Por Diogo Vaz Pinto, João Oliveira Duarte, Teresa Carvalho e Paulo Bugalho – DVP, JOD, TC e PB
Da anatomia do verão já fazem parte essas pilhas de livros que se acumulam e sinalizam uma espécie de crédito que se estende à estação das férias grandes, a última esperança de tantos leitores de se desforrarem da falta de tempo e das infinitas tarefas que submergem o calendário nas restantes estações, podendo finalmente refazerem-se do tempo perdido e lançarem-se nesse desbaste de títulos e autores que parecem oferecer boleia em direção a outras paragens, lugares, horizontes…
Como naquele poema de Henri Michaux: “Paisagens aprazíveis, paisagens desoladas./ Paisagens da estrada da vida mais que da superfície da Terra./ Paisagens do tempo que lentamente flui, quase imóvel, que flui para trás./ Paisagens dos pedaços de carne, dos nervos lacerados, das saudades./ Paisagens para cobrir as chagas, o aço, o estilhaço, o mal, a época, a mobilização, a corda ao pescoço./ Paisagens para abolir os gritos./ Paisagens como se tapa a cabeça com um lençol.”
Mas se falta à nossa época a disponibilidade vastíssima do tempo livre, bom para o ócio, isso significa que a condição que nos formou como leitores está no fio. O tédio, como já muitos notaram, é hoje uma velharia erudita e literária que já só se apresenta como objeto de uma arqueologia. E se o tédio implicava a percepção de um tempo exasperante de lentidão, já não é possível encontrar-se no interior desse casulo onde cada palpitação se estende em busca de um ponto de fuga, de algum estímulo e contraste, uma vez que, como vincava António Guerreiro numa das suas crónicas, “o regime da superabundância digital, que faz com que estejamos sempre ligados a redes de comunicação e imersos nos fluxos de distração que elas fornecem, provoca-nos uma estimulação sem repouso”.
Há, no entanto, quem já se tenha dado conta de que as férias exigem um corte não apenas com as rotinas diárias e do trabalho, mas também com essa dimensão esfusiante e absorvente das redes sociais, e que os livros exercer algum fascínio depois de se interpor esse fosso entre nós e o mundo, para que a escolha de ir ao encontro de um espírito com as peripécias que nos preparou num obra capaz, por fim, de nos fazer explorar uma distância e uma profundidade inalcançáveis no fragor do quotidiano.
E se não faltam propostas, se a própria tagarelice à volta dos livros, esses modelos de publicidade e de incitamento ao consumo fazem com que o leitor, antes de se lançar numa obra, se sinta como que acossado, é certo que as listas de sugestões que vão surgindo por todo o lado, como montras que tomam conta de tudo, e nos devolvem um mero efeito de reflexo à superfície, não deixa de ser útil dar nota de alguns títulos que se destacam entre o tanto que foi chegando aos escaparates. Afinal, o que não falta por aí são autores em que nos obrigam a tropeçar, mas depois há os livros furiosamente discretos, e que merecem ser resgatados de entre a debandada que nos assalta vinda do desfiladeiro mediático.
Há poetas de quem a maioria nem nunca ouviu falar, como António Manuel Azevedo, nome de um recorte já ajustado ao esquecimento, ao anonimato, como que desejando de partida que não se dê muito por ele. Num dos números da extinta revista As Escadas Não Têm Degraus, este desconhecido deixava-nos este “pedido de empréstimo”:
“Arranja-me uns versos para o verão./ Coisas de areia, de memória/ e sem futuro. Passos das tuas coisas/ em volta, a luz perdendo/ que guia o pescador, o turista/ e o amante em aventuras com o regresso/ aos quartos onde repousa para o fim/ a escassa vida.// Escreve como quem descreve quase/ o fim do amor, da casa, do caminho/ o teu ao meio-dia de agosto/ quase inteiro de sol/ e outras poentes alegrias.”
E as nossas propostas vão neste sentido, menos como uma série de paragens obrigatórias, destinos essenciais, e mais como sinais invulgares e mais difíceis de decifrar no meio de um trânsito caótico. O exercício que se pretende aqui é um extensão do gozo do flâneur, esse que entra numa livraria ou percorre um jornal, “como se folheasse o próprio tédio”.
Prosa de Eugénio de Andrade
É dos nossos poetas mais conhecidos e, em vida, foi dos mais consagrados. Se quiséssemos usar de forma imprópria um conhecido conceito de Susan Sontag, poderíamos dizer que a poesia de Eugénio é camp: tudo ali é tão kitsch e de tão mau-gosto que é impossível não gostar do desfilar de corpos esbeltos masculinos. A prosa, que já tinha sido editada mas que surge agora na Assírio&Alvim, mostra os interesses de Eugénio de Andrade pelas outras artes: a pintura, a escultura, pouco cinema, é certo, e, claro, a música, mais objecto de louvor incessante do que de análise e colocada no centro do labor poético. JOD
Levantado do Chão de José Saramago
Uma boa forma de comemorar o centenário de Saramago é voltar a um dos seus momentos maiores, Levantado do Chão. Publicado em 1980, tem uma dimensão realista que hoje já nos é vagamente anacrónica – o latifúndio desapareceu, a opressão agora passa por outras formas, mais ou menos brutais, consoante o ponto de vista. Em todo o caso, o texto introdutório chega para o transformar num monumento da língua portuguesa: “E esta outra gente quem é, solta e miúda, que veio com a terra, embora não registada na escritura, almas mortas, ou ainda vivas? A sabedoria de Deus, amados filhos, é infinita: aí está a terra e quem a há de trabalhar, crescei e multiplicai-vos. Crescei e multiplicai-me, diz o latifúndio.” JOD
O Tempo dos Mágicos, a grande década da filosofia (1919-1929) de Wolfram Eilenberger
É um livro histórico e, como tal, não pretende mais do que cartografar a vida e a obra de grandes nomes da filosofia, Wittgenstein, Walter Benjamin, Heidegger e Ernst Cassirer. De todos estes, o último é o menos conhecido em Portugal, não tendo nada traduzido até ao momento, apesar de figura central de um importante movimento filosófico e das relações com a biblioteca do historiador Abby Warburg. O Tempo dos Mágicos tem aquilo que se pede a este género de livros: clareza discursiva e clareza conceptual (aliada ao rigor). Há um conhecido episódio que Eilenberger retrata e que mostra uma das clivagens fundamentais da época, a disputa em Davos entre Heidegger e Cassirer em torno de Kant. De um lado, o herdeiro da tradição iluminista, do outro, o futuro reitor da Universidade de Freiburg na Alemanha Nazi. JOD
Diários de Viagens de Walter Benjamin
Há aqueles seres cujo destino parece ter sido desde o início marcado a fogo, submetido a uma qualquer fatalidade inescapável, como se fôssemos meros joguetes nas mãos de um pequeno deus sádico. Walter Benjamin foi um desses seres em que a falta de sorte o foi encaminhando, pouco a pouco, até à derrota final em Portbou. Diários de Viagem dá conta da deriva nada romântica de Benjamin pela Europa, deriva tantas vezes imposta por condições exteriores extremas – a falta de dinheiro, a fuga à fome. Permite ver que as relações entre escrita e vida não são nem de exclusão mútua, nem de subsunção de uma à outra, mas de um entrelaçamento com fronteiras frágeis e porosas. Para completar, e para termos acesso a praticamente toda a obra fundamental de Benjamin, falta a edição da correspondência. JOD
Espólio em Vida de Robert Musil
Foi reedita há pouco tempo um pequeno conjunto de textos, que passou relativamente despercebido, de um autor maior da modernidade que tem tido alguma fortuna editorial em Portugal – já tínhamos o monumental O Homem sem Qualidades, As Perturbações do Pupilo Törless e A Portuguesa e Outras Novelas. Com tradução de António Sousa Ribeiro, que faz parte de um conjunto de tradutores do alemão que nos tem dado verdadeiras preciosidades antigamente impensáveis, Espólio em Vida reúne vários textos pequenos de Musil, que vão de pequenos contos a observações sobre o kitsch, e que foram escritos enquanto Musil preparava o seu monumento literário. JOD
Breakfast at Tiffany’s (Boneca de Luxo) de Truman Capote
Não há como assistir a uma dança destas para perceber quão díficil é chegar a esta precisão, aparentemente imaculada de qualquer esforço. A cronometragem dos passos, nenhuma dobradiça à mostra, as costuras todas por dentro, onde ninguém, senão o autor, as vê. Uma fluência de eriçar os cabelos na nuca, de pôr qualquer paisano a espumar da boca. Personagens perfeitas, um talento dulcíssimo para marcar as figuras físicas, uma expressão do nariz, um falejar que parece não querer chegar a lado nenhum mas chega aos sítios certos (domar um diálogo não é para meninos).
Um sentido quase divino para mensurar as distâncias entre personagens, narrador e leitor e o ouvido infalível para perceber o exacto tempo em que se introduz uma imagem, um novo interveniente ou a cesura necessária à economia narrativa. Avalia-se o estado de graça do autor em Breakfast at Tiffany’s, provavelmente irrepetível, quando se lê os restantes contos deste volume: são muito bons, mas não são geniais. Breakfast at Tiffanys’s é prova de uma intervenção divina. PB
Dom Casmurro de Machado de Assis
Às vezes um leitor empenhado mas mediano, dá-se com o espanto avassalador de um clássico, e porque não fazer notícia dele, tirá-lo do óbvio e chamá-lo de novidade, essa novidade que é sempre quando alguém pela primeira vez o abre, e treme e diz: então era isto, tinham razão os que falavam dele alto e com toda aquela comoção. Porque o clássico não enternece o tempo, ele cavalga gerações, quase humilha o presente. Dom Casmurro é a adolescência ao quadrado, cheia de subtileza, reescrita com um sabor de quem envelheceu e voltou, uma magistral e nostálgica singeleza.
As frases às cavalitas umas das outras, dispondo um recreio mágico nesta língua. Coisas simples, afinal, mas alinhadas sobre uma capacidade de aproveitamento tal da vida, um somatório das suas alegrias mais breves, que, em poucas páginas, nos sentimos soterrados pelo encanto de umas também poucas personagens com as suas vidas casuais, dilemas ordinários, mas uma tão profunda, meiga e deleitosa inteligência soprando com tal perícia para o furo sensível onde nos sentimos humanos que esta se torna a história completa dos nossos afectos. DVP
Histórias Alegres de Carlo Collodi – ed. E-Primatur
Um livro para todas as idades, este do autor de Pinóquio. São oito contos originalmente publicados entre 1883 e 1887. Provocam-nos, dão-nos a dimensão dos nossos ridículos quotidianos, estendem-nos doutas lições, servem-nos a ironia, aos goles, divertem-nos. TC
Annette, Epopeia de uma Heroína de Anne Weber – Tradução de Helena Topa, ed. Dom Quixote
Um livro que vem provar que o vetusto género literário não é coisa morta. E que a biografia tem muitas declinações. Uma epopeia biográfica – em verso livre – com língua de perguntador e ouvidos moucos à voz da verdade. As respostas escasseiam, tal como os heróis; deuses e musas ausentaram-se.
Nascida em 1923, na Bretanha, criada num meio humilde, Anne Beaumanoir foi, desde muito jovem, membro da Resistência comunista francesa e salvou dos ocupantes nazis dois adolescentes judeus, tendo sido premiada com a distinção Justos entre as Nações, instituída pelo Memorial do Holocausto Yad Vashem. Depois da Segunda Guerra Mundial, exerceu a especialidade de neurofisiologia em Marselha.
Em 1959, foi condenada a uma pena de dez anos de prisão por se ter envolvido no movimento de luta pela independência da Argélia. Só morreria a 4 de março de 2022, com 98 anos, e, até ao fim, deu testemunho vivo, em muitas escolas, da importância da desobediência. TC
Além da Literatura de João Bigotte Chorão – ed. Quetzal
João Bigotte Chorão (1933-2019) foi um crítico e ensaísta literário maravilhoso nas suas sucintas e incisivas anotações, compondo textos que ficam a meio caminho entre a crónica e o ensaio, em divagações sempre com a trela tensa, relevando aspetos curiosíssimos, abordando um rol mais ou menos limitado de autores, aqueles que obtinham o seu favor enquanto leitor apaixonado. Isto permitia-lhe fazer uma abordagem ao mesmo tempo informada e bastante pessoal dos autores, compondo retratos abrangentes, sem nos aborrecer, como é costume nos ditos textos de crítica.
Assim, num livro como Além da Literatura, este insigne camilianista compõe sempre quadros em que as obras ajudam a traçar o perfil dos autores (não fosse, de resto, Bigotte Chorão, um estudioso da literatura autobiográfica), sem deixar de assumir uma postura distanciada face às tentações de se criar modas. Como ele refere, “porque há muitos apressados e improvisados romancistas, é que vemos aí o mais complexo dos géneros literários em mãos a que não foi concedido o dom de recriar um mundo, que parece mais real que o nosso mundo”. DVP
Interpretação do Tango de Ramón Gómez de la Serna – ed. VS
Após a sua invenção na Alemanha para acompanhar as cerimónias religiosas, o bandoneon saiu de um navio em Buenos Aires para entrar e ficar nas liturgias noturnas do tango em tabernas e cabarés, como nos é dito num excelente prólogo de Rafael Flores Montenegro a esta edição de Interpretação do Tango, de Ramón Gómez de la Serna, que se instalou na capital argentina e ali veio a interessar-se pelas formas peculiares da cultura rio-platense, declarando a sua paixão acima pelo tango.
Eis uma entre inúmeras das prodigiosas sentenças esta forma de arte e expressão popular lhe inspiraram: “Há no tango a tristeza dos elétricos cheios de proletários emigrantes, esses elétricos que caem inteiros a um rio e cuja maior catástrofe é o naufrágio de todos aqueles que queriam ser ricos para voltarem nababos às suas aldeias.” Num outro momento diz-nos que se “outras músicas são tocadas para que as feridas se fechem, o tango toca e canta para que se abram, para que continuem abertas, para as recordar, para nelas pôr o dedo e as abrir obliquamente”.
K Como Kolónia Kafka e a descolonização do imaginário de Marie-José Mondzain – ed. Orfeu Negro
Uma das mais conhecidas pensadoras francesas da atualidade, Marie-José Mondzain tem trabalhado acima de tudo os problemas que se relacionam com a imagem e com o imaginário. Depois de A imagem pode matar? e, também com tradução de Luís Lima, Homo Spectator – os dois únicos livros traduzidos em Portugal – chega agora K como Kolónia.
Trata-se de uma intensa leitura de um pequeno texto de Kafka – Na Colónia Penal, o que encontramos neste livro é um Kafka negro, também ele um africano habitante dessa colónia penal que imagina, e uma das dimensões interessantes do texto de Mondzain é a forma como transforma o texto de Kafka numa espécie de estrutura, de tempo concentrado, que permite interrogar o racismo, tanto aquele que funcionou durante vários séculos como, igualmente, as suas sobrevivências e declinações contemporâneas. Porque o colonialismo, parece dizer-nos Mondzain, não acabou. JOD
I Vol. das Obras Completas de Maria Ondina Braga, Estátua de Sal, Passagem do Cabo, Vidas vencidas Maria Ondina Braga – Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Eis o 1.º de 7 vols. previstos de uma Obra há muito esgotada no mercado editorial português. É dedicado às autobiografias ficcionais de Ondina, um nome admirável e pouco lembrado cuja existência literária há muito se tinha confinado aos territórios da especialidade. Fora deles, ora ilustrava a tradição do imaginário asiático na nossa literatura, ora surgia chegado à hedionda etiqueta da escrita feminina, tão redutora que mal lhe cola. TC
Olho da Rua de Dulce Garcia – ed. Companhia das Letras
Razão tinha Rilke quando nos disse que há entre as coisas e os animais um numeroso acontecer. Uma inovadora estratégia japonesa de despedimento é a corneta de uma batalha crua e ingrata, cheia de golpes de manga, lances crapulosos, trunfos improváveis. E há, como a Coruja, quem não faça barulho. O romance, de uma lucidez feroz, acerta em cheio na passarada urbana. TC
O Colibri de Sandro Veronesi – ed. Quetzal
Estas 324 páginas, versadas em assuntos desse complexo comboio de corda chamado coração, rompem com a ideia da previsibilidade que tantas vezes nos faz desapetecer o género romance, quebram o fio narrativo das tradicionais sagas familiares. Afundam-nos e levantam-nos.
Eis a sinopse: “Marco Carrera é um oftalmologista com uma vida boa e organizada – até que lhe entra pelo consultório um desconhecido, que sabe tudo sobre o seu passado e o avisa de que corre perigo. Além disso, diz-lhe que a sua mulher está a ter um caso extraconjugal e vai ter um filho que não é dele.
Estas revelações desencadeiam um longo fluxo de recordações: da infância e juventude, da família, da primeira mulher na vida dele, de um certo amigo, da irmã mais velha que morreu afogada.” TC
Figuras numa Paisagem de Paul Theroux – ed. Quetzal
Fecundo mas não torrencial nem desmazelado, Paul Theroux é um desses escritores habituados a transportar o leitor, andar com ele às costas, pelos lugares mais inóspitos, e desta formidável recolha de ensaios e artigos publicados ao longo dos anos não estão ausentes as derivas geográficas pelas quais é mais conhecido, mas destacam-se as páginas de crítica literária e de ensaio, debruçando-se nas obras de autores que admira mais e menos, e que lhe servem para mostrar o alcance e a verve do seu estilo desabusado e contagiante, como fica claro desde o primeiro parágrafo da introdução:
“Se não suporto ficar a ouvir a vaidade raivosa de outros escritores a falar da sua obra por abstrações, porque faço eu o mesmo? Sinto-me melhor a ver pessoas a escreverem boa ficção sem matutar no modo como o fazem. Quando os escritores se queixam do que se sofre a escrever fazendo alarde da sua dor, qualquer pateta vê bem que é conversa fiada. Em comparação com um emprego a sério, como nas minas de carvão, ou a colher ananases, ou a apagar fogos florestais, ou a servir à mesas, escrever é o paraíso.” DVP
Meditações sobre o escorpião e outras prosas de Sergio Solmi – ed. Barco Bêbado
Uma das mais espantosas descobertas oferecidas pela edição independente, este ano, aos leitores mais atentos terá de ser este livro do poeta e crítico italiano Sergio Solmi, no qual se reúnem uma série de breves ensaios ou apontamentos com um fulgor poético estranho a quase tudo aquilo que se vai editando entre nós, e que se situam naquela zona incerta e que faz tremer todas as certezas quanto aos géneros.
Com tradução de Ana Cláudia Santos, tratam-se de meditações extraordinárias, que têm em comum o fascínio de uma expressão firme, cinzelada como só os melhores versos, seguindo uma razão que escapa às armadilhas dos lugares-comuns e nos encaminha para as regiões onde o pensamento se move prenhe de imaginação, capaz de estabelecer definições e fronteiras muitíssimo produtivas, deixando claro a enorme diferença que vai entre lançar a linha da prosa para matar o tempo e, quem sabe, iscar um peixe de água doce, ou criar toda uma relação de profundidade inaudita, caindo com o estrondo de uma baleia sobre um pequeno lago. DVP
Sombra das Minhas Mãos de António Barahona – ed. Averno
António Barahona, como só mais uns poucos dos poetas mais velhos, carrega ainda a perceção de uma antiguidade que se vê desluzida e ignorada, mas que riposta, não se entrega nem condescende, agride ainda outra e outra vez, insistindo na beleza mais difícil, no golpe que busca o nervo nos homens deste tempo.
Barahona tem, como só muito poucos, a graça de ser bafejado há muito por uma musa abrupta quando não escandalosa, mas é capaz de variações sublimes, de reflexos inesperados, cosendo outros sintomas sobre a pele dessa deformidade da nossa época, capaz de balançar entre a lírica mais precisa e radiante, e a oratória, memoriosa, fúnebre e sensualista.
Com este livro de sonetos encerra a sua suma poética num tom mais brando, como uma música de águas correndo nos veios mais profundos da língua, puxando de si para si essas relações intuídas pela relação sonora, levando-nos a perceber, como supôs Borges, que talvez a história universal seja a história da diferente entoação de algumas metáforas. DVP