Mesmo perante a inesperada resistência tenaz dos defensores de Azovstal, Vladimir Putin não desiste de tentar controlar Mariupol inteira até 9 de maio, o Dia da Vitória, um dos mais importantes feriados russos. Esta terça-feira, enquanto civis resgatados iam chegando a Zaporizhzhia, o último reduto das forças ucranianas na cidade foi alvo de pesados bombardeamentos aéreos, artilharia e mísseis. Já o Papa Francisco, que lamentou que Mariupol tenha sido “barbaramente bombardeada e destruída”, mostra-se disposto a ir ao Kremlin chamar Putin à razão. Ao mesmo tempo, Francisco apontou o dedo à NATO, que acusou de “ladrar à porta da Rússia”, o que levou o regime russo a “reagir mal e desencadear o conflito”.
Não há grande esperança que Putin leve muito a sério os apelos à paz feitos pelo Vaticano. Aliás, o sumo pontífice admitiu que o Presidente russo nem lhe atende o telefone, contou em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera. Por isso Francisco tem tentado dialogar com o seu homólogo, Cirilo I, patriarca da Igreja Ortodoxa russa.
Cirilo é um aliado próximo do Kremlin – o regime de Putin tenta afirmar-se enquanto conservador, defensor dos valores tradicionais ortodoxos, após esta igreja ter siso marginalizada pela liderança soviética durante décadas – e que chegou a abençoar a invasão da Ucrânia. “Entrámos numa luta que não tem apenas um significado físico, mas também metafísico”, descrevera o patriarca russo.
“Irmão, não somos clérigos do Estado. Não usamos a linguagem da política, mas de Jesus”, respondeu o Papa Francisco, quando o seu homólogo lhe leu um cartão listando os motivos dados pelo Kremlin para a invasão, durante uma videoconferência, no final de março, segundo descreveu ao Corriere della Sera. “Por isso temos de procurar caminhos de paz, para acabar com o disparar de armas. O patriarca não pode tornar-se o acólito de Putin”.
“Primeiro tenho de ir a moscovo” No entanto, a insistência do sumo pontífice em não falar na “linguagem da política”, mostrando-se muito desconfortável com o envio de armamento para as forças ucranianas, tem-no tornado alvo de críticas. Não que isso o tenha demovido em reforçar os seus apelos pacifistas, ao mesmo tempo que parecia alertar para uma eventual escalada do conflito, com outro tipo de armamento, fosse químico, biológico ou até nuclear.
“Não sei como responder, estou demasiado longe, à questão de se é correto fornecer armas aos ucranianos”, declarou o Papa. “É uma coisa clara, que armas estão a ser testadas ali”, salientou. “Os russos agora sabem que os tanques lhes servem de pouco e estão a pensar noutras coisas”, alertou. “É por isto que se faz guerra: para testar as armas que produzimos. Poucas pessoas estão a combater este comércio, mais deveria ser feito”.
O pavor da guerra nuclear tem sido um dos motivos pelos quais a NATO tem hesitado em enviar as armas pesadas por que Volodymyr Zelensky implora. Optando, como tal, por enviar apenas defesas anti-aéreas ou mísseis portáteis, que se mostraram essenciais para travar a ofensiva russa.
Contudo, isso também tem garantido lucros imensos a gigantes como a Raytheon, que produz os mísseis anti-aéreos Stinger, ou à Lockheed Martin, que produz os Javelin, uma arma anti-tanque de última geração que os russos aprenderam a temer. “Claro que tudo o que está a ser enviado hoje para a Ucrânia vem de reservas, do Departamento de Defesa ou dos nossos aliados da NATO, e isso são ótimas notícias”, explicou o CEO da Raytheon à Harvard Business Review, em março. “Acabaremos por ter de reabastecê-los e iremos ver um benefício para o negócio ao longos dos próximos anos”.
Seja como for, começa a haver algum descontentamento com a postura pacifista da Santa Sé, acusada de neutralidade em relação à guerra na Ucrânia, ou pior. As abstenções do Vaticano nas Nações Unidas, quanto aos votos de condenação da Rússia, “tipificam aquilo que alguns no Ocidente veem como uma tendência exasperante desta entidade soberana neutral para não tomar partido”, tentando manter-se no papel de mediador, escreveu o Politico. Se isso terá qualquer impacto é dúbio, estando a Igreja Ortodoxa russa tão entusiasmada com a guerra.
Já a recusa do Papa Francisco em visitar a Ucrânia também não tem caído bem. “Não vou a Kiev, por agora”, respondeu, confrontado com os muitos pedidos para que faça esse gesto. “Primeiro tenho de ir a Moscovo, primeiro tenho de reunir com Putin”.
Desespero e alívio Em Zaporizhzhia, entre os voluntários que recebiam civis desgastados, resgatados de Mariupol após semanas sob cerco, via-se gente com cartazes pedindo que fossem também retiradas as cerca de duas mil tropas ucranianas que resistem na metalurgia Azovstal. Talvez a fuga de civis – apesar de muitos outros continuarem lá presos – deixe o Kremlin ainda mais à vontade para varrer do mapa este gigantesco labirinto de túneis e bunkers da era soviética.
“Estamos assustados… Os rapazes vão ser abandonados lá”, lamentou ao Guardian Ksenia Chebysheva, de 29 anos. Da última vez que soube do seu marido, na semana passada, este combatia em Azovstal, fazendo parte do batalhão Azov, um grupo neonazi integrado nas forças armadas ucranianas, acusado de abusos contra russófonos.
Os combatentes dos Azov estão bem conscientes de que não receberão qualquer quartel das forças de Putin, que tem usado este batalhão como justificação para a sua invasão. Na ótica do Presidente russo, não haveria melhor maneira de marcar o 9 de maio, quando se celebra a vitória sobre a Alemanha de Hitler, que anunciar a tomada do último reduto desde grupo neonazi.