Numa madrugada de setembro de 1945, pouco depois das seis da manhã, Albert Speer foi acordado por um dos seus colaboradores, que lhe disse tinha acabado de ouvir na rádio o seu nome ser referido entre os dos altos responsáveis nazis que iam a julgamento em Nuremberga. Homem cordato e educado, arquiteto favorito de Hitler e mais tarde ministro do Armamento do Reich, era de certo modo irónico que Speer fosse levado a tribunal na mesma cidade onde, cerca de uma década antes, tinha coreografado o Congresso do Partido Nazi (1934), em que recorrera a poderosíssimos holofotes para erguer a famosa ‘catedral de luz’. A espetacular encenação, registada para a posteridade pela lente de Leni Riefensthal no filme O Triunfo da Vontade, decorria num cenário apropriado: o Zeppelinfeld, um estádio, inspirado pelo altar de Pérgamo, que também levava a assinatura de Speer.
O Zeppelinfeld sobreviveu à II Guerra Mundial, e o mesmo se pode dizer do seu autor. Ao contrário de Hitler, Joseph Goebbels ou Hermann Goering, que se suicidaram, ou de Hans Frank (advogado pessoal de Hitler e governador-geral da Polónia), Wilhelm Frick (ministro do Interior do Reich) ou Joachim von Ribbentrop (ministro dos Negócios Estrangeiros), que foram sentenciados à forca, Speer viu ser-lhe aplicada em Nuremberga uma pena de 20 anos de prisão, que cumpriu quase com satisfação.
Na realidade, esse período de encarceramento permitiu-lhe expiar a sua culpa. E, aos olhos da História, ainda bem que assim foi: o arquiteto aproveitou o tempo na prisão de Spandau para, entre outras coisas, escrever as suas memórias, que constituem hoje uma fonte preciosa para o estudo daquele período.
O livro, publicado com enorme êxito em 1969, dá pelo título de Por Dentro do Terceiro Reich – Memórias e acaba de ser traduzido para português (ed. Crítica).
«Quando me dirigi ao banco de testemunhas estava aterrorizado», escreve Speer acerca dos Julgamentos de Nuremberga. «Ingeri rapidamente o calmante que o precavido médico alemão me entregara. À minha frente, a dez passos de distanciam estava Flächsner [o advogado de Speer] no seu púlpito da defesa; à minha esquerda, mais acima, a mesa dos juízes. Logo de início declarei:
– Se Hitler tivesse tido amigos, tenho a certeza de que [eu] teria sido um dos mais próximos».
O arquiteto tinha caído nas boas graças de Hitler logo no ano em que este ascendera ao poder, 1933, sendo rapidamente integrado no círculo íntimo do Führer, testemunhando os seus almoços vegetarianos na Chancelaria ou no refúgio de Obersalzberg, o ‘ninho da águia’. Em jovem, Hitler havia-se candidatado à Academia de Belas-Artes de Viena, mas fora chumbado.
Sozinho na cidade, humilhado, vira-se obrigado a sobreviver pintando postais para os turistas que queriam levar uma recordação. Era, de certa forma, um artista frustrado. E tinha encontrado em Speer um interlocutor privilegiado com quem partilhar a sua visão grandiosa do que devia ser o Reich de Mil Anos.
Uma das obras emblemáticas do regime iria ser o Grande Salão, na futura Praça Adolf Hitler, «cinquenta vezes maior do que o edifício do parlamento».
«A 20 de abril de 1937, dia do seu aniversário, entreguei-lhe alçados, plantas, secções e uma primeira maquete», relata Speer nas Memórias. «Vista do exterior, a cúpula, que teríamos revestido de placas de cobre, que, com o tempo, adquiririam a sua correspondente pátina, teria parecido uma montanha verde de 230 metros de altura. No remate iam estar uma lanterna de vidro de estrutura metálica, com 40 metros de altura e, por cima, uma águia pousada numa suástica».
Para justificar a escala colossal da obra, Hitler explicava que servia para mostrar que os alemães não eram inferiores a «qualquer outro povo».
«No entanto», contrapõe Speer, «o gosto de Hitler pelo descomunal ia mais longe do que estava disposto a confessar àqueles operários: o que era maior deveria glorificar a sua obra e aumentar a sua confiança em si próprio. A altura imponente daqueles monumentos serviria para anunciar o seu desejo de dominar o mundo bem antes de que se atrevesse a comunicá-lo ao seu círculo mais intimo», continua Speer, que também se «sentia embriagado perante a ideia de criar testemunhos históricos em pedra».
Quando o ministro das Finanças se queixava dos gastos, Hitler acusava-o de falta de visão.
«- Se o ministro das Finanças soubesse que fontes de rendimento é que o Estado vai ter em apenas cinquenta anos graças às minhas obras! O que aconteceu com Luís II? Foi declarado louco devido ao custo dos seus palácios. E o que é que acontece hoje? Pois que uma grande parte dos turistas se dirigem à Alta Baviera precisamente para vê-los. O dinheiro dos bilhetes já compensou há tempo o preço daquelas edificações. […] O mundo inteiro virá a Berlim para contemplar as nossas obras. Quanto aos norte-americanos, só precisamos de os informar sobre o custo do Grande Salão. Se calhar, até exageramos um pouco e dizemos quinhentos milhões em vez de mil. E então terão de vir vê-la: a construção mais cara do mundo.
Ao examinar os planos, Hitler repetia com frequência:
– O meu único desejo, Speer, é o de continuar vivo quando tudo isto estiver erguido».
O arquiteto ajudava a dar forma às aspirações megalómanas do líder. E cedo ficou claro que a escala desumana das construções traduzia uma ambição desmedida. Um dia, ao imaginar a águia imperial que devia coroar o Grande Salão quase 300 metros acima do solo, Hitler comentou: «Temos de mudar isto. A águia já não vai segurar a suástica, pois dominará o globo terrestre. A coroação deste edifício, o maior da Terra, terá de ser a águia sobre a bola do mundo».
Poucos meses depois, acrescenta Speer, «começou a Segunda Guerra Mundial».
‘Saberão o que é o medo’
Os projetos conjuntos de Hitler e Albert Speer não eram apenas delírios de um louco. Não, Speer era um excelente organizador e sabia como planificar, organizar e concretizar uma obra. Um exemplo disso foi o complexo da nova chancelaria.
«A nova Chancelaria do Reich deveria estar terminada a 9 de janeiro de 1939. Hitler veio a Berlim desde Munique no dia 7. Estava muito tenso e era evidente que esperava encontrar uma terrível confusão de operários e brigadas de limpeza. Toda a gente conhece a urgência febril com a qual, pouco tempo antes de se entregar uma obra, se desmontam andaimes, se limpa o pó e se retiram os escombros, se colocam os tapetes e se penduram os quadros», recordou o arquiteto. «No entanto, Hitler estava enganado. Desde o início, tínhamos incluído no cálculo da obra uma reserva de alguns dias, de que depois não precisámos, por isso, acabámos quarenta e oito horas antes da data de entrega. Quando Hitler atravessou as divisões, teria podido sentar-se imediatamente à sua mesa de trabalho e começar a tratar dos assuntos do governo.
A obra impressionou-o muito. Desfez-se em elogios para com o seu ‘genial arquiteto’ e, ao contrário do que era habitual, também os manifestou na minha presença. O facto de eu ter conseguido terminar a tarefa dois dias antes do previsto, valeu-me, além disso, a fama de ser um extraordinário organizador». Não era caso para menos.
Para a secretária do líder, Speer tinha concebido um desenho em madeiras de diferentes cores de uma espada a ser desembainhada.
«- Bem, bem… quando os diplomatas estiverem sentados à minha frente nesta mesa a virem, saberão o que é o medo».
Como forma de reconhecimento, Hitler outorgou ao arquiteto as insígnias de ouro do partido e ofereceu-lhe uma aguarela sua pintada em 1909. Speer achou-a «um trabalho extraordinariamente minucioso, consciencioso e pedante, tão desprovido de sentimento como de inspiração».
Entre os vários princípios que orientavam os projetos de Speer para o Reich, um dos mais desconcertantes era a sua ‘teoria do valor como ruína’, que formulou quando olhava para os escombros desgraçados, com ferros a despontar, do hangar que fora demolido para dar lugar ao Zeppelinfeld.
«O seu ponto de partida era que as construções modernas não se mostravam muito apropriadas a constituírem a ‘ponte de tradição’ rumo a futuras gerações que Hitler desejava: era inimaginável que uns escombros oxidados transmitissem o espírito heroico que Hitler admirava nos monumentos do passado. A minha ‘teoria’ pretendia resolver este dilema: a utilização de materiais especiais, bem como a consideração de certas condições estruturais específicas, devia permitir a construção de edifícios que, quando chegassem a decadência, após centenas ou milhares de anos (era isso que nós calculávamos), se pudessem parecer um pouco com os seus modelos romanos».
Eros e Thanatos
A enorme eficiência demonstrada na execução da chancelaria valeu a Speer uma reputação de grande organizador, e foi nesse pressuposto que Hitler o convidou para ministro do Armamento, cargo que assumiu a 8 de fevereiro de 1942. Com o país em guerra, o arquiteto passou a ter mais com que se preocupar do que belos projetos para projetar o prestígio do Reich.
Parece espantoso que alguém pudesse conciliar em si duas tendências tão contraditórias: a construção e a destruição, a idealização e o uso da força bruta das armas. Mas o facto é que já em 1920 Sigmund Freud escrevera sobre isso, identificando duas pulsões inversas no seio do ser humano – Eros e Thanatos, o amor e a morte, a construção e a destruição. Speer – cujo apelido, curiosamente, significa ‘lança’ em alemão – parece ter cumprido ambos os papéis sem conflito.
Sob o seu consulado, aliás, verificou-se o que ficaria conhecido como ‘milagre do armamento’. Mas nem mesmo as suas excecionais competências puderam evitar as consequências das ambições desmesuradas do Führer. A fúria da Nemesis acabaria por abater-se com estrondo sobre a Alemanha.
Em finais de 1944 o destino do Terceiro Reich parecia traçado.
«De facto, o fim estava à vista em todo o lado. Havia sinais de uma anarquia crescente. Os transportes de carvão não chegavam ao seu destino porque eram parados pelo caminho e requisitados pelos chefes regionais para satisfazer as suas necessidades. Os edifícios em Berlim estavam sem aquecimento e o fornecimento de gás e eletricidade só funcionava durante algumas horas por dia. Chegou uma queixa enfurecida da Chancelaria do Reich porque a nossa Central de Carvão lhes negara fornecimento para o resto do inverno.
A situação já não nos permitia concretizar os nossos programas e só podíamos tentar produzir as peças em falta. Quando se esgotasse o restante stock, o programa de armamento não poderia continuar».
O verdadeiro rosto do nazismo
Aos orgulhosos projetos da arquitetura nazi também estava reservado um futuro bem diferente dos vestígios de Roma, Delfos, Pérgamo ou Pompeia, como formulado na ‘teoria do valor como ruína’. As grossas paredes da chancelaria, por exemplo, ficaram reduzidas a escombros pela guerra, acabando por ruir. «As suas pedras e mármores forneceram o material necessário para o monumento comemorativo que os russos ergueram em Berlim-Treptow».
A cidade de Berlim, para a qual Hitler tinha tão ambiciosos planos, tornou-se um cenário de devastação sem qualquer valor arqueológico. Não foram precisos mil anos, séculos ou sequer décadas para que se transformasse num monte de entulho fumegante e sonhos desfeitos.
Alguns meses antes disso, Speer já tinha sido posto ao corrente do verdadeiro rosto do regime nazi.
«Um dia, no verão de 1944, recebi a visita do meu amigo Karl Hanke, o chefe regional da Baixa Silésia. Em anos anteriores, falara-me muito sobre as campanhas polaca e francesa. Ao informar-me dos mortos e feridos, das dores e tormentos, mostrara-se um homem compassivo. Mas, desta vez, sentado numa poltrona de couro verde no meu gabinete, parecia confuso e falava atabalhoadamente. Disse-me que nunca aceitasse uma oferta para visitar um campo de concentração na Alta Silésia. Nunca, em circunstância alguma. Vira ali algo que não lhe era permitido descrever, nem o conseguia fazer, mesmo que quisesse.
Não lhe fiz quaisquer perguntas, nem sequer a Himmler ou a Hitler, nem falei sobre isso com os meus amigos. Não fiz nenhuma investigação. Não queria saber o que estava a acontecer ali. Devia tratar-se de Auschwitz. Naquele momento, enquanto Hanke me alertava, toda a minha responsabilidade se tornou real. Pensei em tudo, especialmente nos momentos em que, nos Julgamentos de Nuremberga, constatei perante o Tribunal Internacional que eu, como destacado membro da direção do Reich, tinha de assumir parte da responsabilidade por tudo o que acontecera, pois, a partir daquele momento, fiquei moralmente preso de forma irremediável aos crimes, porque, com medo de descobrir algo que me teria obrigado a ser consistente, fechei os olhos. A minha cegueira voluntária neutraliza todas as coisas positivas que queria e deveria ter feito no último período da guerra. Em comparação com esta cegueira, as minhas atividades reduzem-se a nada. Precisamente por ter falhado naquela ocasião, ainda hoje me sinto pessoalmente responsável por Auschwitz».
A volta ao mundo na prisão
Albert Speer não ordenou pessoalmente execuções nem teve um papel direto no extermínio dos judeus, mas como ministro do Armamento promoveu o trabalho escravo de prisioneiros dos campos de concentração. O milagre de uns foi o purgatório de outros. Por isso acabou condenado em Nuremberga, culpado de crimes contra a humanidade.
A cumprir pena na prisão oitocentista de Spandau, sem acesso a jornais, o antigo favorito de Hitler teve muito tempo para pensar. Lia tudo o que apanhava à mão e no quinto ano assumiu a responsabilidade de cuidar da horta prisional. No outono de 1954, iniciou um novo projeto «contra o tédio sem fim»: contabilizava os passos que dava e, com a ajuda de guias requisitados na biblioteca, imaginava que o levavam a terras distantes. Ao fim de 12 anos, antes da sua libertação, tinha atravessado a Europa até Istambul, continuado até à Índia, China e Rússia, e depois de cruzar o Estreito de Bering, chegado à costa Oeste dos Estados Unidos, descendo depois até ao México. Calculava que, no total, tinha percorrido perto de 32 mil quilómetros, o suficiente para dar a volta ao mundo, dentro dos muros do estabelecimento prisional.
Os anos de reclusão serviram-lhe também para revisitar as suas memórias, agora publicadas em português.
«Já durante os primeiros meses da minha prisão, encontrando-me ainda em Nuremberga, escrevi muito, impulsionado pela necessidade de aliviar o meu espírito da pressão que os acontecimentos exerciam sobre ele. Foi igualmente isto que me levou a redigir mais estudos e notas sobre os anos de 1946 e 1947, até que, por fim, em março de 1953, decidi escrever as minhas memórias. Acabaria por ser uma vantagem ou um inconveniente terem surgido na mais deprimente solidão? Nessa altura, sentia-me frequentemente impressionado com a falta de consideração com que me julgava a mim e aos outros. A 26 de dezembro de 1954, terminei, finalmente, o manuscrito. Como resultado, quando fui libertado da prisão de Spandau, a 1 de outubro de 1966, dispunha de mais de mil páginas do meu próprio material que, juntamente com os documentos pertencentes ao meu ministério, conservados no Arquivo Federal de Coblença, elaborei para escrever esta autobiografia», resume nas páginas finais.
Por Dentro do Terceiro Reich contribuiu para que Speer construísse uma reputação de respeitabilidade, de decência. Que não corresponderá exatamente à verdade. «Ser nazi», escreve Rui Ramos no prefácio a esta edição, «pressupunha uma mentalidade e uma filosofia». «Ser nazi, como Speer foi, significava acreditar que se pertencia a uma raça superior, com o direito de dispor das raças inferiores», continua o historiador.
«Ser um alto dirigente nazi, como Speer também foi, implicava a convicção de que, entre a raça superior, homens como ele estavam destinados a tomar todas as decisões, sem quaisquer limites morais ou legais». As decisões que Speer tomou enquanto arquiteto revelaram-se inconsequentes, uma vez que o seu legado acabou em cinzas. As suas decisões como ministro do Armamento tiveram consequências catastróficas. Foi em Spandau, reduzido à condição de prisioneiro, que produziu o seu contributo mais duradouro.