O Kremlin tentou mostrar-se quase razoável, anunciando que o porto de Mariupol fora aberto à navegação civil, na quinta-feira, sabendo que a sua invasão está a criar uma crise alimentar global, que ameaça sobretudo os países em desenvolvimento – incluindo até alguns dos seus aliados no Médio Oriente e África. No entanto, ainda no dia anterior Vladimir Putin deixara claro que a Rússia podia mitigar esta crise alimentar, “desde que as sanções politicamente motivadas do Ocidente sejam levantadas”, levando o Presidente russo a ser acusado de chantagem na arena internacional.
O Kremlin garantiu que o porto de Mariupol – por onde passava uma boa parte das exportações da Ucrânia, que costumava ser responsável por metade da produção mundial de óleo de girassol, bem como uns 12% do milho e 15% do trigo – foi reconstruído e desminado pela sua marinha, enquanto os destroços de navios afundados eram removidos da costa desta cidade, nas margens do mar de Azov.
O Ministério da Defesa russo anunciou que há umas 70 embarcações oriundas de 16 países presas no Mar Negro, e até se propôs para criar um corredor marítimo para as escoltar a partir de Mariupol, avançou a agência TASS. Mas o Governo de Kiev, que viu Moscovo quebrar sucessivas promessas de cessar-fogo temporárias em Mariupol, que serviriam para criar corredores humanitários, naturalmente mostrou-se bastante cético quanto à oferta.
Se a Ucrânia concorda com a criação de um corredor seguro, por princípio, não confia que Putin cumpra o acordado. O problema “é como garantir que, de noite ou madrugada, a Rússia não viola o acordo de passagem segura e os seus navios militares e não se esgueira no porto e ataca Odessa”, reagiu o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba.
Afinal, esta cidade portuária – apesar de ser considerada quase invulnerável a um assalto anfíbio, com as suas praias cheias de obstáculos e minas – é o último ponto de acesso da Ucrânia ao mar. Seria um alvo óbvio para a frota do Mar Negro, que teve um sucesso notório durante a invasão, comparativamente à desastrosa prestação dos seus camaradas do exército, controlando o sul da Ucrânia quase inteiro e aniquilando a pequena marinha ucraniana.
Entretanto, multiplicam-se os apelos para que se alcance uma solução diplomática para a exportação de grão ucraniano. “Odessa tem de ser reaberta e precisamos de um acordo para isso”, avisou Pierre Vauthier, responsável da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla inglesa).
Contudo, não há grandes esperanças que um acordo seja possível em breve. E a Ucrânia, que de momento tem pelo menos uns vinte milhões de toneladas de excedentes de cereais armazenado em silos, tenta desesperadamente exportá-los usando camiões, linhas ferroviárias e rios, recorrendo às fronteiras com os seus vizinhos europeus.
“Mas será suficiente para alcançar a meta de exportar uns seis, sete milhões de toneladas por mês? De maneira nenhuma”, considerou Roman Rusakov, dirigente do Ministério da Agricultura ucraniano, à Reuters. “Há fome em África e noutros países. Nós vimos uma dinâmica de populações com falta de comida, ano após ano. Simplesmente não consigo imaginar o que pode acontecer sem a Ucrânia conseguir enviar os excedentes da próxima colheita”.
Já o Governo de Putin tem procurado atirar as culpas para cima dos seus adversários da NATO. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, lembrou esta quinta-feira que a Rússia também é um peso pesado no que toca à exportação de alimentos, e acusou as sanções de serem “decisões ilegais que impedem o aluguer de navios e a exportação de cereais”. Já Washington tem assegurado que as sanções têm como exceção a exportação de sementes, fertilizantes – algo de que a Rússia e a Bielorrússia são dos maiores produtores mundiais – e cereais.
De facto, se o bloqueio à exportação de cereais ucraniano no Mar Negro tem um impacto mais imediato, a quebra nas vendas de fertilizante russo ameaçam eternizar a crise alimentar. Aliás, a própria Ucrânia costumava importar mais de 88% do seu fertilizante da Rússia e Bielorrússia, mostram dados das Nações Unidas, pondo em risco as colheitas agrícolas dos próximos anos.
Isto numa altura em que os fertilizantes já atingem preços recordes. Até porque o gás natural – de que a Rússia também é um grande exportador – é um componente importante para a produção de fertilizantes à base de nitrogénio, que estão entre os mais utilizados.