Cerca de 300 empresários da área do transporte de mercadorias pesadas não aceitaram as medidas acordadas entre o Governo e a Associação Nacional dos Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (Antram) – que prevê um aumento das tarifas como solução para a sobrevivência destas empresas, face à escalada do preço dos combustíveis – e ameaçaram parar 20% das suas frotas “nos próprios parques”, sobretudo no Carregado. Ontem concretizaram a ameaça, numa paralisação organizada pela Movimento Zero, mas que acabou por rondar apenas 40 viaturas, em vez das 200 previstas. No interior colocaram folhas com fundo vermelho, distribuídas por várias pessoas que já se encontravam no local, e nas quais se lia “pela nossa sobrevivência”.
Em cima da mesa está a redução provisória de impostos, a redução direta no fornecedor do gasóleo profissional, a obrigatoriedade da anexação da variação do valor do combustível na fatura de frete ou o alargamento do gasóleo profissional a viaturas de peso igual ou superior a 7,5 toneladas. Medidas que, no entender deste movimento, são realistas e estão “ao alcance do Governo”.
Para já, o Governo comprometeu-se a reunir com a Antram esta terça-feira às 16h. O ministro da Economia anunciou no sábado uma linha de crédito de 400 milhões de euros para empresas mais dependentes da energia e dos combustíveis e que têm visto os seus custos aumentarem com a subida dos preços. Já ontem, Siza Vieira revelou que os transportes de mercadorias por conta de outrem, até 3,5 toneladas, terão um apoio de 30 cêntimos por litro de combustível e de Ad Blue, à semelhança do apoio atribuído aos autocarros de passageiros e táxis.
Também Espanha enfrenta o mesmo problema. Várias associações espanholas do setor de transporte de mercadorias iniciaram ontem uma greve por tempo “indeterminado” devido ao aumento dos preços dos combustíveis provocado pela guerra na Ucrânia, que torna a situação “insustentável”.
Caso não é inédito Em 2019, Portugal vivia um momento intenso. Na altura, o rosto do protesto foi Pedro Pardal Henriques que estava à frente do Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP). Em causa não estava o preço dos combustíveis mas a categoria profissional e o salário base dos seus motoristas. A Antram acabou por chegar a acordo com o Governo, mas o SNMMP foi resistindo mais tempo.
A primeira paralisação ocorreu a 15 de abril e apanhou todos um pouco de surpresa, ao ponto de no dia a seguir já faltarem combustíveis nos aeroportos de Lisboa e Porto e, a partir desse instante, a realidade impôs-se: os impactos da greve iam ser incontáveis. Não porque o país fosse ficar sem combustível, mas porque esta greve provocou uma “séria entropia nos canais logísticos de distribuição”, chegou a admitir a Entidade Nacional para o Setor Energético. Formaram-se longas filas nos postos de abastecimento, que em muitos casos esgotaram os seus produtos. Em três dias, as ondas de choque propagaram-se por toda a economia, essencialmente porque ninguém se preparou.
Estes movimentos foram-se prolongado até setembro desse ano, altura em que foi colocado um ponto final a este conflito.
Setor debaixo de fogo É certo que nos últimos anos tem havido sucessivas ameaças de paralisação. Uma das últimas grandes reivindicações foi feita em junho do ano passado pela Associação Nacional de Transportadoras Portuguesas (ANTP), depois de ter feito um ultimato ao Governo exigindo que o aumento dos combustíveis fosse refletido no preço do serviço e descontos nas portagens.
No caderno reivindicativo constavam questões como a descida do combustível em quatro cêntimos, a fixação da reforma para os motoristas aos 60 anos, a exclusão de pagamento nas ex-Scut (estradas sem custos para o utilizador) e os pagamentos a 30 dias.
Em junho de 2016 tinha sido a vez da Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM), após o Governo ter anunciado um aumento de seis cêntimos por litro no imposto do gasóleo rodoviário. Na altura, a entidade lembrava que este setor estava a ser fortemente penalizado nos últimos anos. De acordo com as contas da ANTRAM, teriam encerrado cerca de três mil empresas nos três anos anteriores. A associação justificou o fecho destas empresas com os mais variados fatores, nomeadamente a dificuldade das empresas em obterem financiamento, o elevado preço dos combustíveis – ainda sem contar com as novas subidas propostas pelo Governo – e a elevada carga fiscal.
2008 parou o país O aumento dos preços dos combustíveis foi uma das principais razões que levaram à rua milhares de camionistas em 2008, por considerarem que estava a afetar os recursos das empresas de transportes. O país era liderado por José Sócrates e o ministro com responsabilidade nesta pasta era Mário Lino.
Os camionistas apresentavam ainda outras reivindicações: queriam ter acesso ao gasóleo profissional (taxado com imposto mais baixo), debater a redução das portagens à noite, os apoios ao abate de veículos, os incentivos à formação profissional ou a suspensão do pagamento do IVA referente a faturas que ainda não tinham sido pagas pelos clientes.
O bloqueio foi marcado para entre 8 e 12 de junho, depois de ter sido realizado um plenário que juntou mais de mil transportadores de mercadorias, na Batalha, e de terem ensaiado um primeiro bloqueio no Porto. Mas acabou por ser levantado ao fim de três dias.
Esta iniciativa nunca contou com o apoio da associação do setor, a Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias, que não aderiu por estar em negociações com o Governo. Na altura, a entidade chegou a apelar “ao bom senso e à serenidade dos ânimos”, afirmando ainda que aguardava “que as reuniões que estavam a decorrer resultassem num entendimento que satisfizesse as pretensões de todos os transportadores públicos rodoviários de mercadorias”.
Mas a paralisação manteve-se apesar dos apelos da ANTRAM, e o terceiro dia ficou marcado pela morte de um camionista que participava num piquete de greve, perto de Torres Novas. O camionista morreu na sequência de atropelamento por um pesado.
Um outro camionista português ficou ligeiramente ferido quando tentava impedir que outro, também de nacionalidade portuguesa, abandonasse o Parque TIR de Vilar Formoso para regressar a casa. A Guardia Civil acabou por identificar os dois camionistas, um por atropelamento e outro por dano.
Mas as consequências deste bloqueio não ficaram por aqui. Vários camiões foram apedrejados, e furados pneus e depósitos de combustível por camionistas paralisados entre Aveiras de Cima e Carregado.
Também o combustível começou a faltar em vários pontos do país, e a GNR teve de escoltar vários camiões-cisterna, nomeadamente os que se dirigiam para o aeroporto da Portela, a partir de Aveiras de Cima.
Os militares montaram uma zona de segurança em torno da coluna de camiões, isolando-os de viaturas. As pontes e acessos à A1 foram cortados à passagem dos camiões, para “garantir a segurança da coluna” que ia abastecer o aeroporto.
A hora do jogo Portugal-República Checa – no dia 11 de junho – chegou a ser aproveitada para a passagem de um camião com combustível, destinado aos bombeiros de Almada, que acabou por passar despercebido ao piquete de Aveiras de Cima, cujos elementos estavam a assistir ao jogo.
Perante estas paralisações, a Associação Nacional de Revendedores de Combustíveis (Anarec) chegou a dizer que o país “estava a secar completamente”, considerando que a situação só se resolveria quando o governo baixasse o imposto sobre produtos petrolíferos (ISP). “O país está todo a saque e o ministro, teimoso, não quer baixar o ISP”, criticou, na altura, o responsável máximo da associação.
O certo é que muitos postos do país chegaram a fechar por falta de combustível, nomeadamente em Coimbra, Batalha, Leiria, Lisboa, Oeiras, Montijo, Carnaxide e Amadora.
Os problemas não se fizeram sentir apenas no abastecimento de combustíveis. Também os supermercados foram atingidos, principalmente no centro e sul do país, devido à paralisação dos transportes de mercadorias. A falta de água engarrafada e de peixe, carne, frutas e legumes frescos foi bem visível em muitas grandes superfícies.
Esta paralisação afetou também outros setores, como o turismo (com os transfers reduzidos por falta de combustíveis), o papel (as associações diziam que podia faltar para os jornais e revistas), os produtores de leite ou o abastecimento de farmácias.
José Sócrates, na altura primeiro-ministro, chegou a afirmar que era preciso “tirar ilações do que aconteceu” e admitiu que, em alguns momentos, sentiu “o Estado vulnerável”. No entanto, depois de várias horas de negociações entre o ministro Mário Lino e os grevistas, foi obtido um novo pacto, ratificado de novo na Batalha, com a presença de dois milhares de empresários.
O acordo acabou por não incluir o gasóleo profissional, reivindicado pelos camionistas num momento em que o diesel havia ultrapassado pouco antes o euro por litro, mas contemplava outras questões como descontos nas portagens noturnas, mais formação profissional, descontos fiscais e a majoração das despesas de combustíveis.
Estas propostas satisfizeram o setor, que depois assistiu à subida do combustível para valores na ordem dos 1,5 euros por litro. O fim da crise foi saudado pelo Presidente da República, que considerou te sido reposta a “legalidade” e a “ordem pública” no país.
Protesto mais emblemático É preciso recuar mais uns anos para assistir a uma das maiores paralisações nacionais. No dia 24 de junho de 1994, o país assistiu a um megabuzinão na Ponte 25 de Abril, em Lisboa. O protesto ficou conhecido como um dos maiores movimentos de desobediência civil da história portuguesa. Naquele dia, as portagens passariam de 100 para 150 escudos e o lucro serviria para financiar a construção da futura Ponte Vasco da Gama. E tudo começou com uma manifestação de camionistas contra essa alteração. Mas os ânimos exaltaram-se e o protesto acabou por se transformar numa verdadeira batalha campal entre camionistas, automobilistas e polícia. Várias pessoas ficaram feridas, incluindo um jovem de 18 anos que ficou paraplégico. Há quem acredite que o protesto marcou o início do fim do Governo de Cavaco Silva.