Frontalidade é algo que não falta a João Soares, embora nos últimos tempos esteja bem mais contido. Numa entrevista feita a dois tempos, sempre num dos seus poisos preferidos, o Pão de Canela, na Praça das Flores, em Lisboa, fugiu tanto à questão mais quente da atualidade política, como a jovem que se sentou numa mesa ao lado e não queria revelar o seu país de origem: a Rússia. Também João Soares fugia de dizer o que pensa da posição do PCP sobre o ataque russo à Ucrânia. ‘Não dou tiros em ambulâncias, em pessoas que estão feridas ou caídas no chão’, foi o que acabou por dizer sobre o PC.
Por que se ofereceu para levar as malas de Macron, Guterres e do Papa Francisco a uma cimeira na Ucrânia?
Nem é preciso lá irem, basta anunciarem ou é ir só lá um, pelo menos. Que lá vá o Papa, isso tinha uma força incrível. Ainda por cima é um país muito católico. Não é só ortodoxos. Isso tinha um impacto brutal, além de que o Putin tem muito respeitinho à religião. Já pagou a renovação de uma série de igrejas. E vai à missa em Moscovo. Tenho pensado e observado com muita atenção aquilo que se tem estado a passar, e acho que ainda é tempo, até com algum conhecimento pessoal relativamente vasto, porque uma das coisas que fiz no Parlamento e que mais gosto pessoal me deram, foi estar envolvido na parte parlamentar da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Que cobre, entre outros, todos os países que saíram da antiga União Soviética. Com uma única exceção, curiosamente, o mais turístico, que é o Uzbequistão. Fiquei com essa lacuna cultural.
Não vos deixavam entrar no Uzbequistão?
Nunca houve iniciativas. Eu acabei por ser eleito vice-presidente e depois presidente da Assembleia Parlamentar. Isso deu-me a obrigação de passar por aqueles países, nomeadamente num que hoje está muito em voga, por razões que são compreensíveis. Conheci em pormenor o conflito da Geórgia com a Rússia, em 2008, precisamente quando tinha sido eleito presidente da Assembleia Parlamentar. Esse conflito da Geórgia também é interessante porque, de facto, não foi a Rússia que tomou a iniciativa do ataque e tinha uma relação especial com duas regiões consideradas formalmente separatistas da Geórgia, que são a Ossétia do Sul e a Abecásia, que são muito pequenas. Na Abecásia não se entrava com facilidade – eles tinham problemas com os georgianos – mas estive na fronteira, que é uma espécie de Côte d’Azur e foi muito usada como destino de férias pela nomenclatura soviética. Agora também deve ser um Freeport para outras coisas, mas é uma zona muito bonita no Mar Negro. E a Ossétia do Sul deve ser duas vezes o concelho de Sintra, numa zona montanhosa, sem riquezas nenhumas especiais. Quero dizer, não tem nem petróleo, nem ouro, nem nada. Aquilo é um conflito muito estranho. Mas a verdade é que eles declararam a independência da Geórgia, ao mesmo tempo que a Geórgia declarou independência da União Soviética, quando a URSS caiu. O homem da Geórgia, que conheço relativamente bem, foi eleito democraticamente Presidente e foi um tipo que fez obra, era um tipo iluminado. Ele estava convencido que tinha um ganho de causa em querer os territórios. Curiosamente tem uma semelhança com o que se está a viver agora: o ataque da Geórgia à Ossétia do Sul verifica-se na noite na véspera da abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, nessa altura em 2008. Curiosamente este ataque agora também tem lugar no momento dos jogos Olímpicos de Pequim, mas de inverno e no fim do Jogos.
Só que a Rússia depois invadiu a Geórgia com o argumento de que teria que defender a Ossétia do Sul.
Sim. Não vale a pena desviar a conversa… mas aquilo é apaixonante. Fui, enquanto presidente da Assembleia Parlamentar, com o anterior presidente – um conservador sueco –, com o secretário-geral americano e com o Nuno Paixão, que esteve sempre comigo neste processo, a Moscovo e depois a Tiblissi e aquilo foi muito interessante. Há poucos dias o Nuno Paixão descobriu uma fotografia que tinha sido publicada do primeiro encontro, na Bielorrússia, entre os ucranianos e os russos. Um dos russos era justamente um dos que nos recebeu quando nós fomos a Moscovo. No caso da Geórgia, ao contrário do que tem sido dito, a agressão não começa por ser russa. Pode ter havido alguma provocação dos serviços secretos, mas tenho a convicção, com a pretensão de não ser pateta, nem imprudente, que naquele caso foi o homem da Geórgia que avançou, convencido de que conseguia consolidar um facto consumado.
Já deu a volta ao bilhar grande várias vezes para fugir à questão da atualidade…
Ao contrário do que dizem alguns ingénuos, outros ainda menos ingénuos… aqui não há o menor pretexto, desculpa, não venham cá com a NATO nem com os americanos. A NATO e os americanos têm feito alguns erros, sou profundamente ocidental e atlantista, mas aqui não creio que tenham feito a mais pequena coisa, pelo contrário. Aliás, foram sempre firmes.
Continua a fugir…
A invasão russa à Ucrânia é um crime absolutamente miserável, e quando digo isto é absolutamente genuíno. Isto é um ataque, é uma invasão. Um ataque que dá origem a uma invasão. E é um ataque militar.
Finalmente uma posição sobre o assunto. Mas acha que a Geórgia e a Ucrânia não devem entrar na NATO?
Defendi na altura [2008] que esses países tinham de fazer o percurso democrático completo para depois ambicionarem entrar na NATO. Além de que há um problema da fronteira com os russos – tem de se ter em conta a sensibilidade dos russos de não quererem armamento nuclear à sua porta. Uma das coisas dramáticas que o Putin fez por irresponsabilidade – citando um antigo secretário-geral da NATO – é que arruinou a própria credibilidade que tinha conquistado.
Como assim?
Nós agora recebemos pelo WhatsApp aqueles pequenos vídeos, com pequenos filmes que retratam vários momentos de diversas personagens. Ontem vi um em que o Putin está a receber o Bush filho, onde estão umas mulheres com os trajes tradicionais daquelas repúblicas ex-soviéticas, e é um clima completamente distendido. O ambiente era esse. Uma coisa que o tinha frustrado muito foi quando o Presidente Obama definiu que a grande preocupação estratégica dos Estados Unidos era o Pacífico e o Oriente. No fundo, desvalorizando a Europa, mas desvalorizando a Europa com um cumprimento para nós europeus ocidentais. Ele disse que a Europa não precisava de ajuda, que tinha os meios mais do que suficientes para se defender, ainda estavam os britânicos também, coisa que não é despiciente. E depois alguém lhe perguntou: «Então e a Rússia?». E o Obama disse uma coisa que é justa na análise no contexto estratégico de geopolítica internacional, mas que é errada no ponto de vista de ferir orgulhos, que não vale a pena. Ele respondeu: «A Rússia é uma potência regional». Segundo o antigo secretário-geral da NATO, que me contou este episódio, o Putin ficou doido com essa afirmação. Putin queria e quer ser visto como primus inter pares no plano internacional. São eles e os EUA. E eles eram um dos grandes. Houve uma fase em que eles foram mal tratados, foi a fase da queda do Muro de Berlim e daquelas coisas todas. Com as bebedeiras do Yeltsin… Um chefe de um estado daqueles que sai do avião a cair de bêbado, na Irlanda, em escala para os Estados Unidos, é uma coisa horrível. E nós, Ocidente, americanos e uma parte da Europa ocidental, tratámos de uma forma menos cordial e delicada um país como a Rússia. Talvez tenha sido até a fase em que aquilo esteve mais aberto, do ponto de vista político. Acho que até abriram na altura os arquivos da KGB e depois voltaram a fechar. Que era interessante do ponto de vista histórico. Mas a Rússia é um grande país, que tem uma grande história, uma grande cultura, e não podia ser tratada dessa forma. Agora a Rússia tem ali o problema da China, que Putin aparentemente resolveu com uma lógica, com uma certa tranquilidade e pacificação, etc. Mas eles, nem de um lado nem de outro, ignoram o percurso que cada um fez. E os conflitos que tiveram.
Concluiu que Putin quer recuperar esse respeito, reconstruindo, de certa forma, o império soviético?
Isso não sei. Porque não acho que esteja tão louco que tenha uma ilusão dessas. Não consigo entender, não consigo encontrar uma explicação racional.
É essa sua experiência que o leva a dizer que se oferece para ir com Macron, Guterres e o Papa à Ucrânia?
Não, esse é um sinal, um sinal pacífico, se quiser vamos evocar o espírito do Gandhi, das lições que o Mandela nos deu, noutro quadro. Acho que era interessante, porque era uma forma de dizer que o mundo está a seguir este conflito e está deslumbrado com o Zelensky, o Presidente da Ucrânia. Ele tem revelado uma coragem espantosa contra os ataques de Putin – nunca digo russos, nunca uso a expressão ‘ataque dos russos’. De facto, é o ataque do Putin, feito com tropas russas. Voltando à proposta, se Macron dissesse: ‘Falei com secretário-geral das Nações Unidas, ele está disposto a isso, e sua Santidade o Papa também. E estamos os três dispostos a ir a Lviv para falar com o Presidente Zelensky’. Não é falar ao telefone, é ir lá sem tropas. Isso é que era uma iniciativa que tinha um valor simbólico até para os russos.
Mas chegou a sugerir a António Guterres?
Sei que eles veem as coisas que as pessoas dizem, não estou a dizer que estou no centro de coisa nenhuma, pelo contrário. Fiz uma proposta direta – sabe que sou vizinho dele? A minha proposta é pública e é feita com toda a modesta e foi por isso que disse: «Estou disponível para ir levar as malas se for preciso». Acho que deviam ir com uma pequena equipa de guarda-costas, mas sem militares. Tinha de ser uma coisa pacífica.
Mas acha que esse gesto tocaria minimamente Putin?
Não conheço Putin pessoalmente, conheci o Lavrov, tive várias reuniões com ele. Agora o Putin, não sei. O Fidel Castro, aqui há uns anos, quando ainda não tinha caído, porque o Fidel Castro também caiu – não caiu da cadeira como o nosso, mas caiu lá uma vez de um estrado, ia fazer um daqueles discursos de sete horas. Não sei se foi a meio do discurso. O Papa foi lá, deve ter sido o João Paulo II. E o Fidel Castro terá feito um comentário para um órgão de comunicação social ocidental, do género: «Aqui quem manda sou eu, exceto nos dois dias em que cá estiver o Papa». A Ucrânia é um país muito católico e na Rússia a religião tem uma importância muito grande, e não digo só a religião. A França é um país respeitado. Os franceses usam o slogan ‘La grande heure de la France’, mas ainda há uma ‘Grande heure da la France’ sobretudo quando há ainda capacidade para fazer grandes gestos. Se Macron tomasse ele a iniciativa de falar disto, podia ser interessante. Claro que defendo que eles têm de continuar a negociar. E vejo que o Zelensky tem revelado uma argúcia fantástica, absolutamente espantosa. As pessoas que desvalorizam e tomam posições pró-russas agora não se atrevem a tomar posições pró-russas abertamente, porque perceberam a indignação que está na sociedade portuguesa e por todo o lado e por todo o mundo. E agora dizem: ‘Ah!, o Presidente era um comediante era um ator…’. O que tem ter sido um ator de comédia? Não tem problema nenhum, pelo contrário. Agora que ele tem sido de uma coragem e de uma capacidade política e militar, em termos de segurança, tem.
Sei que não gosta da palavra ‘geringonça’, mas foi o obreiro da primeira coligação de esquerda, quando concorreu à CML na lista encabeçada por Jorge Sampaio. Juntou o PCP, PSR, UDP e MDP/CDE…
Não gosto da palavra ‘geringonça’ porque sempre achei que era uma expressão que menosprezava o que aquilo era na realidade. Quanto à Câmara, só não entrou o PRD, que era dirigido pelo Hermínio Martinho, que quis fazer uma candidatura autónoma. Chegou a ir fazer campanha para um centro comercial fora de Lisboa. Foi uma coisa ridícula.
Mas olhando para trás, como vê…
Correu tudo lindamente. Parte de ter corrido bem resultou da sorte e do bom senso que os portugueses têm, que eu não esperava. Tive medo que não fosse tão elevado. Mas os portugueses têm revelado bom senso nas escolhas que fazem. E não fui autor de coisa nenhuma. Talvez tenha sido o primeiro a propor, juntamente com o Acácio Barreiros, uma candidatura conjunta da esquerda para conquistarmos a Câmara de Lisboa. Sampaio assumiu a candidatura para ele, já que era o líder do PS. Vasco Pulido Valente, e eu não faço comentários sobre pessoas que já desapareceram, disse que era o suicídio de Sampaio. O António_Barreto também disse o mesmo – ainda há pouco tempo disse uma coisa verdadeiramente miserável sobre o meu pai, que ele faltava à verdade, coisa que nunca seria capaz de lhe dizer se ele fosse vivo. Eu não faço isso de falar de pessoas que já desapareceram.
Mas numa entrevista dada ao SOL, e feita pela Ana Sá Lopes, assumiu que o PS recusou o seu nome.
É verdade mas não quero estar a valorizar-me. Não tenho problemas de ego.
Mas por que razão não quer comentar a posição do PCP em relação ao conflito? Como vê a negação do PCP em relação ao ataque da Rússia à Ucrânia? Ainda há poucos dias os seus camaradas Francisco Assis e Sérgio Sousa Pinto disseram que não é um partido democrático.
Tenho um profundo respeito pela história do PCP, mas nunca fui, não sou e nunca serei comunista. Fui vacinado pela biblioteca dos meus pais. O meu pai foi do PCP entre 1942 e 1950, e na altura não havia cartões de militantes. Todos tinham um pseudónimo e foi o meu pai que criou o dele e mais dois. O dele era o Fontes, o do Octávio Pato era o Pereira e o Zenha ou outro dirigente do Norte, não sei bem, era o Melo: Fontes Pereira de Melo! Isto é engraçado, apesar de não ser muito citado.
Nesta polémica nacional deu várias voltas à Praça das Flores para não comentar a posição do PCP e do Bloco. Está como Pedro Nuno Santos, que não comenta a situação?
Sou amigo do Pedro Nuno Santos e acho que ele também é meu amigo e não comento a sua posição. A minha eu digo-lhe. Ontem usei uma expressão que até me arrependi um bocadinho mas volto a usá-la. Não dou tiros em ambulâncias, em pessoas que estão feridas ou caídas no chão. E visivelmente, o PC, ao contrário do que eu gostaria, está nessa situação. Na minha geração as pessoas foram quase todas comunistas ou maoístas, ou castristas. O Pacheco Pereira uma vez disse que eu tinha uma costela ‘guevarista’. Mas nunca fui. O Che Guevara é uma figura icónica, é como Jesus Cristo na cruz. Aquilo tem um percurso de martírio. Mas também mandou fuzilar muitas pessoas em Havana quando eles tomaram o poder. Agora respeito um homem que foi até ao fim por aquilo em que acreditava. Aquela morte dele na Bolívia é uma coisa completamente doida.
Mas Putin também pode acreditar…
Mas é uma posição diferente. Estamos a falar de um tipo que é chefe dos torturadores. Agora tenho pena que tenha assumido esta posição, de que não se vai livrar tão depressa. Isto é uma coisa que me entristece e ao mesmo tempo que me irrita. O PC, com todos os erros que estão por trás das posições ideológicas, até representava um papel positivo na sociedade portuguesa, nomeadamente no que tem a ver com o movimento sindical. E também me entristece ver a líder da CGTP [Isabel Camarinha], a primeira mulher que é líder da CGTP, não sair daquele discurso cinzento e ortodoxo. É uma tristeza porque nós vimos como os PCs desapareceram um pouco por toda a Europa e nós tínhamos um caso excecional. Somos um caso excecional na Europa e no Mundo. Que é ter um PC num país democrático e Ocidental que resistiu como força significativa. A verdade é esta. Se as eleições legislativas fossem hoje, se calhar, o PC elegia o Jerónimo e com alguma dificuldade. Isso é lamentável. Se fosse o Bloco, não era nada que me entristecesse, mas o PC entristece-me. Sabe porquê? Houve militantes que passaram 10 anos na cadeia. Houve até quem tivesse passado mais de 20 anos na clandestinidade para imprimir o Avante!. Independentemente do conteúdo do Avante! eu tenho um grande respeito por isso.
Anos depois o seu pai exilou-se em Paris.
Sim, foi para França em 70, mas antes eu tinha conhecido o pai do Arons de Carvalho, Joaquim Barradas de Carvalho, que era um homem de uma família rica do Alentejo, mas que foi do PCP até à morte. E como ele também se exilou em Paris organizava uns jantares que eram sempre deliciosos num restaurante chinês no Quartier Latin. Às vezes ele convidava só os mais novos e lá ía eu, a minha irmã e o primo Mário, que também já estava exilado lá em Paris. Uma noite ele contou-nos que Cunhal lhe tinha feito um desabafo: «Deixámos fugir os dois melhores» que eram o Zenha e o meu pai [Mário Soares]. O Cunhal tinha aquilo atravessado, como é que tinham deixado que eles saíssem do PCP. Ao contrário do que os comunistas gostam de fazer crer, Cunhal não vivia no Leste antes do 25 de Abril. Vivia em Paris. E veio num avião da Air France de Paris para Portugal.
Continua à volta do baile e não fala do PCP e do ataque da Rússia à Ucrânia e já lhe fiz a pergunta várias vezes. [risos]
Fizeram 101 anos, já não são o que foram. Não queria dizer isto, mas se houvesse eleições hoje eles levavam uma tareia monumental. Como é que um partido que tinha uma tradição de sensibilidade junto das pessoas, um capital junto dos mais humildes, mas não só, toma esta decisão?
Tem essa afirmação sabendo que o PC apoiou a invasão da Hungria, da Checoslováquia, da Crimeia?
Acho que o Cunhal foi o primeiro a admitir isso num congresso em Loures. Primeiro, o Putin e a autocracia do Putin e dos plutocratas que mandam na Rússia não têm nada que ver com o comunismo. O comunismo foi uma coisa horrível, com os Gulag. Coisa que eles têm dificuldade em admitir, mas isso têm dificuldade em admitir todos os comunistas. Os pró chineses, a mesma coisa… Aquilo foi feito com um regime prisional do pior que há no mundo. Só quem não tenha lido o mínimo. Há um escritor de origem ucraniana, soviético, que é o Vassili Grossman, que escreveu Vida e Destino, que dizem que é o Guerra e Paz do século XX, é um livro que recomendo vivamente.
Tinham os Gulag…
Claro que sim, injustificável e condenável a todos os títulos. A contabilidade das vítimas dos Gulag está feita. As vítimas dos Gulag foram mais que as vítimas dos nazis, que foram uma coisa gigantesta. Curiosamente, os russos bombardearam agora um sítio onde eu estive com o Nuno Paixão, que é Babi Yar, o primeiro grande massacre do Holocausto que é feito pelos alemães. Há até um um pequeno monumento e uma sepultura coletiva aos mais de 30 000 mil judeus que responderam à chamada de Hitler e apresentaram-se para serem fuzilados pelas SS. A verdade é esta: a Segunda Guerra começa com o ataque dos nazis e dos soviéticos à Polónia. E também tem algumas semelhanças com o que se está a passar agora. Porque os ocidentais, nomeadamente a França e a Inglaterra, tentaram de tudo para evitar a guerra. Fizeram os Acordos de Munique, entregaram a Áustria, a Checoslováquia, foram entregando na perspetiva de construir a paz. E também sem ideia do que aquilo ia ser, aquilo já estava a ser. Mas o ataque à Polónia, que dá origem formalmente à guerra, é um ataque conjugado com a União Soviética. As pessoas não se lembram disso, mas o Hitler e o Estaline assinaram o Pacto que ficou conhecido por Ribbentrop-Molotov, em Moscovo, com Estaline presente na sala do Kremlin, com as fotografias todas. O tratado é assinado 15 dias antes do ataque à Polónia. A invasão alemã é no início do mês de setembro de 1939, e os soviéticos atacam a 17 ou 23 de setembro. E partilharam o território da Polónia. Mataram 10 mil oficiais do exército polaco, na floresta de Katyn, a seguir a essa partilha concretizada. O Estaline entregou comunistas alemães à Gestapo que eram considerados dissidentes, que estavam num Gulag no Cazaquistão.
Os alemães quando conquistam Lwov, que hoje é Lviv, depois passam para os russos. Deixa de ser Polónia para ser Ucrânia. Perante isto tudo pergunto-lhe se anda a tomar algum chá calmante… Acha que o PCP é um partido democrático, ao contrário do que diz Francisco Assis?
Gosto e admiro imenso o Francisco Assis, mas se tivessem dito no momento do entendimentos à esquerda… A minha preocupação é porque o PC tem tido um papel positivo na vida portuguesa. O domínio do movimento sindical pelo PC, desde os tempos do Cunhal, representa um fator de estabilidade do país. No dia que o PC desaparecer, e tem desaparecido em muitos países da Europa ocidental, ao contrário do Bloco, isto entra numa situação tipo a dos coletes amarelos, aquelas coisas que a gente vê em França, na Espanha.
Acha que o PC é um bom travão aos coletes amarelos?
Acho que o PC, infelizmente, está a ser um bom travão a si próprio, que entrou ali numa lógica de aparelho e está ali um partido que se está tornar autista. Não gostava que isso acontecesse. Isto são provas de um terrível autismo e incapacidade para ouvir a sociedade. Se eles sempre tiveram a proximidade com as pessoas mais humildes e as pessoas que mais sofrem – que esse é o capital que eles têm – não percebo este comportamento. Gosto de recordar que o PCP é um partido onde não há grandes problemas de corrupção – nunca teve – isso é um capital importante.
Se há coisa que o país deve ao seu pai foi ter travado os comunistas depois de Abril de 74. Se o seu pai não tem travado os comunistas, estaríamos a falar de que país?
Oiça lá, isso faz-me lembrar o discurso que os comunistas e os bloquistas fazem sobre os fascistas. Nós tivemos uma ditadura protofascista se quiser, não entre lá nas coisas académicas se foi ou não fascista. Foi uma ditadura de direita, torcionária, com polícia política. Agora não há fascistas em Portugal, felizmente. É falar de um combate que já passou. Os comunistas não representam ameaça nenhuma. Está a negar-me isto que estou a dizer? Sei tudo o que os soviéticos fizeram, as torturas, tudo. Mas não vale a pena falar disso nesta altura. Tenho imensa pena do capital que o país perde com estas posições do PCP. Por exemplo, não gosto de futebol, quando fui autarca fui assistir a muitos jogos, mas tenho pena que tenhamos perdido o Eusébio. Qualquer dia o Cristiano já não joga. Mas o Cristiano é um capital, e eu não gosto de futebol, mas sou capaz de dizer isto. É a mesma lógica que estou a usar para falar do PC. Não há ameaça nenhuma, apesar de reconhecer que o que eles fizeram é um disparate. É inacreditável. Confundir a plutocracia de ladrões do Putin com a União Soviética é outro erro monumental. A União Soviética também foi uma coisa absolutamente lamentável. Aliás, produziu aquilo [Putin]. Aquilo é um processo pavloviano. Veja um processo que me foi caro. Você também conhece bem até pela história do vosso jornal: Angola! Angola é aquele modelo. Não quisemos ver durante muitos anos e continuamos a não querer ver. Isto vai favorecer o João Lourenço. Mas Angola é o modelo da Rússia de Putin. É um bando de ladrões no poder a reclamarem-se de uma razão histórica que não tem nada a ver com o que eles são, ladrões, despreocupados com o povo mais humilde, que sofre. É o mesmo modelo do Putin. É o modelo dos países da ex-União Soviética. Vocês também foram muito complacentes com os sobrinhos, os tios… Mas também é verdade que sempre pude dar a minha visão da UNITA. Curiosamente, os dois países, onde apesar de tudo, houve alternância democrática, que se pode considerar que tinham uma base democrática, foram os dois países que tiveram conflitos com a Rússia. Primeiro a Geórgia e depois a Ucrânia. Eu assisti a transições democráticas na Ucrânia, por via eleitoral e não se sabia qual era o resultado antecipadamente. E na Geórgia a mesma coisa.
Um dos seus episódios mais conhecidos foi o que levou à sua demissão de ministro da Cultura quando utilizou aquela metáfora a dizer que dava dois estalos a dois críticos. Hoje é um homem muito mais recatado.
Não sei. Ouça, acho uma coisa curiosíssima e já tenho falado sobre isso. Primeiro é uma coisa que não me incomoda nada nem me perturba absolutamente nada. Pelo contrário, até me dá gozo. Mas o que fiz nessa altura, picado por uma coisa que tinha saído na véspera e na antevéspera, uma do Vasco Pulido Valente e outra do Augusto M. Seabra, que já me tinha atacado 15 ou 20 anos antes quando eu estava na Câmara de Lisboa, fez-me um ataque ao meu caráter e à minha honra pessoal do ponto de vista das coisas materiais e dizendo que eu protegia amigos, etc. Nessa altura, às 7h da manhã, quando acordei, limitei-me a escrever três linhas que ninguém leu. Aliás, costumo dizer que o Zuckerberg, o homem do Facebook, devia-me dar uma medalha de Lenine: que eu saiba, no Mundo, sou o único que se demitiu de um Governo com o qual estava de acordo por causa de três linhas no Facebook que ninguém leu mas que se tornaram uma coisa viral. Eu não apago as coisas, a não ser que sejam ofensas pessoais daquelas mesmo porcas. Mas limitei-me a transpor três ou quatro linhas do que tinha escrito no Diário de Notícias e tinha sido publicado. Em que dizia, «estou a ver que tenho que dar duas bofetadas». Não gosto de fazer promessas calendarizadas mas talvez devesse. Nessa altura, quando sai aquilo, outra vez um ataque do mesmo estilo, do mesmo personagem, que era conhecido por ser um boca suja. Felizmente ainda está vivo.
Está a falar de Augusto M. Seabra?
Sim, é um homem com cultura. Como, aliás, o Pulido Valente, que era um tipo interessantíssimo. Limitei-me a dizer que fui objeto de um ataque deste tipo, pessoal, e não admito. «Estou a ver que tenho que cumprir a promessa que fiz há 20 anos e aí transcrevi, ‘e dar as duas bofetadas’, que eu gosto de cumprir as promessas que fiz. E, talvez, já agora, juntar o Pulido Valente». Foi rigorosamente isso que eu escrevi. O meu primo Mário Barroso, que é um primo como um irmão, como o Eduardo, telefona-me de Paris, onde ele vive, às 7h da manhã. E ele nunca me telefona de manhã. Tinha lido aquilo. Disse para eu tirar, para não fazer aquilo porque me iam cair em cima. E eu disse que não tinha importância nenhuma. É uma coisa posta lá. Fui abrir o Facebook e vi uma coisa do Joaquim Vieira a dizer para as pessoas irem ler porque aquilo ia ser apagado brevemente. Eu disse que não ia apagar aquilo. Escrevi, estava escrito. E ficou. Depois fui para a sessão do Conselho de Ministros e estávamos todos sem telefones. Quando saí percebi que aquilo estava… Não havia Draghi, não havia Conselho de Estado, eram só as bofetadas do João Soares. Eu disse que ia ficar tranquilo em casa. Decidi não ir para o Ministério porque já estavam os jornalistas à espera. Havia uma hipótese de ir ao teatro com o Costa nesse dia, à Barraca, e não fui. Que era para não haver problemas e ver se aquilo amainava. Aquilo não amainou. Foi abertura de todos os telejornais. Não havia nem Banco Europeu, nem Draghi, nem Conselho de Estado nem nada. E no dia seguinte de manhã fiz uma notinha de três linhas: «Estou solidário com o Governo e com o primeiro-ministro, sinto-me muito orgulhoso de ter sido convidado para estar aqui mas vou-me embora porque não atrapalho um projeto em que acredito». E depois no último parágrafo disse que não prescindo de exercer o meu direito à minha liberdade de opinião, seja qual for a função que ocupo. Fui eu que escrevi com a minha mão. Com a ajuda do Horácio César, que já morreu, que estava a trabalhar comigo.
Não acha que Costa foi pouco solidário consigo?
Temos que ver o que disse o secretário-geral das Nações Unidas, que apoiei e apoio, quando se candidatou a secretário-geral do PS, uma vez numa sessão que me lembro bem, em Alverca. Aquilo marcou-nos, a mim e a uns amigos, e até achámos que o ele estava a ser um bocado frio demais. Ele disse: «Em política não há favores nem gratidão». Ele tinha razão. Sei o suficiente de História – não sou especialista – para saber que não se faz política com meninos de coro. Isto não é o coro da igreja. E mesmo nos coros da igreja, como a gente sabe, às vezes há histórias de abusos sexuais. Não quero entrar por aí porque tenho muito respeito pela Igreja apesar de não ser crente. Mas, quer dizer, não acho que ele se tenha portado mal comigo. E não sou homem para ter rancor.
Ainda vai às reuniões da maçonaria e põe o avental e essas coisas?
Nem sei onde tenho o avental, mas vou. Não vou às reuniões todas, nem de perto nem de longe. Vou mais a cerimónias fúnebres, embora aquilo tenha tido alguma remodelação. Sou fidelíssimo aos valores. Os valores da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nem sempre são praticados até pelos próprios maçons mas eu continuo a ser fidelíssimo e sempre me assumi como maçom. Até digo o meu nome simbólico: Thomas More. Aquele que o professor Cavaco Silva confundia com o Thomas Mann. A minha loja é a loja mais antiga. Muita gente mudou de loja, não vou dizer quem são mas sempre fui da mesma, que é a Simpatia e União, que é uma loja que se manteve sempre durante os 48 anos de ditadura.
O que acha da maçonaria hoje em dia?
Acho que a maçonaria tem um papel que pode ser importante que é pôr pessoas de origens ideológicas diferentes e de formas de pensar diferentes juntas a refletirem sobre os problemas com que estamos confrontados. Acho que a maçonaria tem estado aquém daquilo que podia. Teve lá períodos muito bons. O Arnaul foi um belíssimo grão-mestre.
Aquém de…
Aquém daquilo que podia ser nesse plano. Tenho ideia que em França a maçonaria representa muito mais do ponto de vista dessa possibilidade de pôr a falar pessoas discretamente. Aquilo não é secreto ao contrário do que se diz.
Muita gente não se assume como maçon.
Acham que têm medo mas não há razões para ter medo coisa nenhuma. As pessoas devem assumir-se. Não estou de acordo que a lei obrigue as pessoas a dizerem se são maçons ou da Opus Dei, quero lá saber. Ou que são homossexuais, ou que são heterossexuais ou são transexuais. Mas acho que os maçons devem assumir-se, por regra.
Mas já não usa o avental.
Uso. Quando é preciso. Ainda há relativamente pouco tempo fui votar à loja e pedi um avental porque não sabia onde tinha o meu.
Tem que se levar um avental para votar?
Não. Mas convém. Para estar numa sessão de loja, em princípio tem que se ter.
Já não está nessa loja?
Estou na mesma, sempre. Agora os maçons estão muito ritualistas. Há uns que usam luvas e andam de batas. Sempre achei que o ritual da maçonaria não tem nada que ver com princípios. Compreendo as razões, aquilo é um misto de dois rituais, é o ritual dos advogados dos tribunais que até acho que o interior da loja é uma coisa que parece muito um tribunal e da Igreja Católica. A Igreja Católica é muito boa nessas coisas dos rituais. Não sou crente, não sou sequer batizado. Só comecei a ter que ir mais às igrejas quando fui autarca aqui em Lisboa. E fiquei seduzido com aquilo mas não estou à beira de me converter. Aquilo tem música, aquilo tem cheiro, aquilo tem apelo à fraternidade e à solidariedade. E normalmente os sacerdotes são grandes oradores.
O que acha desta fase em vivemos em que é proibido tudo? E o PS e a sua geração…
Sim, é um domínio do politicamente correto. Ou do sanitariamente correto. Juntam-se várias coisas, que é completamente disparatado. Mas olhe, sinto isso, por exemplo, nos meus filhos mais novos sobretudo mas também nos outros – tenho duas edições de filhos, dois mais novos e outros um pouquinho mais velhos – que há uma rejeição desse politicamente correto. Os miúdos novos indignam-se com isso. E isso até pode provocar alguns efeitos perversos.
Como por exemplo?
Não sei, as pessoas terem posições mais tradicionalistas, se quiser. A tradição de abertura. Isto na vida tem-se sabido, na História há movimentos pendulares e nós vivemos num país da cultura do papel selado e da licença de isqueiro. E do outro lado desse pêndulos também tinha o PC, de quem eu não quero dizer mal, mas que também tinha ortodoxia que se impunha, no fundo também houve momentos em que havia a moral proletária, havia essas coisas. Os MRPP chegaram nisso ao paroxismo das coisas mais doidas. Têm diretivas do PC e do MR, dos sucedâneos da extrema-esquerda e de outros, que são coisas completamente loucas. Pensar, viver e votar, coisas em que dão diretivas sobre o comportamento conjugal das pessoas, etc. Isso tudo misturou-se e deu este caldeirão.
Não acha que os partidos de extrema-direita ganham à conta disso?
Claro que sim, claro que ganham. Os partidos de extrema-direita e às vezes outros também. Embora ache que, em Portugal, é um disparate falar daquele senhor Ventura, aquilo é um homem sozinho. Falar daquilo como uma coisa fascista também acho isso um disparate. É aquela história do Pedro e do lobo, não se fala do lobo quando não é bem o lobo, quando é um cão sarnoso com uns toques de raiva. Mas não é um fascista, aquilo não é fascismo. Ainda por cima vivemos numa ditadura protofascista. Temos obrigação de saber o que é o fascismo. O fascismo é uma polícia política que controla o que você pensa e o que você diz, é a prática de tortura, é haver censura de imprensa, estas coisas básicas.