Por Sónia Peres Pinto
O Orçamento do Estado para 2022 foi aprovado sem surpresas, não tivesse o PS maioria absoluta. O documento recebeu finalmente luz verde, mais de meio ano depois da proposta inicial ter sido chumbada, levando à queda do Executivo. Como já era de prever, Livre e o PAN abstiveram-se, bem como os deputados do PSD Madeira, enquanto os restantes partidos votaram contra.
«Virámos a página desta crise, agora é para arregaçar as mangas e pôr-nos ao trabalho». Foi desta forma que António Costa reagiu à aprovação do Orçamento, afirmando que este é um documento pelo qual «os portugueses aguardavam» e que vai «permitir aos jovens pagar menos IRS, aos pensionistas receberem aumento extraordinário, o reforço dos equipamentos sociais, no SNS e com o início do programa das creches gratuitas, e melhorando a ação social escolar para os jovens».
Também para Fernando Medina esta aprovação é o início de um novo ciclo: «Este Parlamento encerrará o último capítulo de uma crise política desnecessária e prejudicial. Hoje, este Parlamento aprovará Orçamento de que o país precisa com urgência. Hoje, recuperamos a estabilidade e a normalidade do funcionamento do Estado».
Argumentos que não convencem os partidos de oposição que teceram duras críticas ao Orçamento (ver página 57).
O que mudou face ao documento inicial?
Pouco ou nada. A maioria absoluta socialista chumbou a generalidade das propostas de alteração ao orçamento apresentadas pelos partidos, com o Livre e o PAN a serem os que conseguiram viabilizar mais medidas, no entanto, sem grande impacto orçamental. E os números falam por si: as propostas de alteração aprovadas ficaram aquém de 10% das cerca de 1.500 submetidas.
Entre as várias medidas aprovadas incluem-se a criação de um regime especial do Imposto sobre Veículos (ISV) matriculados na Ucrânia, detidos por pessoas beneficiárias do regime de proteção temporária, o alargamento do IRS Jovem a doutorados até aos 30 anos, o alargamento do prazo de entrega do IRS para quem tem rendimentos de fonte estrangeira e crédito de imposto para 31 de dezembro.
Já uma das propostas que atrasou mais os trabalhos e obrigou à intervenção do presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, foi o aumento da margem de endividamento das autarquias para 40% exclusivamente para assegurar o financiamento nacional de projetos cofinanciados na componente de investimento não elegível. Essa possibilidade aplica-se quando a «dívida objeto do acordo de regularização já se encontrava contabilisticamente reconhecida até 31 de dezembro de 2021» e, neste caso, esta «ultrapassagem do limite» pode ser excecionalmente autorizada mediante despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, das autarquias locais e do ambiente e da ação climática.
Foi ainda aprovada uma alteração ao Código do IVA clarificando que todos os produtos de higiene menstrual têm taxa reduzida de 6%, assim como um estudo do impacto da semana de quatro dias ou o alargamento do subsídio de desemprego a vítimas de violência doméstica.
O que não viu a luz do dia?
Entre as muitas propostas de alteração rejeitadas estão os aumentos salariais da função pública para fazer face ao aumento da inflação – reclamadas por vários partidos da oposição -, uma nova subida das pensões ou ainda as que contemplavam mexidas nos escalões do IRS, incluindo a da IL que defendia uma taxa única de 14,5% para quem recebe menos de metade do salário base de um deputado, ou a do PCP sobre um novo escalão para pessoas com rendimentos anuais superiores a 250 mil euros. Ainda na área fiscal foram rejeitadas as propostas do PSD para isenção do IMT até aos 150 mil euros na aquisição da primeira habitação, tal como a eliminação do regime fiscal do Residente Não Habitual (RNH), para taxar lucros extraordinários e os ganhos com as criptomoedas.
E os chumbos não ficaram por aqui. Várias medidas de descida do IVA na restauração, energia e bens alimentares essenciais foram igualmente rejeitadas pela maioria socialista. O mesmo cenário repetiu-se com o reforço do mínimo de existência em 400 euros, assim como a criação de um projeto-piloto sobre o Rendimento Básico Incondicional, uma das bandeiras do Livre.
O Nascer do SOL quis saber o que os economistas acharam do Orçamento aprovado e as opiniões não surpreendem. E as reações foram entre o «estilo do costume», defendido por João César das Neves, que acusa o documento de ser mais «um exercício de retórica política do que um documento financeiro», passando por «ajustamentos mecânicos» e falta de ambição tendo em conta a maioria parlamentar socialista, no entender de António Bagão Félix, até o Governo ser acusado de «insensibilidade social e de cegueira económica» nas palavras de Eugénio Rosa.
César das Neves
'O estilo do costume'
João César das Neves não vê a aprovação deste Orçamento do Estado com surpresa. De acordo com o economista, o documento «segue o estilo do costume, na linha dos anteriores». No entanto, admite que tem a particularidade «de ter mantido quase totalmente a formulação de outubro, apesar de o mundo (e o ministro) ter mudado em fevereiro», considerando que se trata de «mais de um exercício de retórica política do que de um documento financeiro».
Quando questionado sobre os ajustes feitos, o economista confessa que não seguiu o processo, defendendo que «este tipo de coisas, para mais em maioria absoluta, não passam de mais pequenos ajustes para alimentar certos interesses instalados».
E lembra que estamos perante uma situação de alta incerteza, «ainda mais alta que a anterior, pelo que ninguém sabe o que vai acontecer», defendendo que «a prudência aconselharia uma linha mais contida». PAra César das Neves, «com maioria absoluta poder-se-ia fazer finalmente reformas a sério, em particular na função pública e no aparelho do Estado, de forma a tornar mais sustentável a nossa difícil situação financeira». E lamenta que «o Governo nem sequer fala nisso».
António Bagão Félix
'Ajustamentos mecânicos'
Para António Bagão Félix, o novo documento pouco adianta em relação ao Orçamento de Estado que foi chumbado no anterior Governo, considerando que os ajustamentos são sobretudo «mecânicos», defendendo que não se vislumbra nenhuma reforma de fundo e deixando um alerta: «Sendo apresentado por um Governo com maioria absoluta parlamentar, talvez pudesse ter sido mais ambicioso». E diz mais: «Esperemos pelo Orçamento de Estado de 2023, o primeiro a apresentar dentro dos prazos certos». Bagão Félix lamenta não ver medidas que estimulem a produtividade – na economia e no aparelho do Estado – e a poupança.
O ex-ministro salienta, no entanto, como positivos os programas que se referem aos apoios às famílias com mais de um filho ou em situação de pobreza extrema, bem como o alargamento do chamado IRS jovem, «ainda que aqui haja o risco de, repercutido para trás, diminuir o valor de contratação dos jovens qualificados».
Já em relação aos impostos, lembra que a receita fiscal – comparado com o último ano considerado ‘normal’, que é o de 2019 – aumenta 5,6%, ou seja, mais 2.569 milhões de euros. «Isto é tão mais significativo quanto o PIB real dos anos comparados (2019 e 2022) será semelhante. Há, pois, uma maior pressão fiscal em função da riqueza criada».
Quanto ao IRS, chama a atenção para o facto de o aumento entre o Orçamento de Estado de 2022 e o executado em 2019 é de 15,4%, ou seja, mais 2.032 milhões de euros. «A percentagem do IRS na receita fiscal total será de 31,3%, quando em 2019 foi de 28,6%. Considero injustificada e até inconveniente a proliferação de escalões – de 7 para 9, ou melhor de 9 para 11, se considerarmos duas taxas adicionais, que foram apresentadas como transitórias, mas que, como habitualmente, ficam para a eternidade tributária – a progressividade fiscal não é necessariamente em função do aumento do número de escalões», acrescentando que «o seu excesso tem como contrapartida desestimular o ‘elevador social’ e punir a meritocracia laboral, penalizando mais imediatamente quem sobe no percurso profissional».
Vai mais longe, ao defender que «o que está previsto é quase um exercício de ilusionismo para conciliar uma ligeira descida de duas taxas marginais do IRS com o agravamento fiscal de alguns rendimentos por força da alteração de limites dos escalões. Esta micro redução fiscal é, aliás, rapidamente absorvida pela não atualização dos limites dos escalões em função da taxa de inflação (mesmo considerando a do ano passado de 1,2%)», diz ao nosso jornal.
Quanto à despesa corrente, Bagão Félix critica que se limite «a assinalar as consequências sucessivas e danosas da descida das horas de trabalho no Estado (de 40 para 35 horas, menos 12,5%)», acrescentando que, segundo a Pordata, em 2016 os funcionários totalizavam 659 mil. «Agora já chegaram aos 741 mil, ou seja mais 12,5%. Com uma óbvia consequência: com mais emprego público, manter o mesmo nível de despesa com pessoal, só com enorme restrição do fator preço (nível de vencimentos)».
Quanto às medidas que entretanto foram aprovadas, o economista considera que «são apenas para mostrar serviço por parte de partidos da oposição, em particular os de representação unipessoal, sempre ungidos pela ‘correção política’ mediática: o Livre e o PAN».
E acredita: «Não vi ninguém preocupar-se com o ‘desvario’ fiscal do IRS. Os deputados gostam sobretudo de minudências para pequenas e médias clientelas».
No entanto, admite que, tendo em conta a inflação e a guerra da Ucrânia, «as consequências, sobretudo indiretas e não imediatas, da guerra, dificilmente poderiam ser plasmadas no OE 2022», ainda assim, garante que em relação à inflação, a situação é diferente.
«Na verdade, trata-se de uma variável importante para os agentes económicos já neste exercício orçamental. A inflação atingiu já valores preocupantes. E receio que aumentem as consequências atendendo aos últimos dados conhecidos do índice de preços na produção industrial de uma taxa de variação homóloga de 26,3%». Por outro lado, lembra que a inflação tem consequências sociais, seja na redução real da poupança, seja nos rendimentos de trabalho, seja nas pensões, «revelando-se como um verdadeiro ‘imposto regressivo’, com efeitos assimétricos suportados pelos rendimentos mais baixos com elevada propensão ao consumo concentrada na alimentação e na energia. Ao invés, o Estado é beneficiário da inflação do lado da receita (IVA, outros impostos sobre o consumo e não atualização dos escalões tributários do IRS)».
Mas, apesar das reticências, concorda «com alguma moderação na atualização dos rendimentos de trabalho, mas entre 0% ou quase 0% e a taxa previsível de aumento de preços em 2022, há algum espaço para ajustamentos, tanto mais que as principais razões para a inflação advéns do lado da oferta e não tanto da procura agregada. Fica seriamente prejudicado o objetivo definido pelo Governo de aumento até 2026 de 3 pontos percentuais no peso das remunerações no PIB».
Eugénio Rosa
'Insensibilidade social e cegueira económica'
O economista Eugénio Rosa dá cartão vermelho ao Orçamento aprovado por considerar que ignora «a nova realidade, tanto nacional como internacional, a do país e do mundo, que resulta de uma pandemia que ainda não acabou associada a uma guerra que se prevê prolongada na Europa, cujos efeitos dramáticos ainda estão no início e já são sentidos duramente pelos portugueses».
E, face a esse cenário de grave crise económica e social, Eugénio Rosa lembra que o Governo pretende reduzir, entre 2021 e 2022, o défice orçamental de 2,8% para 1,9%, (-32%) e a dívida pública de 127,4% do PIB para 120,7% (-6,7 pontos percentuais), «sacrificando as classes da população que estão a ser mais atingidas pela crise e a economia à obsessão de ‘contas certas’, portanto mais ‘papista’ do que os outros países da União Europeia, revelando insensibilidade social e cegueira económica».
Segundo este responsável, a versão agora aprovada «é praticamente uma cópia» do documento do Governo anterior e as alterações aprovadas na especialidade na Assembleia da República «são poucas e de impacto muito reduzido».
E dá como exemplo o estudo sobre os novos modelos de organização laboral; a formação para agentes responsáveis pela confeção e disponibilização de refeições vegetarianas nas cantinas públicas; a aplicação da taxa reduzida do IVA de 6% a todos os produtos de higiene menstrual; a não aplicação aos contratos de crédito já celebrados o agravamento da taxa do Imposto do Selo; um regime especial para veículos com matricula da Ucrânia com uma taxa de ISV mais baixa, lembrando que, «mesmo uma das medidas mais emblemáticas da versão anterior do OE 2022 – a gratuitidade das creches – o Governo pretende reduzir o seu o seu âmbito pois terá lugar apenas em creches do setor social (IPSS) e abrangerá apenas as vagas do sistema de cooperação segundo esclarecimento dado pelo próprio Executivo na Assembleia da República».
Opções que levam Eugénio Rosa a considerar que estamos perante um Orçamento que não tem em conta a realidade e que ignora as dificuldades que enfrenta a população e a economia, «em que a escalada de preços, desde a energia à alimentação, que está a destruir o poder de compra e as poupanças dos portugueses é apenas uma das consequências mais visíveis e mais sentidas, que está a tornar insustentável a vida das pessoas e o funcionamento das empresas».
E os alertas não ficam por aqui. O economista diz ainda que há outras matérias ignoradas no Orçamento, nomeadamente o facto de Portugal ser um país que, por exemplo, nos cereais, quer para a alimentação humana quer para animais, depende em grande parte de importações ( trigo mais de 90%, de milho mais de 30%), o que o leva a defender que «se a guerra de prolongar por muito tempo a crise alimentar não será apenas em África como pretendem fazer crer, etc. É toda esta nova realidade criada pela pandemia e pela guerra que é ignorada e é como se não existisse».
Qual seria a alternativa? Para Eugénio Rosa não há margem para dúvidas: «O Orçamento deveria defender o poder de compra da população, nomeadamente o dos trabalhadores e pensionistas, e de outras classes mais vulneráveis, o que pressupõe ajustamentos intercalares no valor dos salários e pensões para fazer à escalada de preços». Por outro lado, defende que deveria promover o crescimento económico, «o que pressupõe a utilização e eficiente dos fundos comunitários (do Portugal 2020, que devia ter terminado em 2020 ainda estavam por utilizar, em março de 2022, 7.638 milhões de fundos comunitários e do PRR só foram ainda utilizados apenas 3%». Uma situação que o leva a questionar-se: «Com esta ineficiência e ineficácia, como é que o país terá capacidade para utilizar os 16.600 milhões do PRR e os cerca de 30.000 milhões e de fundos comunitários do Portugal 2030?».
Ao mesmo tempo, considera que o Orçamento deveria disponibilizar meios à administração pública para que pudesse responder aos novos desafios. «Em vez disso, o OE 2022 diminui entre 2021 e 2022, as verbas destinadas às remunerações certas e permanentes dos trabalhadores do Estado em -0,2% (28.4 milhões), e aumenta as verbas destinadas a aquisições de serviços especializados (estudos e pareceres, assistência técnica, e outros trabalhos especializados) a empresas privadas em 35% (+437,4 milhões), o que é muito mais caro do que seria se fosse feito internamente».
E não hesita: «Nenhum destes objetivos são contemplados. Preferiu-se sacrificar os interesses dos portugueses e a defesa da economia à redução drástica do défice e da dívida pública, o que nenhum outro país da União Europeia vai fazer com a dimensão que pretende este Governo. Mas assim é elogiado em Bruxelas por ‘ser bom aluno’».
Eugénio Rosa lembra ainda que, na área do SNS, que enfrenta atualmente uma grave crise, o documento prevê para 2022 um saldo negativo de 1.120 milhões. «Como é que o SNS poderá assim funcionar e dar resposta com tal escassez de meios? Endividando-se cada vez aos fornecedores privados», conclui.