “Não lhe perdoam a Praça da Canção”. Há livros que mudam a vida das pessoas. Este primeiro livro e “O Canto e as Armas” são dois livros emblemáticos que mudaram a vida de muita gente, foram mágicos. A “Praça da Canção” ficou, não por ser um livro político ou revolucionário mas pela poesia, pela estrutura rítmica e até pela temática cultural, inscrita na nossa tradição poética. Poesia panfletária, com intenção política, houve muita, mas porque é que uma ficou e outra não? Ali, o que no fundo se propunha, além do tema geral da liberdade, era fazer o contrário da agenda do caminho marítimo para a Índia: descobrir Portugal em Portugal. Hoje, dito assim, parece muito simples, mas na altura era muito revolucionário e difícil.

Parece-lhe que aquela etiqueta redutora tinha a cola da perversidade?

Isso teve também uma intenção política, também foi um ajuste de contas, político e, por outro lado, literário. Havia gente que ficava incomodada com o facto de eu ser um poeta muito cantado – e ainda hoje sou. Há um sectarismo literário muito grande. Tenho muita honra em ter sido o poeta da resistência, e de ter escrito os primeiros poemas sobre a guerra colonial, não enjeito nada disso. São livros com uma carga lírica muito forte e entroncam em toda uma tradição lírica, trovadoresca, camoniana e isso chegou mais longe. E tenho o privilégio de sobre mim terem escrito a Maria Helena da Rocha Pereira, o Eduardo Lourenço, o Eugénio Lisboa, Vítor de Aguiar e Silva, o Graça Moura, a Paula Mourão e tantos outros que fizeram uma apreciação da poesia pela poesia.

A verdade é que a sua obra, apesar do rigor de uma continuada busca expressiva, reconhecida pelas figuras de primeira linha que apontou, sempre conheceu zonas de resistência crítica que terão tido o seu peso numa definição canónica que poderíamos apelidar de vagarosa.

E também a minha própria resistência, de me estar nas tintas para as omissões e para as perversidades e ter continuado a escrever, a publicar e de ter continuado a ter leitores. Os leitores também contam, não é [risos]?

Curiosamente, o 'seu' Camões, ao contrário do que era de uso nas edições da época, quando publicou «Os Lusíadas» terá preferido apresentar-se desacompanhado de prólogo ou texto elogioso. Como é que interpreta esta postura? Vê nela despojamento ou uma vaidosa sobriedade?

Ele sabia bem quem era e o que é que aquele livro representava. Camões foi um marginal, não foi um homem de corte. Mas foi o primeiro poeta europeu que contactou outros povos, outras culturas, o que alargou muito a base cultural que ele já tinha. Foi um soldado entre soldados, um marinheiro entre marinheiros, um lusíada entre lusíadas. Curiosamente, os sonetos, quando foram publicados, tiveram duas edições muito rápidas, já durante a ocupação filipina, o que é também, no meu entender, além de uma demonstração de admiração pelos sonetos, que são, como dizia o Eugénio de Andrade, o livro mais actual da poesia portuguesa, um acto de patriotismo e até de resistência.

Ao contrário do que por vezes apressadamente se afirma, não é um poeta de dicção única: há a nostalgia da epopeia e o contrário disso, há poemas dramáticos, de grande gravidade expressiva e poemas de irónica provocação, há poemas situados na grande tradição do lirismo especulativo (Camões, Antero, Pessoa, Jorge de Sena). Acha que isto tem sido suficientemente notado?

A minha voz mantém sempre uma certa toada, embora tenha conhecido variações ao longo da vida e das épocas. O Sena é uma das minhas referências: quando estava no exílio, era um dos autores que eu mais lia, não só a poesia mas também os ensaios. Por mais estranho que pareça, sendo eu amigo íntimo da Sophia (visitávamo-nos praticamente todas as semanas), em casa de quem tivemos marcado um almoço, nunca nos encontrámos pessoalmente. Parece inconcebível que eu e o Sena nunca nos tenhamos visto, mas é verdade. Era um tempo muito agitado. Estive em casa dele em Santa Barbara, mas já depois da sua morte. Fui ao túmulo dele.

E o que é que sentiu?

São aqueles túmulos à americana num grande jardim público. Achei que o Sena gostaria de estar ou nos Jerónimos – ele tinha uma alta ideia dele próprio – ou ali.

Em compensação, conviveu bastante com o Nuno Bragança, verdade?

Sim, o Nuno Bragança foi um grande amigo. Nós conspirámos, estivemos metidos ambos em coisas muito complicadas… Ele era funcionário da OCDE, ia várias vezes a Argel, servia de intermediário, mandava coisas complicadas para Portugal. Quem também andava nisto era o Nuno Teotónio Pereira e o Pedro Tamen, que não era muito activo mas recebia as coisas, o que já demonstrava coragem e empenhamento. O Nuno Bragança andava metido em coisas revolucionárias muito avançadas [colaborou com o grupo das chamadas Brigadas Revolucionárias], mas dizia sempre que a prioridade era “o livro”. Eu tinha uma casa em Argel (uma casa pequena, com dois quartos) e ele às seis da manhã sentava-se lá numa secretária com um lápis e um caderno de capa preta a escrever o livro. O livro era a “Directa”, que era a própria revolução.

Livro esse que veio a ser publicado apenas depois do 25 de Abril, em 1977.

Sim, por um conjunto de circunstâncias. Era um livro de grande qualidade literária. Se tivesse saído antes, se calhar ele ia preso e o livro era apreendido, mas teria por ventura um impacto maior do que aquele que conheceu. O “Square Tolstoi”, outro romance dele, é quase uma reportagem do que se passou durante um determinado período da nossa vida em Paris. Eu entro nesse livro: sou o Outro.

Porquê o Outro?

Quando o Nuno Bragança falava com alguém cujo nome não quero dizer, referiam-se a mim como o Outro. E assim fiquei.

E quando se reconheceu, como é que reagiu?

Foi uma surpresa. Um dia estava a ler o livro e às tantas… mas este sou eu! Fiquei danado. Naquela altura, achei aquilo quase uma invasão da privacidade. É certo que havia coisas clandestinas, mas também havia algumas muito cómicas, como uma cena de um filme do Fellini que fomos ver: o que se estava a passar fora do filme parecia que era o próprio Fellini; enfim, é uma história que demoraria a contar. Ele gostava muito de cinema e estava sempre a fazer aquele gesto da marcação. Estive internado com uma septicemia no Hospital Cochin e, já em período de recuperação, ele veio encontrar-me, adormecido, com “A Peregrinação” aberta em cima do peito e fez logo aquele gesto de quem está a filmar. Era um aristocrata, praticava boxe, caça submarina e gostava de coisas por vezes estranhas. Quem o visse no Sixième em Paris, em casa dele, ou como funcionário da OCDE, não tinha ideia nenhuma do homem que estava sob aquelas vestimentas. E “A Noite e o Riso”, um grande romance, foi um sopapo na literatura portuguesa.

Parece-lhe que a palavra, a invenção verbal têm vindo a perder protagonismo na criação literária, como se a própria palavra se tivesse deslocado para a periferia da literatura?

Em muitas conversas que mantinha com o Nuno Bragança fazíamos verdadeiras peregrinações pela História. Ele metia nos livros pedaços de crónicas, assim como a Maria Velho da Costa, de quem também fui muito amigo, e eu próprio, nos meus poemas, sou dado a essas práticas intertextuais. O grande problema hoje de muitos dos jovens poetas é que não leram os nossos clássicos. Nunca leram Sá de Miranda, não leram o Gil Vicente, não sei se leram os trovadores, Camões devem-no ter passado a correr ou não o leram mesmo. Não conhecem a língua e a estrutura rítmica da língua. E eu não acredito em grandes poetas que não tenham presente essa estrutura, a música da língua dentro de si, a que possam depois acrescentar a sua própria música. A sensação que tenho, muitas vezes, é que estou a ler poemas traduzidos do inglês ou do americano.

Falta-lhes leituras e o que mais?

Alguma humildade. Julgam que já nascem ensinados, que vão a essas oficinas de escrita e tudo se arranja, o problema fica resolvido. Ninguém sabe quanto tempo demora um verso, o primeiro verso. Eu sabia a poesia portuguesa toda de cor: o António Nobre, o Camilo Pessanha, o Cesário Verde, até “O Noivado do Sepulcro” eu sabia de cor. E depois escrevia poemas à maneira deste e daquele. Até chegar a um verso que me parecesse meu, foi uma longa caminhada, o tempo que isso demorou.

E até atingir esse verso?

Fartei-me de escrever porcarias, de rasgar papéis e cadernos (e vou rasgando sempre que encontro, espero que já reste pouca coisa, que eu não quero deixar por cá essas coisas: nunca sabemos). Agora, lê-se muito pouco e mal. Aqui há tempos, estava com o Gastão Cruz a assistir a um lançamento numa livraria, comecei a olhar as prateleiras em volta e disse-lhe: “Andamos nós a publicar livros para quê?” Aquilo era lixo, lixo mesmo, subliteratura, o tipo que fala com deus, o tipo ou a mulher que mudou de sexo, a outra que arrancou a mama e pôs lá não sei o quê, essas histórias mirabolantes. E depois os livros de auto-ajuda, que são uma praga.

Quando é que sentiu que tinha chegado a uma voz inteiramente construída, com timbre próprio?

Só senti isso quando saíram cinco poemas meus na “Via Latina”, em Coimbra, e que tiveram um eco muito grande na academia. Foi uma coisa que deu grande brado. Naquela altura, eu tinha uma grande confiança na palavra; estava convencido de que, pela palavra poética, se podia mexer, tocar na vida, mudar a vida. Não acredito em grande poesia ou em grande arte que não tenha essa carga, essa energia. Nessa altura, eu tinha essa convicção profunda. Quando estava a escrever esses poemas eu sabia que era por ali, que aquela era a minha voz. Ainda hoje, só escrevo quando vem essa energia, esse encadeamento mágico da palavra, ou quando o poema já aparece praticamente feito. Depois, posso destruí-lo, refazê-lo, retocá-lo. Esse estado de graça é a única compensação para quem escreve. No fundo, mais do que ver um livro cá fora, para mim o momento supremo é quando eu acho que acertei e vejo o poema ou a prosa na folha de papel em que costumo escrever.

O seu último livro de poemas, “Quando” (2020), é um bom exemplo de como diferentes registos e figuras podem conviver em regime de vizinhança. E até Donald Trump faz ali a sua aparição [“aquele que só twita merda”]…

Esse livro, que é filho da pandemia, é muito diferente de muitas coisas que escrevi anteriormente, embora tenha lá a marca e a toada. Estava muito longe de pensar que os Estados Unidos pudessem passar pelo que passaram, com o assalto ao Capitólio, que é uma espécie de assalto ao Palácio de Inverno do avesso, do capitalismo ou do ultracapitalismo. E ensina-nos que o impensável pode acontecer. Ultimamente, a eleição nos Estados Unidos foi das coisas que vivi com mais intensidade. O Biden é um tipo que resistiu, fez frente e ganhou com o bom senso, com a fidelidade à raiz.

50 anos decorridos desde a primeira publicação, surge agora, em edição autónoma, “Um Barco para Ítaca”. Quando o escreveu era um Ulisses sem barco nem arco, mas já com Penélope… ou não?

Esse livro está ligado a um aspecto importante da minha vida. Quando conheci a minha mulher [Mafalda Durão Ferreira], a quem é dedicado, ela andava a bordar um tapete, que é o que figura na capa do livro que a Dom Quixote agora publicou. Na altura, já não sei a que propósito, lembro-me que ela me perguntou se eu tinha um barco. Respondi que sim: Um barco para Ítaca. A parte do poema da Penélope estava já escrita quando conheci a bordadora deste tapete.

O que é que escapou a Calipso ao tentar reter Ulisses com a promessa da imortalidade?

“Seria a mulher mortal tão bonita se não devesse morrer?”. Ela era uma deusa, mas não tão próxima dos humanos como os humanos dos deuses. Tentou corrompê-lo com a imortalidade e ele recusou, pela tragédia e, ao mesmo tempo, pela incomparável beleza da mortalidade. Os instantes que se vivem intensamente são o pedaço de imortalidade que nos cabe. Escapou-lhe que Ulisses precisava de completar a viagem para se completar a si e escolher um tempo mais humano, o que se vive a cada instante.

A Odisseia é um livro de que nunca se despega?

A Odisseia e a Ilíada são para mim livros de cabeceira. A Odisseia é a grande metáfora da condição humana, da insatisfação, do inconformismo, da viagem de retorno, que era a minha viagem. Reli-a em Argel e muitas vezes nas ruínas romanas de Tipasá, à beira-mar, e sentia-me dentro da própria Odisseia, um pouco Ulisses, um pouco Telémaco. “Um Barco para Ítaca” é talvez, de todos os que escrevi, o livro com uma carga política mais intensa, mas talvez aquele onde isso menos se veja. O apelo de Telémaco é um apelo à revolta, quando falo dos usurpadores de Ítaca-Lisboa.

Este livro, que parece resistir à passagem do tempo, mantém uma terrível actualidade: fala de um “tempo com bico de milhafre/ e asas de rapina”…

E usurpadores – outro tipo de usurpadores. E abutres, e cobras, animais a cuspir a sua peçonha, uma peçonha que passa pela degradação da palavra e da linguagem. Hoje, nas redes sociais, cospe-se peçonha que é uma coisa por demais. Os sinais da desagregação da sociedade anunciam-se em “Um Barco para Ítaca”.

Que tempo é este que estamos a viver?

Nós vivemos um tempo, depois da nossa revolução, que, segundo o americano Samuel Huntington, iniciou uma nova era democrática no mundo. Foi um tempo da construção da democracia. Este é um tempo da desconstrução da democracia. Já não são precisos golpes de estado, nem metralhadoras nem tanques nas ruas. A democracia está-se a desconstruir por dentro, o que é mais perigoso, porque é muito mais difícil de combater. Há hoje um certo abastardamento da cultura, da educação, da civilização. Há uma crise de valores, acha-se que tudo é permitido. As fatídicas redes sociais, com o anonimato, a cobardia, promovem tudo isso. É um tempo de grandes interrogações sem respostas.

E destinam-se especialmente a quem?

São questões para a poesia e para os filósofos. Não são os economistas que vão responder a isso. Nunca vi os economistas acertar em coisa nenhuma, voltam ao princípio e repetem erros. Alguns o que sabem é fazer leituras dos ciclos económicos, mas são poucos. No tempo em que estive no exílio, tínhamos aquilo a que chamávamos a perspectiva histórica. Podíamos estar nós próprios bloqueados mas o tempo não estava bloqueado. Íamos mudar a História e fazer outro tempo. A sensação que eu tenho agora é que se perdeu o sentido do devir. Deturpa-se muito o passado, que aparece como uma espécie de culpa (não sei porquê), o presente está bloqueado, e não há um devir claro. O sentido de devir, de horizonte, do mais além, da própria transformação do tempo, estão bloqueados. Por outro lado, estão a aparecer fenómenos novos, como as alterações climáticas. Observo os jovens, e os meus próprios netos, que começam a ter pesadelos e sustos com as notícias sobre o planeta. Está a despontar uma nova ideia de morte: já não a morte pessoal, mas a morte colectiva. Esta é uma questão para levar muito a sério. Como se não bastasse, há o Bolsonaro e esses nomes que vão surgindo, há a corrupção. Como é que esse João Rendeiro consegue escapar do país? Parece que foi tudo feito para ele escapar, que aqui só são presos os que roubam uma galinha para dar de comer aos filhos. Há essa noção de uma desigualdade, mesmo na aplicação da justiça.

E Memórias na gaveta, há?

Eu gostava de deixar o meu testemunho, não propriamente as memórias, no sentido de biografia, mas os episódios fundamentais. Já tenho muita coisa escrita, de vez em quando, vou lá, acrescento, retoco. Mas… não é bem preguiça, há algo em mim que resiste, é-me difícil reviver certas coisas. Há um incómodo e talvez para me defender dele custa-me puxar da caneta. E eu não tomei notas, por razões de defesa e de clandestinidade, e outras perdi-as. E também prefiro deixar fluir a memória; no fundo, é um auto-romance [sorrisos]. Por outro lado, vivi coisas muito intensas e as coisas ou se dizem ou não se dizem. E tenho a sensação de que quando publicar aquilo vou ter aí uma série de chatices, vou dizer algumas coisas que não foram ditas…

Quer avançar com algumas dessas coisas, só para testar [risos]?

Ora, ora…

Preferiria não ter “biografia a mais”?

Tenho biografia a mais, comparada com a ausência noutras. A minha vida parece uma ficção ou várias ficções. Eu disse isso à Clara Ferreira Alves, foi uma provocação, e para responder àquela frase do Octavio Paz…

“Os poetas não têm biografia: a sua obra é a sua biografia.”

Sim, essa, mas isso é uma treta. Toda a gente tem biografia, mesmo aqueles que parece que não têm. Na altura, era uma moda, o poeta não se devia mostrar. São formas de narcisismo do avesso ou então uma auto-defesa daqueles que não são reconhecidos.

Acaba de ser publicada uma novela sua, “Tentação do Norte”. O sul já não é uma tentação?

Foi uma coisa que me saiu, é uma novela pequena, escrevi-a como quem escreve um poema. Foi uma coisa mágica. Acho que os leitores vão ficar surpreendidos.