Que leitura faz do Orçamento de Estado para este ano?
A proposta não me surpreende. O primeiro-ministro, em plena campanha eleitoral, dizia que se voltasse a ganhar as eleições apresentava o mesmo documento. É um Orçamento que vem na linha de continuidade daquele que apresentou, que foi chumbado, na altura, e deu origem a eleições. Tem algumas modificações porque a conjuntura macro económica mudou. E face às últimas previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI) já tem em conta o impacto económico da invasão na Ucrânia pela Rússia, em que vamos ter menos crescimento económico e mais inflação. Por isso, alguns economistas já apontam para uma ameaça de estagflação. O que parece? O Orçamento fala num crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) de 4,9%, o que acho otimista. O FMI diz que será menos. Depois as previsões para a inflação são um bocadinho otimistas.
As previsões arriscam-se a falhar?
Há uma questão que não é despicienda e tem a ver com a receita fiscal. O que acontece? A taxa de crescimento da inflação associada ao produto é de 2,6%, o que dá um crescimento nominal do PIB de 7,5%. E conta com o defletor do PIB de 2,6% do aumento de preços e do índice de preços ao consumidor a aumentar cerca de 4%. Acho que esses valores estão subestimados face aos valores da inflação que estamos a ter na zona euro e já estamos a ter em Portugal. Como os números deverão ser superiores, o que significa? Mesmo que o PIB real não seja 4,9%, e seja 4% como diz o FMI, vamos ter um defletor do PIB bem superior a 2,6%.
E aí precisaremos de retificativo?
Não, porque do lado da receita não há problema. O Governo está a suborçamentar a receita porque, como expliquei, a receita fiscal está ligada ao PIB nominal e não ao PIB real. E, mesmo que o crescimento real do PIB seja inferior, deveremos ter um crescimento nominal do PIB superior a estes 7,5% que o Governo aponta. Se assim for, do lado da receita fiscal é mais favorável. Depois, temos visto historicamente que o multiplicador da receita fiscal em relação ao PIB tem sido superior a 1. Isto significa que, quando o PIB cresce, a receita fiscal cresce sempre mais do que o PIB. E o que se tem verificado historicamente nas finanças públicas portuguesas? O que é que o Governo estima? Estima um multiplicador à volta de 1, ou seja, ao estar a pôr um multiplicador à volta de 1, logo estima um aumento de receita fiscal igual ao que estima de crescimento do PIB nominal. Ora, já expliquei que o PIB nominal pode vir a ser superior àquele que o Governo aponta e, portanto, também o multiplicador é normalmente superior a 1 e, desta forma, o Governo está a subestimar de duas maneiras a sua receita fiscal. Portanto, a receita pode vir a ser superior à prevista. Aqui não é preciso Orçamento retificativo, porque se houver receita a mais não precisa de corrigir. Só há Orçamento retificativo pelo lado da despesa.
Mas há um fator que pode baralhar as contas do Governo em termos de receita que é a inflação. Tudo indica que vamos assistir a uma redução do poder de compra…
Estamos a ter uma inflação importada da energia, dos alimentos e até das matérias-primas. Esta inflação importada, como os economistas dizem, é tecnicamente um choque negativo sob a oferta em Portugal. E isso significa que o nosso poder de compra e os nossos salários reais, em termos gerais, vão diminuir. Não há volta a dar. Os Governos tentam compensar, fazendo um aumento dos salários nominais que igualem o aumento dos preços e da inflação, mas isso só gera mais inflação. É correr atrás do prejuízo, porque se o choque negativo sob a oferta configura um empobrecimento do país então também significa que o nossos salários reais têm que diminuir. Como é que isso acontece? É ter uma taxa de inflação superior ao aumento dos salários ou dos rendimentos.
Daí o ministro das Finanças falar de espiral inflacionista e recusar o aumento dos salários, nomeadamente da função pública…
Aí tem toda a razão. Em termos gerais, a experiência mostrou que este choque negativo da oferta sobre a economia portuguesa significa um empobrecimento do país. Os nossos salários reais têm que diminuir. Como os Governos tentam ignorar isto e tentam que haja um aumento de salário igual à taxa de inflação e ao aumento dos preços, obviamente estão a correr atrás do prejuízo, no sentido que alimentam a espiral inflacionista. Acho que o Governo e o ministro das Finanças têm razão. Nestas situações, o que é recomendado pelas instâncias internacionais? É avançar com medidas sociais de apoio aos mais desfavorecidos. Os mais desfavorecidos são os que mais sofrem com a subida inflacionista.
Para evitar um maior empobrecimento?
Por duas razões. Primeiro, porque um tipo com menos rendimento é mais sensível. E, segundo, porque quanto menos rendimento tem um tipo mais o peso do que consome em relação ao seu rendimento é maior. E, obviamente, as classes sociais mais desfavorecidas foram apanhadas no seu cabaz de consumo pelo aumento dos preços da energia, das matérias-primas e da alimentação. Numa circunstância destas, o que um Governo tem que fazer, para mim não há dúvidas, é calibrar os apoios sociais para as classes mais desfavorecidas. Não é realista tentar que todos tenham o mesmo poder de compra, não é possível. Eu vou ser afetado, se calhar você também. Mas os mais desfavorecidos devem ser protegidos pelo Governo. E aí chamo à atenção do seguinte: neste Orçamento acho que o Governo, as confederações e os sindicatos todos têm razão à sua maneira e explico porquê: estão previstos cerca de 1,1 mil milhões de euros para estes apoios.
No total de apoios….
Tudo o que são os apoios não só para as famílias mas também para as empresas. O que vemos depois? O Governo tira estímulos que vinham da covid, em que há uma redução da despesa de cerca de 3,1 mil milhões de euros. Em contrapartida, só está previsto um aumento de 1,1 mil milhões de euros para esta crise social, não da covid, mas devido à invasão da Ucrânia pela Rússia. Daí tanto as confederações patronais como as sindicais dizerem que aquilo que o Governo vai fazer é pouco face à atual conjuntura. O Governo devia fazer mais do que se propõe fazer no Orçamento. Todos dizem o mesmo e acho que têm alguma razão. E até posso dizer o seguinte para ser mais forte o argumento: tivemos um défice público de 5,8% em 2020, 2,8% em 2021 e o Governo projeta só um défice público de 1,9% para 2022. E a CIP já veio dizer que não é altura de reduzir o défice público, é altura de aumentar os apoios sociais à economia, leia-se, empresas e famílias mais carenciadas. E agora dou a versão do Governo, com a qual também não consigo discordar e até compreendo. Temos uma dívida pública extremamente elevada que, em 2021, terá sido ainda de 127,4% do PIB e o Governo projeta para 2022 uma tímida redução para 120,7% do PIB. O que é que concluo, aliás, já tinha concluído na altura da covid? Toda a gente está no ataque e quer que o Governo aumente os apoios à economia, mas o Governo está a ser cauteloso, em termos de apoios. Já na covid teremos gasto 5% do PIB, enquanto a Alemanha gastou 15%. Nós, aparentemente, até fomos moderados. Os EUA também gastaram muito mais. E aí compreendo o Governo. Quer no caso da covid, quer agora, nos apoios nesta dramática situação de guerra em que estamos, está a ser cauteloso porque temos uma dívida pública extremamente elevada e é preciso ter cuidado, é preciso analisar a sua sustentabilidade. E, portanto, o Governo está a jogar à defesa. Também devo dizer que, em todo o caso, apesar de ter sido moderado nos apoios no âmbito da covid, chamo a atenção para que, em termos de dívida pública, entre 2019 e 2021, aumentou 35 mil milhões de euros, mesmo sendo moderado. E o Governo, na altura, com os 35 mil milhões de euros de aumento da dívida pública, mais os apoios comunitários do SURE e do REACT, que totalizaram cinco mil milhões de euros, deverá ter gasto 40 mil milhões de euros. Apesar de tudo, em termos absolutos, até nem foi pouco. Em termos relativos, face ao PIB dos outros países, foi inferior. Tudo isto para chamar a atenção, mais uma vez, para o facto de que o Governo tem alguma razão no sentido de que temos uma dívida pública muito elevada e não temos o à vontade para jogar no apoio do Orçamento à economia – leia-se empresas e famílias – que têm países como a Alemanha. Costumo dizer às pessoas e até aos meus alunos que a Alemanha é que foi verdadeiramente keynesiana, porque poupou na época das vacas gordas e depois teve dinheiro para gastar na época das vacas magras.
Fez um porco mealheiro…
Não somos keynesianos, nunca poupámos e quando chegamos à época das vacas magras, com uma dívida pública muito elevada, o Governo joga à defesa. Isto para dizer que as confederações e os sindicatos terão alguma razão, ao falarem de alguma limitação quanto ao valor relativo dos apoios que estão previstos à economia, quer para as empresas, quer para as famílias, mas, por outro lado, o Governo também tem alguma razão no sentido de ser prudente, porque temos uma dívida pública extremamente elevada. Sou insuspeito de apoiar o Governo, até estou à vontade para dizer isso. As críticas que faço são objetivas. E, neste aspeto, sou sensível. Se não tivesse estudado economia, não era, mas, como estudei, sou sensível à sustentabilidade da dívida pública e compreendo que o Governo jogue um bocadinho à defesa.
Quando diz que tem de apoiar os mais desfavorecidos acaba por deixar de fora uma grande margem de portugueses, nomeadamente a classe média, que qualquer dia deixa de o ser…
O aumento dos preços da energia, matérias-primas e alimentação já vinha antes da guerra, agora foi mais empolado, o que significa um choque negativo sob a nossa economia e, portanto, no empobrecimento de todos nós. O Governo não tem dinheiro para vir apoiar todos, inclusive a classe média. Acho que tem que ser muito calibrado em relação às classes mais desfavorecidas. Não haverá certamente apoios para a classe média. Tem razão no que diz, mas não é este ano com esta guerra que se vai resolver. Ainda assim, vê-se algumas coisas simpáticas do lado do Governo, como o ajustamento dos escalões, o alívio do IRS dos jovens, algum aumento de pensões de reformas em 10 euros, os abonos de família reforçados e depois, na energia, não só para as empresas, mas também para as famílias, vamos assistir a uma redução do ISP dos combustíveis equivalente ao que seria a redução do IVA para 13%. Sem esquecer os sistemas que o Governo montou para apoiar as empresas consumidoras de gás em termos intensivos e agora o que fez para tabelar o preço do gás natural utilizado para produzir energia elétrica – mas aí tenho dúvidas onde vai buscar o dinheiro para financiar isso.
São sempre os mesmos a pagar…
Não há dinheiro para tudo e, numa lógica social, o Governo tem de apoiar os mais desfavorecidos. Os outros, paciência, têm que pagar. Eu próprio tenho que pagar, estou a falar contra mim. O Governo não tem dinheiro para tudo e o que preocupa numa crise destas são os mais desfavorecidos. Os outros… todos nós vamos viver um bocadinho pior, mas paciência. É uma evidência económica. Não há volta a dar.
Há uma obsessão pelas contas certas ou não havia outra alternativa?
A minha opção não é de contas certas e já explico por que não utilizo o termo contas certas. A minha preocupação é a sustentabilidade da dívida. Já expliquei sem demagogias, porque até compreendo, de certa forma, a preocupação do Governo sobre a sustentabilidade da dívida pública. Ouvi recentemente o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais dizer que temos um problema de endividamento. Finalmente, vejo membros do Governo PS também preocupados com a dívida, o que acho muito bem. No meio disto, se conseguir apoiar as famílias mais desfavorecidas, as empresas mais expostas à energia – há situações dramáticas na cerâmica e nos tingimentos da indústria têxtil –, se conseguir salvar esse tipo de empresas e minorar as dificuldades das famílias mais desfavorecidas já não será nada mau. Um Governo não pode compensar completamente um choque negativo sobre a oferta. Vamos ficar mais pobres devido ao aumento da inflação.
No caso dos pensionistas, os aumentos das pensões serão atenuados com esta subida de inflação…
O Governo propõe um aumento mínimo garantido de 10 euros a quem recebe uma pensão até 1108 euros por mês. Não é para todos, é, mais uma vez, só para os mais carenciados. Aqueles que têm pensões superiores vão ter efetivamente uma perda de poder de compra, porque as suas pensões não serão atualizadas e, em termos reais, a sua pensão até vai diminuir. Falo contra mim, todos nós que estamos nessa situação vamos sofrer. Percebo que os que têm pensões mais baixas possam ter algum aumento e que, em todo o caso, 10 euros é pouco para as dificuldades que vão ter.
Há pouco disse que tinha dificuldade em usar o termo contas certas.
Para já, acho que o ministro das Finanças foi infeliz naquilo que disse. Mostra que não assumiu bem o chapéu de ministro das Finanças, ainda estava no chapéu de político do PS. Ele disse que era team de um Governo de esquerda ter as contas certas. Ele devia ter dito que é team de um Governo responsável, seja de centro direita, seja de centro esquerda. E a expressão contas certas não me diz nada. É preciso perceber o que está dentro do envelope. Se fechar o Orçamento com mais despesa corrente e menos investimento, claramente é pior do que fechar um Orçamento com menos despesa corrente e mais investimento público. Claramente, este é um Orçamento na linha de continuidade dos outros: grande despesa corrente e pouco investimento. O investimento neste Orçamento andará à volta dos 7.217 milhões de euros, cerca de 3,1% do PIB. E quem financia este investimento público são fundos comunitários.
A famosa ‘bazuca’…
Somos o país da Europa mais dependente dos dinheiros europeus para financiar o investimento público. Se não viessem os dinheiros da Europa, praticamente não existia investimento público, porque o Estado não tem dinheiro para financiar. Isto em termos de contas certas é altamente insatisfatório, porque é um Orçamento na linha do que tem sido hábito: mais despesa corrente e menos investimento público. O investimento público que existe só existe porque é financiado pelos fundos comunitários. E chamo à atenção para um indicador que é muito importante para explicar que esta expressão contas certas não chega: a despesa primária, em 2022, será de 100,5 mil milhões de euros; em 2023, será de 102,7 mil milhões de euros. O que acontece? Está a ver a despesa pública sem juros a inchar e está a ver o funcionamento da máquina pública? Sente alguma coisa? Mas a despesa pública continua a aumentar. Por isso, digo que para mim dizer que são contas certas não chega, preciso de perceber o que está lá dentro. E o que está lá dentro é cada vez mais despesa pública corrente e menos bom investimento público. Além disso, o Governo põe cerca de mil milhões de euros para digitalizar a administração pública e o que está a fazer é digitalizar a burocracia, porque a meu ver o problema não se resolve com compra de computadores e internet. A prioridade para mim seria a transformação digital – o que é muito diferente de digitalização. Transformação digital tem a ver com pessoas, com processos e com tecnologias, o que significaria pegar nas tecnologias digitais e fazer uma reengenharia de processos, tornando os serviços públicos mais eficientes e mais rápidos. Não é isso que o Governo vai fazer, o que vai fazer é pegar em mil milhões de euros para digitalizar a burocracia existente.
É deitar dinheiro à rua?
No fundo, é. A expressão que acho que é tecnicamente mais correta é digitalizar a burocracia. Ou seja, pega no sistema como existe, com toda a burocracia e com todas as imensas deficiências, e digitaliza-o. E fica mais modernaço.
Há quem fale de um OE de austeridade…
O Governo de António Costa o que fez foi uma violenta austeridade indireta, isto é, poupou-nos o aumento de impostos diretos, que são aqueles que sentimos imediatamente, mas levou a cabo um aumento brutal dos impostos indiretos.
E neste orçamento estamos a falar de um aumento de 6,2%…
O que o Governo tem feito? Tem feito uma violenta austeridade através dos impostos indiretos. Pagamos um balúrdio, a carga fiscal aumentou só que não sentimos tanto como ir à fonte dos impostos diretos sobre o rendimento. E depois também cortou drasticamente o investimento público. O Governo exerceu uma violenta austeridade a três níveis: primeiro, um aumento espetacular dos impostos indiretos; segundo, cortes violentos nas cativações da máquina do Estado; terceiro, cortes no investimento público. Ou seja, fez uma austeridade mais violenta só que politicamente mais inteligente do que aquela austeridade feita pelo Governo de Passos Coelho, de nos sacar diretamente no IRS e no IRC. E não se esqueça: António Costa, quando entrou no Governo, mandou às urtigas o acordo feito entre o PS e o PSD para reduzir o IRC. Não só fez uma violenta austeridade como vai continuar a fazê-la através do aumento dos impostos indiretos.
Em relação à redução do IRC tem havido alguma resistência por parte do Governo?
Sim, mas essa posição é ideológica. O nosso primeiro-ministro que tem grandes qualidades e grande talento político, não é social-democrata. Há uma linha social-democrata no PS, mas que está marginalizada e com a qual me entendia muito bem nos meus tempos do Governo. O primeiro-ministro é completamente socialista; agora, é suficientemente pragmático para perceber que precisa da Europa, daí a sua ênfase nas tais contas certas para não pôr em causa esta relação e, neste contexto, o modelo do primeiro-ministro e deste Partido Socialista, para mim, é claro: acham que o Estado é o motor da economia portuguesa e não as empresas. Para eles, as empresas são um parceiro que lá têm e com quem têm de conviver, mas não acreditam genuinamente que sejam as empresas, numa economia social de mercado, o motor de desenvolvimento económico. Não acreditam, mas é por uma questão ideológica. E ao não acreditarem são insensíveis à diminuição do IRC. E aí não é uma questão de má vontade, é uma questão de ideologia política. Por exemplo, no PRR 75% do dinheiro vai para o Estado e só 25% para as empresas. E quando o primeiro-ministro diz que desse dinheiro que vai para o Estado depois as empresas privadas vão aproveitar, porque vão ser lançados concursos, é verdade, só que este é um modelo que consagra que empresas privadas sejam dependentes do Estado, quando o modelo para a economia portuguesa teria de ser um modelo de empresas de bens transacionáveis que produz e vende para o mercado externo. O modelo está totalmente errado, mas por motivos ideológicos porque privilegiam o Estado, em detrimento das empresas. Há aqui uma ideologia clara e, por isso, são insensíveis às empresas. E, mesmo quando se fala da indústria e de empresas, considero que o Governo só é sensível a três coisas: investigação, digitalização e descarbonização. Tenho dito aos empresários que, como o Governo é insensível ao desenvolvimento industrial do país ou à competitividade das empresas, a única maneira que temos de lhe tentar vender alguma coisa é através das três siglas que gostam muito: investigação, digitalização e descarbonização. Os empresários até se riem quando lhes digo isto, acham que estou com alguma ironia, mas depois acabam por me dar razão, porque qualquer discurso sobre indústria ou sobre empresas, o que gostam é de falar em investigação, digitalização e descarbonização. Se as empresas querem vender qualquer coisa em termos de industrialização do país ou competitividade empresarial, a receita para mim é essa. Claro que digo isso de forma cínica, mas é sincero. Isto para dizer que não sensíveis à redução do IRC, isso não lhes diz nada. Para eles, o Estado é o motor disto tudo.
Como vê as medidas direcionadas para o setor da energia?
Concordo com a medida que dá incentivos às empresas intensivas de consumo de gás natural. Mas não sei se chega, o que vejo é que no próximo Orçamento de Estado vão sair do cofre público 160 milhões e que cada empresa tem um limite de 400 mil euros. Duvido sinceramente que isso chegue, principalmente para algumas empresas, como as do setor cerâmico, do vidro ou até dos tingimentos da indústria têxtil, que estão mais expostas ao gás natural. Depois, em termos de energia e de combustíveis, o Governo vai reduzir o ISP, o que equivale a reduzir o IVA de 23 para 13%. Mas relembro o que aconteceu nessa matéria: quando o Governo de António Costa entrou em funções, o preço do petróleo tinha caído muito nos mercados internacionais, mas prometeu que não ia reduzir o preço final ao consumidor – o que significava que ia aumentar muito o ISP, é a tal austeridade indireta violenta –, mas quando os preços do petróleo começassem a subir iria reduzir o ISP para que os preços finais não aumentassem, no entanto, esqueceu-se disso. Agora, está a fazer uma medida deste tipo, que é positiva. Vamos ver se é suficiente. Em relação à questão do gás natural para a eletricidade se plafonar o preço do gás natural em 50 euros por MWh o que significa? Significa que o preço da produção de energia elétrica será cerca de 120 euros por MWh, logo vai desperdiçar metade do que entra e terá de ser o dobro do preço do gás natural. E em cima disso vai ter que meter os custos da emissão do CO2, que custam cerca de 20 euros por MWh. Ou seja, plafona o preço do gás natural em 50 euros por MWh, mas não se sabe se as empresas produtoras de energia elétrica que utilizam o gás natural irão pagar ou não essa diferença. Suponha que uma empresa compra o gás natural a 70 euros por MWh, há uma diferença de 20 euros face aos 50 euros que são plafonados e isso é o tal défice tarifário que alguém vai ter que pagar. O Governo ainda não explicou como é que isso vai ser pago, ao contrário do Governo espanhol que já explicou, não sei se já publicou ou o decreto-lei sobre a matéria. Em Espanha, as empresas renováveis que estão em mercado, as empresas de energia nuclear e as empresas de hidroelétrica de albufeira recebem a energia elétricas pelo preço feito pela central de gás natural, mas depois não têm o custo do CO2, porque quer o nuclear quer as renováveis quer as hidroelétricas não têm custos de emissão de C02 e, como tal, têm um preço que está alinhado com o preço das centrais de gás natural. Portanto, o Governo espanhol está a taxar as centrais renováveis que estão em mercado, as centrais de albufeira e as centrais nucleares pelo lucro extraordinário que têm. Qual é o problema português? Não temos centrais nucleares e não temos centrais renováveis em mercado e, como tal, estamos sujeitos ao preço político. E, como não temos centrais nucleares e só temos centrais em albufeira, o Governo português não tem a margem de manobra que o Governo espanhol tem para taxar estas centrais. E não nos podemos esquecer que desde o tempo de Passos Coelho que foi introduzida a contribuição especial sobre o setor energético. Uma taxa que António Costa disse que ia acabar, mas não acabou. O que mostra que dos grupos centrais que podiam ser taxados – renováveis em mercado não temos, nucleares não temos – são centrais de albufeira que são menos do que em Espanha e estas empresas já estão a apanhar com a contribuição especial sobre o setor energético. Ou seja, em Portugal já existe uma contribuição extraordinária sobre o setor energético, o que diminui a margem de manobra política. Uma coisa é o Governo espanhol não ter uma contribuição destas e arranjar uma, outra coisa é o Governo português, que já está a arrecadar, ainda querer avançar com mais taxas. Portanto, ninguém explica quem é que vai pagar este défice tarifário e sinceramente acho que o Governo não sabe como vai pagar isto.
Por outro lado, a energia nuclear continua a estar na ordem do dia…
Quando falo em energia nuclear, falo do sistema energético europeu. E o que digo é do mais elementar bom senso.
Disse que a Europa não podia abandonar o nuclear…
Os países que têm centrais nucleares é do mais elementar bom senso não mudarem, nesta fase do campeonato. Por exemplo, os alemães gastaram cerca de 550 mil milhões em investimento em eólicas e fotovoltaicas para acabarem com o nuclear e chegaram à conclusão de que as eólicas e as fotovoltaicas, como ando a explicar há 15 anos, não conseguem compensar, pelo simples facto de serem intermitentes no que diz respeito ao abastecimento da rede. No que é que isto deu? Tiveram que recorrer a mais carvão, 25% da produção elétrica alemã é de carvão, o que lhes gerou mais CO2, e tiveram de recorrer mais ao gás natural. Infelizmente, com aquela ingenuidade estratégica ficaram bastante dependentes de Putin. Veja que Macron já fez a recuperação do nuclear, porque percebeu que não se aguentava sem isso. Em Portugal, com a capacidade instalada de energia elétrica que temos não há espaço sequer para a questão nuclear e, por isso, a questão nem se põe. Agora, os países que têm a energia nuclear devem mantê-la. Dou uma imagem: os grandes países industrializados que pensam que têm capacidade em se manterem com 100% de renováveis é a mesma coisa que pôr bicicletas a combater tanques.
É uma visão ingénua?
Veja o caso alemão. Não estou a falar de cor. Veja a ingenuidade alemã e com alguma paranoia climática ambiental pensar que, de um momento para o outro, com as tecnologias atuais as renováveis que são intermitentes iriam substituir as centrais clássicas. Não só não substituíram, como todos na Europa estamos a pagar os custos dessas ingenuidades. A Europa é o continente do mundo mais frágil em termos de energia. Estamos dependentes externamente em cerca de 57% na energia e os Estados Unidos são, neste momento, independentes, em termos energéticos. Veja a margem de manobra que os Estados Unidos têm nesta conjuntura e as dificuldades estratégicas que a Europa tem no domínio da energia.
Daí ter dito que a Europa acordou finalmente da sua ingenuidade estratégica…
A Europa tem duas crises em cima. Primeiro, é a primeira crise energética neste processo de descarbonização. A Europa decidiu que não queria investir em combustíveis fósseis, como também não quis explorar o gás de xisto que temos no nosso subsolo e ficou com menos fontes de energia próprias e ficou cada vez mais dependente do exterior.
Face a esta incerteza e ao aumento do custo de vida, é de prever que aumente a contestação na rua?
Acho que poderá acontecer por duas razões. Por um lado, se há um choque negativo sobre a oferta da economia portuguesa vai significar um empobrecimento coletivo de todos e ao entrarmos numa época de vacas magras tenderá obviamente a aumentar a conflitualidade na sociedade portuguesa. Por outro lado, não estando o PCP na solução governativa, como esteve no tempo da gerigonça, obviamente que os sindicatos afetos ao PCP vão aumentar a contestação social.
Mas o PCP está numa situação mais frágil por causa da guerra…
Não sei se está mais frágil. Acho que a direita não aproveitou nada disto. Quando ouço um dos candidatos a líder do PSD dizer que não vai politizar assuntos sérios por causa do que se passou na Câmara de Setúbal pergunto ‘então se este senhor não vai politizar assuntos sérios, o que vai politizar?’ Assuntos que não interessam? A política trata dos assuntos sérios, não trata de assuntos que não interessam. Temos um centro-direita em Portugal que é a chamada direita fofinha, aquela que o PS e a esquerda adoram. Do lado do centro-direita, o primeiro-ministro pode dormir descansado. E depois, em termos de conflitualidade social, acho que vai aumentar mas também acho que o primeiro-ministro, e aí tiro-lhe o chapéu, tem um savoir-faire para gerir estas situações, em que consegue anestesiar e amolecer a contestação. Tem sempre uma capacidade de manobra política e consegue ir anestesiando e amolecendo. Situações destas com um Governo de centro-direita criava um grande banzé, quase caía o Carmo e a Trindade, enquanto António Costa consegue gerir de forma tranquila.
Daí ter ganho as últimas eleições com maioria absoluta…
Não se deve escamotear o talento político que António Costa tem.
Fala em direita fofinha…
Sim, quando ouço o candidato do PSD a dizer que primeiro tem de se preocupar com o Chega em vez de se preocupar em fazer oposição ao PS…
Fala de Moreira da Silva…
E depois vem dizer que no caso da Câmara de Setúbal não vai politizar o assunto sério, então pergunto: se um líder político não politiza assuntos sério. então para que serve a política? Para tratar assuntos não sérios? Isto é exemplo típico de uma direita fofinha que a esquerda e o PS adoram.
E quando o PSD devia fazer forte oposição a um Governo de maioria…
A minha tese sempre foi que o PSD tinha que ser, como foi nos bons tempos de Sá Carneiro e de Cavaco Silva, o grande motor de alternativa à esquerda, agregando um espaço vasto que ia do centro-direita a um centro-esquerda moderado. Era isso que o PSD tinha que ser, mas acho que frases destas mostram que o PSD, infelizmente, acaba por ser um satélite do PS e não é assim que o PSD se afirma como alternativa ao PS.
Luís Montenegro será melhor para liderar?
Não estudei em pormenor o que Luís Montenegro pretende, portanto, não me vou pronunciar. Estou-me a pronunciar sobre afirmações que considero perfeitamente infelizes e que caracterizam a tal direita fofinha. Este tipo de frases põe-me a dúvida de que o PSD possa ser alternativa ao PS.
Apoia alguns dos candidatos?
Não. Como costumo dizer, estou na fase PSD não praticante.
Mas já foram revelados alguns apoios. Alberto João Jardim apoia Montenegro, Ferreira Leite Moreira da Silva…
Como disse, estou na fase de PSD não praticante e espero não chegar à fase PSD agnóstico. Acho que isso caracteriza o meu estado de espírito em relação ao PSD.
Necessita de uma profunda reestruturação…
Acho que não é com frases dessas que o PSD lá vai.
E até lá Iniciativa Liberal e Chega a ganham terreno…
Sinto que muitos amigos meus estão a pensar em votar IL e não PSD se o PSD for por esta via da direita fofinha. Aí distingo os que estão mais radicalizados ou mais inconformados, mas não vejo muitos que possam votar no Chega. Acho que o Chega trás muita gente de esquerda, aliás como acontece na Europa. Para os mais moderados e mais realistas e que querem sinceramente uma alternativa ao PS – se o PSD não se afirmar como tal – obviamente a IL tem aí uma grande oportunidade de mercado. E não se esqueça do CDS, que quer recuperar votos. Se houver desilusão sobre o PSD, obviamente que em primeira linha está a IL que é um partido mais forte e tem representação parlamentar. E o CDS também pode ir ao PSD para recuperar, mas não sei se consegue, será difícil. Aliás, nas eleições, o método Hondt foi muito injusto para o CDS, porque teve maior votação que o BE e o Livre e não elegeu um único deputado. O que mostra um erro estratégico o facto de o PSD não ter feito coligação com o CDS, pois teriam tido mais deputados e talvez tivessem evitado a maioria absoluta do PS.
Nuno Melo afasta coligações nas próximas eleições…
Também se percebe, com o partido na posição em que está e tem que primeiro dar sinais de vida.
Como ex-ministro de Governos sociais-democratas alguma vez imaginou o PSD nesta situação?
Entrei para o Governo com 39 anos, era independente, nem sequer era filiado do PSD, embora fosse simpatizante. Depois filei-me quando já estava no Governo e foi uma questão de honestidade em relação à filiação. Andei 10 anos no Governo, dos 39 aos 49 anos, e acho que foi uma época fabulosa do país, de querer ajudar a fazer deste país um país moderno, europeu e competitivo. Vejo com grande desgosto esta nossa trajetória em cada ano, em termos de PIB per capita e de paridade em poder de compra, em que somos ultrapassados pelos países do Leste. Não vejo este Governo com capacidade de inverter essa trajetória e, em 2025, até a Roménia nos ultrapassa. Veja o meu estado de amargura e de desilusão depois de ter estado 10 anos no Governo e a julgar que iríamos tornar este país num país moderno, europeu e competitivo. E, em segundo lugar, depois daqueles anos fabulosos do PSD, também não esperava que o partido caísse na situação em que caiu e o PSD, que é um partido de poder, começa a ter um problema estratégico. Veja o número de anos que está afastado do poder. Isso para um partido de poder põe um problema angustiante em termos da sua viabilidade. O PSD não se focou ainda naquilo que realmente devia fazer, que é o de explicar ao povo português que estamos a empobrecer no contexto europeu todos os anos e que estamos a caminhar para a cauda da Europa. O PSD não conseguiu explicar isso e não conseguiu explicar que pode ser um motor de alternativa ao PS. E aí Rui Rio, que é um homem sério e que tem uma costela muito vincada social-democrata, não andou a cultivar muito a direita. Vejo com grande preocupação o futuro do PSD e espero que esteja profundamente enganado nos alertas que estou a lançar sobre o partido.
Este compasso de espera também não ajudou…
Rui Rio fez o seu papel, mas a época de Rio já passou. Agora é só passar a pasta ao outro que venha. Nunca vi um líder do PSD que fosse tão social-democrata que andasse a propor acordos ao PS e o PS nunca lhe ligou nada. Estrategicamente tem um significado e o significado é que o PSD tem de se afirmar como alternativa e não pode andar constantemente a querer fazer acordos com o PS. Cavaco Silva não saiu do Bloco Central e não se afirmou como uma alternativa ao PS? E depois como partido forte, com um Governo maioritário, Cavaco Silva não conseguiu fazer acordos de regime com o PS, como o da revisão constitucional? Estes acordos não se conseguem estando o PSD numa posição fraca. Se o PSD as quiser fazer tem de se fazer à vida, ser alternativa, obter o poder e depois logo faz acordos como o PS, foi o que Cavaco Silva fez.
Acha que o Governo de Passos coelho ainda está na memória dos portugueses?
Admito que sim e aí faço um elogio político a António Costa por conseguir habilmente passar toda a ideia de austeridade para o Governo de Passos coelho, esquecendo-se habilmente de que foi o Governo PS_quem criou a austeridade e quem levou o país à bancarrota, obrigando a fazer um acordo com a troika. Esse acordo foi negociado com o PS e foi ele que gerou a austeridade. Não foi o Governo de Passos Coelho.