Ensaiar uma visita ao Museu do Tesouro Real da perspetiva de um hipotético ladrão tem mais piada do que integrar simplesmente uma dessas comitivas de visitantes com uma vaga disposição para se deixar deslumbrar por uma vastíssima coleção de joias da monarquia portuguesa, seguindo de forma ordeira, não só fisicamente, mas também nessas disposições que se dirigem ao pasmo das pessoas de bem. Mas se é certo que, a partir de hoje, a exposição que fica aberta ao público no Palácio Nacional da Ajuda, tem evidentes méritos, talvez nem seja só o imenso tesouro da Coroa Portuguesa – composto por quase 900 peças, 142 joias, 14.800 pedras, das quais 12 mil são diamantes –, mas constitui também um atrativo o complexo dispositivo de segurança, o qual se faz sentir a cada passo, e que é, no fundo, a grande novidade e o culminar de um projeto que esperou 226 anos para se concretizar. Com os sucessivos atrasos e desaires que são também eles essenciais à compreensão da História do nosso país, seria errado deitar o olho às joias, querer provar o esplendor, sem levar em conta todo o desconchavo e as arritmias que lhe são próprias, e como a construção da ala de remate do palácio da Ajuda ao fim de mais de dois séculos, e especificamente a pensar na instalação do Museu do Tesouro Real, ainda foi sendo sucessivamente adiada já na reta final. Mas voltemos ao presuntivo ladrão, que antes de se pôr a calcular a estupenda soma que faria se deitasse as mãozinhas nalgumas das peças que, de ora em diante, estarão em exibição, muitas pela primeira vez e em permanência, terá de se haver com um não menos ostentoso quadro de proteções com vista a garantir que a sua missão será virtualmente impossível de concretizar. Ainda antes de chegar à gigantesca caixa-forte localizada na ala poente do Palácio da Ajuda, primeiro terá de passar pelo detetor de metais, depois de validar os bilhetes com um QR code. Depois terá pela frente uma porta giratória armada com um mecanismo sensível e que procede ao reconhecimento corporal do visitante, a qual é bloqueada ao mais mínimo sinal de alarme. Por esta altura, já a maioria de nós terá abandonado esse flirt com hipóteses de ladroagem, e só os espíritos mais persistentes não se deixaram demover ao dar-se conta de que tudo aqui foi desenhado não apenas para proteger o tesouro como para se blindar e transformar subitamente numa prisão. Entrando no edifício, para se aceder à ala poente, é preciso subir de elevador até ao terceiro andar, e é então que o visitante dará por si frente à imensa caixa-forte, de 10 metros de altura por dez de largura e 40 de comprimento, revestida com espuma de alumínio dourada e retroiluminada. Se isto não o impressionar, se ainda estiver a magicar algum plano para superar estas medidas, considere que as portas que tem diante de si são idênticas às de um cofre-forte, com 40 centímetros de espessura, feitas em aço e pesando cinco toneladas cada uma. No nosso país, só o Banco de Portugal e a Casa da Moeda beneficiam das mesmas garantias de segurança, mas se estas portas se abrem diariamente ao público, o ambiente que vamos encontrar lá dentro continua a propiciar o clima para uma ficção cheia de suspense, criando um ambiente de penumbra, não havendo qualquer contacto para o exterior. E uma vez que a luz natural não tem forma de entrar neste museu, o cenário no interior é montado desde logo pelos focos de luz que incidem de forma a direcionar o olhar do visitante para as peças ali expostas. Assim, ficamos no escuro e é o tesouro que parece irradiar luz. A partir de agora, já não é o invólucro, a carapaça protetora, o que deve concentrar as atenções. Mas numa exposição deste cariz, não seria mau se todo o visitante fosse tomado de um desejo de tomar para si peças que, além da riqueza dos materiais, são exemplos do “que de melhor se fez a nível de artes decorativas portuguesas e europeias do século XVI até ao século XX”. Quem o diz é o diretor do Palácio Nacional da Ajuda, José Alberto Ribeiro, adiantando que a exposição se divide em 11 núcleos: ouro e diamantes do Brasil, moedas e medalhas da Coroa, joias do acervo do Palácio Nacional da Ajuda, ordens honoríficas, insígnias régias, objetos de uso civil em prata lavrada, coleções particulares, ofertas diplomáticas, capela real, Baixela Germain e viagens do tesouro real.
É difícil que o ladrão não tenha já ficado desmoralizado, mas para soprar de vez a vela do seu delírio, convém acrescentar que os três pisos, além de insulados, contam ainda com videovigilância, vitrinas com controlo de temperatura e humidade e vidros à prova de bala. Ou seja, além do formidável tesouro acumulado ao longo de séculos, um tesouro de origem monárquica e que agora nos é devolvido à contemplação, sendo que a maioria das peças nunca foi vista pelos portugueses, é preciso valorizar também o facto de o país contar com um dispositivo de segurança digno de aparecer numa dessas fitas de Hollywood. E depois, mesmo para aqueles que não são assim tão gananciosos, nem se deixam deslumbrar por aspetos delicados de ourivesaria, há ainda a fatura histórica, afinal, estamos na presença de peças que, como sintetizou o Expresso, “sobreviveram a terramotos, incêndios, invasões estrangeiras, uma guerra civil, partilhas, roubos, alienações, crises económicas”. É, assim, uma deslumbrante perspetiva de tudo o que se salvou, o que não foi desluzido por séculos de uma governação que, como bem sabemos, nem sempre foi produtiva ou sequer prudente. A esse nível, este museu faz a sua parte para nos dar também algumas lições de História, e antes do contacto direto com as joias, insígnias, prataria, custódias e outros elementos que ajudam a compor o quadro sumptuoso que se associa a um tesouro real, os visitantes são obrigado a percorrer o pedagógico corredor que leva à primeira sala de exposição. Este corredor desenha uma cronologia, com datas e imagens que explicam quem foram os reis e a rainhas que deram origem à coleção, sendo referidos ainda muitos dos episódios marcantes da nossa história, incluindo o roubo que, há 20 anos, em Haia, significou um dos mais rudes golpes para a coleção, perdendo-se seis das peças mais emblemáticas. Assim, o tal ladrão encontra aqui antecedentes, tendo as peças emprestadas pelo Estado português ao museu holandês sido roubadas a 2 de dezembro de 2002, num golpe que levou cerca de 40 minutos. Até hoje as autoridades não têm a mais pálida ideia de quem esteve por trás deste assalto que significou uma perda incalculável para a coleção portuguesa. Os ladrões levaram um diamante de 135 quilates, um castão de bengala em ouro e com 387 brilhantes, um anel com um diamante de 37 quilates, uma gargantilha em ouro e prata com 32 brilhantes, e dois alfinetes em forma de trevo com diamantes e brilhantes. A indemnização ficou-se por 4,4 milhões de euros e fez parte do financiamento da construção do museu que agora inaugura, e cujo custo total está calculado em cerca de 32 milhões, mais de 80% dos quais pagos pela Câmara Municipal de Lisboa e pela Associação de Turismo de Lisboa.
Cabe agora ao público e a quem quer que tenha ânsias de se tornar um ladrão lendário descobrir os obstáculos e desafios que lhe impõe este museu, o qual estará aberto todos os dias, com os bilhetes a custar 10 euros, com descontos especiais para crianças, jovens e seniores, para escolas, famílias e grupos.