Para o presidente da SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, Portugal tem de ter a ambição de crescer mais economicamente e se o desafio era duplicar o Produto Interno Bruto (PIB), agora é ainda maior: triplicar. Aliás, foi este o mote para lançar o livro Ambição: Duplicar o PIB em 20 anos, que dá respostas aos desafios das mais variadas áreas, da economia à justiça, passando pela educação e pela saúde, entre outras. A obra vai ser lançada a 1 de setembro, mas Álvaro Beleza levanta o véu em relação a algumas das questões abordadas. Uma das medidas que propõe, por exemplo, é a diminuição significativa da carga fiscal.
Professor universitário e diretor de serviço no hospital de Santa Maria, faz também um raio-x ao setor da saúde e deixa uma garantia: “Temos de adaptar o sistema de saúde todo: público, privado, social, mas, ao mesmo tempo, o Estado não pode ir à falência”. Ao mesmo tempo defende que “o diagnóstico do sistema nacional de saúde está feito, é preciso melhorar, mas sem rutura. É preciso fazer mudanças graduais”.
Militante do Partido Socialista, assume-se como liberal, mas prefere estar longe das intrigas políticas. Em relação ao novo líder do PSD, que em tempos alertou para a necessidade de ser carismático, garante que “os líderes carismáticos só se veem quando ganham eleições”.
A SEDES vai lançar a 1 de setembro um livro com “receitas” para duplicar o PIB em 20 anos…
Esse é o título do livro Ambição: Duplicar o PIB em 20 anos. Na comemoração dos 50 anos da SEDES, a 4 de dezembro de 2020, na Fundação Calouste Gulbenkian, disse que iríamos publicar um livro com as conclusões do congresso.
Organizámos grupos de trabalho e dei como tarefa apresentarem um conjunto de propostas de reformas estruturais para o país nas várias áreas, seja justiça, educação, economia, finanças, defesa, etc. Com um objetivo: como é que Portugal podia crescer economicamente para ficar ao nível dos países com a nossa dimensão europeia. E comparei, na altura, com a Irlanda. Porquê com a Irlanda? Porque a Irlanda entrou na mesma altura que Portugal na União Europeia e quando isso aconteceu tinha um PIB inferior ao português, mas a 4 de dezembro de 2020 tinha o dobro do nosso. Isso mostra que o título do livro está desatualizado. Se fosse hoje tinha de ser triplicar o PIB, porque, entretanto, o PIB da Irlanda em dois anos já é o triplo do português.
E Portugal continua neste rame-rame…
Sem dúvida. Chegámos à conclusão que o problema português é o facto de sermos um país pobre economicamente que está na cauda da Europa. Temos de crescer de uma maneira consistente. E o que sempre me fez muita confusão foi a ideia dos economistas de que o potencial de crescimento português é sempre pequeno. Mas porquê? Foi a pergunta que coloquei aos economistas da SEDES e chegámos à conclusão de que isso não é verdade. O potencial de crescimento depende das políticas e das atitudes que os países tomam e Portugal não tem nenhum problema estrutural que o ponha atrás dos outros. Em termos de localização geográfica até é melhor do que a Irlanda. Não é uma ilha, é uma península.
Apesar de sermos um país periférico…
Portugal não é um pequeno país. É uma média potência mundial de ligação aos vários continentes, nomeadamente com os países de expressão portuguesa que são determinantes, como o Brasil, Angola, Moçambique, etc. Tem ligação à Ásia. Depois temos um sistema educativo forte, até temos uma indústria – como a metalomecânica pesada – mais preparada e mais consistente do que a irlandesa. Temos infraestruturas, transportes, temos atração turística. Escrevi um artigo no Público, em 1990, em que dizia que Portugal podia ser a Califórnia da Europa. Agora apareceu um título na Visão a dizer o mesmo, ao que achei muita piada. Costumo ir à Ericeira, muitas vezes, porque tenho lá alguns amigos com quem gosto muito de ir à Ribeira de Ilhas almoçar. Tenho um fetiche pelo restaurante e acho que aquela zona parece a Califórnia.
Portugal tem muitas características semelhantes à Califórnia e eu conheço a Califórnia desde miúdo: o clima, o mar, daí o surf. A água também é fria como na Califórnia e somos um país friendly. Tornámo-nos hoje num país aberto, tolerante, cool, com diversão. Não é por acaso que Silicon Valley é na Califórnia. Não é por acaso que a Califórnia foi o berço dos movimentos hippies dos anos 60, da música, do rock and roll. A ideia de livre empreendedor e da criatividade está muito ligada a isso. Temos um clima excecional, temos cidades muito agradáveis hoje para se viver a nível global. Lisboa e Porto são hoje cidades competitivas a nível internacional. Portanto, Portugal tem capacidade de atração de inteligências, de empreendedores, de cientistas, de académicos e de empresários. Estamos na União Europeia, mas também temos um pé global noutros países.
Então o que é que nos falta? Ambição?
Para já ambição, mas isso é um problema estrutural português, que nos acompanha ao longo dos séculos. Às vezes, parece que os portugueses têm medo da ambição, têm medo de falhar. Ter ambição significa querer sempre algo melhor e mais e quando se falha tem de se saber cair e levantar outra vez.
É a tal ideia de tentativa e erro…
Tentativa e erro e tentar tirar a palavra culpa do nosso dicionário. Temos de ter responsabilidade, perceber que é humano cometer erros. Ou seja, é preciso ter ambição para sermos dos melhores da Europa. Durante um congresso que foi organizado em várias cidades – Lisboa, Porto, Coimbra –, tivemos vários convidados estrangeiros e lembro-me de um israelita que foi o conselheiro científico do Governo de Israel durante muitos anos e foi o pai da ‘startup nation’ que é hoje Israel, das indústrias tecnológicas, uma estratégia que vem de há 20 anos. E ele fez uma pergunta: ‘Não percebo como é que Portugal não é o Silicon Valley da Europa? Tem as melhores condições da Europa. Não é a Irlanda, nem a Holanda, mas também ninguém quer ir viver para Frankfurt, nem para Roterdão. Preferem vir para aqui. Têm condições extraordinárias, mas têm de ter outras”. E foi isso que procurámos detalhar nestes grupos de trabalho, em que mais de 200 pessoas estiveram a trabalhar para identificar o que nos falta. A justiça tem de ser mais rápida, mais célere, mais como a medicina, ou seja, mais do século atual. Precisamos também de uma reforma do sistema político. A educação também é importante. Mas nenhuma delas é essencial. São todas importantes ao mesmo tempo.
São várias áreas que têm de convergir umas com as outras?
São precisas todas, mas também é preciso perceber que não vamos conseguir fazer todas. Se fizermos a maioria delas já é bastante positivo. Vamos falhar? Faz parte. Agora é preciso ambicionar muito para ter alguma coisa. Se ambiciona só alguma coisa vai ter poucochinho. Isto também é uma questão de atitude. A educação, por exemplo, tem de arrancar aos três anos, é essencial o pré-primário. Os dinamarqueses – também aprendi isso no congresso – começaram a fazer isso há cem anos, ou seja, perceberam há cem anos que as creches e o pré-escolar eram vitais. O ascensor social que nós não temos começa aí nas oportunidades que as crianças têm. No tempo em que vivemos, para mim isso é chave, as crianças que nascem em Freixo de Espada à Cinta ou no Restelo, para pôr assim dois extremos, devem ter acesso aos mesmos meios digitais. Não é só terem creche, têm que a ter creche, mas também têm que ter computador, iPhone, tudo o que tem um bebé das elites portuguesas que vive nas melhores cidades tem.
E essas diferenças tornaram-se mais evidentes durante a pandemia…
O acesso hoje a ferramentas digitais é central. Começa logo ali e depois no ensino superior que faz a ligação das empresas às universidades. Qual é a ideia? É existirem dois sentidos, não é só haver doutorados nas empresas, claro tem de haver, mas não nos podemos esquecer que temos ainda muitos milhares de empresários que não têm formação. É preciso trazer gente das universidades para as empresas, mas também é preciso pôr empresários que, às vezes, não têm estudos, nem cursos, a dar aulas nas universidades, porque apesar da falta de formação conseguiram fazer grandes empresas. É preciso ter essa gente no terreno.
Para terem acesso a casos práticos…
Exatamente. Não pode ser só teoria. Precisamos que os jovens convivam com empresários de sucesso para verem como é possível fazer.
Casos como o de Belmiro?
Sim e de tantos outros. Há imensos em Portugal, felizmente há imensos self-made men. Por exemplo, Mário Ferreira, era empregado de paquetes, de barcos de turismo e fez-se um grande empresário. Essa gente tem de dar aulas, tem de explicar como é que é possível, quase do nada fazer algo. Isto é muito importante. No entanto, temos muita dificuldade em fazer isso porque as universidades – sou professor e sei do que falo – são muito fechadas. Têm muita dificuldade em convidar outros para ensinar. As universidades têm de se abrir. E depois há outra coisa, que me farto de falar e ficam sempre muito incomodados, que é a questão da fiscalidade. Portugal tem de ter uma fiscalidade atrativa.
Como a Irlanda?
Sim, mas já não ambiciono tanto. Aí até sou mais comedido. O livro aponta uma meta: termos todos os impostos mais baixos que a Espanha, em pelo menos 1%, mas em todos os impostos: IRC, IVA e IRS. Porquê? Porque é o nosso competidor direto. Se competimos com Espanha, se queremos atrair investimento para Portugal – mas não é só um investimento também quero inteligências, quero quadros – então temos de ser mais competitivos. Os quadros são IRS, as pessoas são IRS. O investimento é IRC. Claro que temos investimentos que vieram para Portugal e que negoceiam com a AICEP isenções fiscais, mas o quero é transparência. Isso é o que também faz falta a Portugal: transparência e igualdade para todos. É preferível baixar o IRC e ser para todos: portugueses, estrangeiros, mas que tudo seja feito de forma clarinha, em vez de darem benefícios fiscais que são sempre feitos pela porta do cavalo. E reduzir a carga fiscal para todos. O que os economistas nos dizem é que se Portugal baixasse a carga fiscal de uma forma corajosa, a receita fiscal aumentaria e teríamos um maior crescimento económico. Não há nenhum caso de nenhum país que com menos impostos não tenha crescido economicamente. Isso acontece a todos os países europeus: República Checa, Letónia, Lituânia, todos. Holanda e todos eles têm a nossa dimensão.
Mas há sempre os resistentes que dizem que baixar impostos não alimenta os cofres do Estado….
Isso é conversa do Dr. Salazar. Quando houve o 25 de Abril tinha 16 anos, mas leio muito dessa conversa no Dr. Salazar. Não nos vemos livres disso, mas isto serve para uma certa direita e para uma certa esquerda em Portugal que é muito salazarenta. Nem se apercebem, mas falam como Salazar falava.
Usam argumentos como a dívida, a despesa pública, etc. para evitar essa redução fiscal…
Se baixar a carga fiscal e se houver crescimento económico a receita fiscal aumenta. Aliás, viu-se isso este ano, só com a inflação a receita aumentou. O que é preciso? Uma inflação de crescimento. Este ano temos as duas coisas: inflação e crescimento económico, logo aumentou a receita, isso é inevitável. E mesmo com esta carga fiscal que temos estamos a competir com países que têm uma carga fiscal menor e o capital hoje em dia não tem fronteiras. Só vai para onde tem vantagens. E Portugal tem muitas vantagens: somos dos mais seguros mundo, sem esquecer a boa comida, boa gente, gente formada, boas universidades, bons sistema de ensino, bom sistema de saúde. Apesar de tudo o que se fala, o sistema de saúde é muito bom, muito melhor, até comparativamente com alguns países melhores do que nós na Europa e mais ricos. Agora falta-nos esta redução da carga fiscal. Acho que há uma resistência de preconceito.
Temos agora um Governo de maioria absoluta, mas os anteriores eram apoiados pelos partidos de esquerda. Foi uma oportunidade perdida nesta matéria?
A esquerda mais radical é completamente contra a redução da carga fiscal para as empresas. Têm um preconceito ideológico. Temos em Portugal um problema que vem do tempo medieval e que tem a ver com outras influências que é o problema da inveja. Essa é outra coisa que detetámos e também está no livro. Precisamos de ter empresas maiores, de grandes grupos económicos. E para ganharem escala é preciso que estas empresas tenham muitos lucros e isso em Portugal é complicado, porque isso é um problema dos países pobres. Além da inveja há a tentação de querer nivelar por baixo, quando temos de nivelar por cima.
Ainda agora, os partidos de esquerda sugeriram tributar os lucros extraordinários de algumas empresas. É o caso das petrolíferas, das energéticas, da banca…
Certo, mas isso é uma coisa conjuntural e que outros países europeus têm. Até Inglaterra já fez, mas isto é um problema diferente. Em termos estruturais, temos desde a idade medieval, nos países do sul da Europa católicos, uma certa dificuldade em conviver com o sistema capitalista. Não é por acaso que a tese do Max Weber da ética protestante e do espírito do capitalismo continua a existir, isto é, temos alguma dificuldade em deixar voar quem pode voar e em deixar crescer quem pode crescer porque olhamos para quem tem mais com inveja, em vez de olhar e pensar se aquele tem porque é que não posso querer? É uma questão de trabalhar e de fazer por isso. É preciso ter uma atitude diferente.
Em vez de se aquele tem mais então vamos tributar….
Exatamente. E mais, começou logo com uma aliança entre um Papa e o Rei de França para aniquilar os Templários só porque a coroa francesa e o Papa estavam falidos e precisavam de ir buscar dinheiro. Como os Templários tinham muito foram lá nacionalizar os Templários. Depois até vieram para Portugal e até ganhámos indiretamente com isso. Mas a maneira é sempre essa: se há uns que são muito ricos então vamos lá, com os judeus foi a mesma coisa. A expulsão dos judeus teve muito a ver com isso, porque era onde onde estava o dinheiro e a coroa espanhola percebeu que ali podia ir buscar dinheiro. Temos de passar dessa cultura de tirar a quem tem e fazer o contrário: atrair para cá quem tem, quem quer ter mais e permitir que haja portugueses que tenham mais, que invistam mais e que possam enriquecer em Portugal. Os jovens quadros portugueses saem de Portugal porque vão ganhar mais para o estrangeiro. E porque é que ganham mais? Porque pagam menos IRS. Ainda nas férias estive com a filha de um amigo que está em Madrid e o namorado que também é português está em Zurique e ganham mais porque pagam menos IRS. O ordenado bruto não é muito maior do que aqui, a tributação é que é muito menor. E com isso quero transformar Portugal numa offshore? Não, não quero, mas quero tornar Portugal um país competitivo do ponto de vista fiscal. Já não quero ser a Irlanda, já não digo tanto. Não temos as condições da Irlanda, até porque qualquer americano é neto de um irlandês, e nós apesar de termos muitos açorianos lá não temos os americanos todos a descender de portugueses, como tal, a nossa ligação aos Estados Unidos não é tão grande. É natural que seja mais fácil a Irlanda ir buscar a Microsoft do que vir para Portugal, mas a nossa ligação aos EUA já é grande, aliás os americanos estão-nos a descobrir, como sabemos. Estão a vir para Portugal e a comprar casas. Temos de aproveitar essa capacidade, mas para isso temos de ser atrativos do ponto de vista fiscal. Essa para mim essa é que é a chave e não perceber isto é não perceber nada. Sinceramente é não perceber o essencial da coisa. E depois para que é que serve isto? Precisamente para manter o Estado Social. Trabalho no SNS em dedicação exclusiva há 30 anos, temos um Serviço Nacional de Saúde de qualidade, uma escola pública de qualidade, em que a saúde e o ensino são universais e gratuitos, uma vez que já pagámos os nossos impostos. Quando os nossos filhos precisam têm direito a educação gratuita, porque já pagámos os nossos impostos. Quando estamos doentes também usamos o serviço sem ter pagar. Isso é um avanço civilizacional extraordinário. Mas para tudo isto se manter e para temos uma economia mais robusta precisamos de ter o dobro do PIB. Os valores atuais não chegam, precisamos de ter o triplo e é essa meta que temos de atingir. Não partimos dos valores que tínhamos há uns anos, quando entrámos na União Europeia, em que duplicámos o PIB em dez anos, porque estávamos a partir de um valor muito baixo. Agora dizem-me ‘hoje é muito difícil duplicar o PIB porque já não partimos de baixo, como partiu a República Checa ou a Lituânia’, mas o problema é que eles continuam a crescer. A Irlanda triplicou o PIB com a pandemia e Portugal com a guerra tem vantagens competitivas. Sempre que há uma guerra no centro da Europa, Portugal é um porto de abrigo. Aliás, como se vê: Sines, gasoduto e não preciso de estar a enumerar mais. Hoje em dia, uma fábrica de componentes automóveis, de aviões, ou outra coisa qualquer que estaria a pensar em investir na Lituânia, na Polónia ou na Finlândia se oferecerem Portugal pensam logo que estão mais longe dos mísseis russos. Isto é evidente, mas para isso temos de ter uma política de atração. Precisamos de ter uma indústria de alto valor acrescentado, quando digo indústria estou a falar de metalomecânica pesada, naval, aeronáutica e aeroespacial, etc.
O livro também aponta para a necessidade de existir um mercado de trabalho mais liberalizado…
Sim. Também fala na necessidade de haver uma maior flexibilidade, mas assente num modelo de flexisegurança da social democracia dinamarquesa e sueca. A inspiração da SEDES continua a ser a social democracia, a mesma inspiração que teve na sua fundação, em 1970. Da SEDES nasceu o PPD – Sá Carneiro e grande parte do PPD – e uma parte substancial do PS: António Guterres, Vítor Constâncio, Vera Jardim, João Cravinho. Continuamos a ser fiéis a esse código genético e, como tal, a flexibilização laboral é importante, mas com um Estado social que não deixe ninguém para trás. É preciso ter sempre esse cuidado e esse equilíbrio. É permitir que as empresas andem para a frente, que o país cresça, uma vez que, a rigidez é má conselheira. Hoje o mundo tem de ser rápido e flexível.
Com a troika ainda houve algumas reformas no mercado de trabalho…
Sim, mas o Partido Socialista aguentou-se bem em relação às exigências do PCP e do Bloco. Continuamos a ter alguma inflexibilidade, mas esse não é o ponto chave. Batalho na educação, em políticas públicas para que as empresas criem emprego, que se juntem e criem dimensão. Temos de ter pequenas e médias empresas que são a base do emprego, mas depois tem de existir grandes empresas e criar mecanismos que permitam que os pequenos se juntem em grandes.
E na segurança social? A SEDES propõe acabar com o atual modelo em vigor?
Aí há dúvidas dentro da SEDES. Temos um grupo de trabalho que defende essa ideia. É um caminho que ainda está no início e vamos fazer debates sobre isso. O que apontam é o modelo sueco, mas como a SEDES não é um partido, cada grupo de trabalho escreveu com total liberdade total e pessoalmente não tenho que concordar com tudo. Concordo com umas coisas, aliás, concordo com a maioria, mas não tem de um haver consenso sobre tudo. Mas subscrevo muitas das propostas.
É o caso da carga fiscal?
Sim e também na área da defesa, em que o grupo de trabalho abordou uma questão muito importante, em que defende que é preciso aumentar a despesa na defesa, o que considero fundamental. Portugal é uma potência marítima e o investimento nas Forças Armadas é fundamental. Defendo a ideia de haver um serviço cívico para que os jovens, aos 18 anos, tenham um contacto com as Forças Armadas. Não se trata de um serviço militar obrigatório, mas de um modelo também inspirado nos nórdicos, em que durante um ano fazem esse serviço. Até pode ser feito em conjunto com a vida universitária, por exemplo, porque é possível conciliar as duas coisas. Também não tem de ser um ano, pode até ser seis ou três meses, mas os jovens têm de contactar durante algum tempo com o que é o serviço cívico de ser militar.
Com a guerra, muitos defenderam a ideia de retomar o serviço militar obrigatório…
Mas não é preciso. Se todos estiverem em contacto com as Forças Armadas acredito que haverá mais voluntários. É uma maneira também de atrair os jovens para as Forças Armadas. Mas é preciso, de facto, fortalecê-las e o nosso grupo da defesa escreveu um texto muito atual antes da guerra. Até parecia que estavam a adivinhar.
Voltando à economia. A taxa de inflação é para se manter e há uma pressão muito grande para o Governo apresentar medidas compensatórias. O que seria desejável?
Prefiro sempre medidas fiscais a medidas dirigidas. O problema é que a inflação atinge mais os mais pobres, que pagam menos impostos. Seria preciso, pelo menos, durante um curto período de tempo diminuir bastante o IVA sobre alguns produtos que são essenciais, como a alimentação e a energia. Tentaria primeiro apostar na via fiscal porque é mais transparente e é igual para todos. A inflação é um problema e esta questão da guerra é gravíssima e afeta-nos a todos. Mas Portugal tem de pensar nas oportunidades. Por exemplo, no caso da energia, a Península Ibérica está melhor nas renováveis. Portugal está melhor no vento e Espanha melhor no sol então temos de acelerar a solar. Não é só a nível industrial com grandes extensões de painéis solares, mas também nas casas das pessoas. Por exemplo, o hospital de Santa Maria já tem painéis solares, o que faz baixar a fatura energética brutalmente. Todas as empresas em Portugal, todas as instituições, escolas, hospitais e habitações deviam ter painéis solares. Todas as pessoas deviam ter painéis solares, nomeadamente os mais pobres, mas que não podem porque não têm dinheiro para isso, mais aí é que deveria haver apoios do Estado para pôr painéis solares nos telhados de cada português, para torná-los também produtores de eletricidade. Isso daria lugar a uma economia brutal e uma economia verde num sentido positivo da tal sustentabilidade.
Mas isso não iria baralhar as “contas certas” do Governo?
Não, baralha é as contas de algumas empresas. Tenho dúvidas que as empresas de eletricidade queiram que cada português seja uma pequenina EDP. Acho muito estranho como é que um país com tanto sol não tenha painéis solares nos telhados. Só há no Restelo, nos mais ricos? Os mais pobres não têm porquê?
Porque não têm dinheiro para investir…
Mas mais do que lhes baixar a conta da luz era pôr painéis solares nas casas. É como aquele provérbio chinês: mais do que dar o peixe é dar a cana para pescar. Devíamos aproveitar para que cada telhado português tivesse painéis solares, porque temos muito sol. E além disso apostarmos no que está em cima da mesa que é ter energia nuclear na Península Ibérica.
É um tema tabu…
Na SEDES não há temas tabus. Falamos do que temos de falar e até vamos fazer uma conferência sobre esse tema, onde vamos pôr tudo em cima da mesa. Como podemos desenvolver o solar, a eólica, a água? Vamos ter de continuar a ter barragens até porque temos um problema da água e temos de aumentar o número de barragens não só para consumo, mas também para a produção elétrica. E não nos podemos esquecer que o nuclear está acordo de Paris, mas isso tem de ser feito com Espanha. Aliás, a política da água, da energia e dos transportes tem de ser feita em acordo com Espanha. A questão dos transportes é fundamental. Discute-se o aeroporto, mas o país precisa é de ter mais ferrovia, mais comboio suburbano, interurbano e já agora alta velocidade.
A alta velocidade nunca sai do papel…
Mas tem de existir, caso contrário Portugal fica como se estivesse numa ilha e ficamos como a Irlanda, mas esta não tem porque é uma ilha. A alta velocidade chega à fronteira portuguesa, em que Espanha tem essas ligações por todo lado e nós não temos. É um desastre. Temos de ter a alta velocidade que ligue Corunha a Faro, não é Porto a Lisboa. Se ligar Corunha a Faro e a Sevilha em L temos o Porto, a capital do noroeste da Península que atrai Galiza para o norte de Portugal e temos o Algarve a atrair a Andaluzia, o que também é vantajoso. O Algarve tem instalações turísticas extraordinárias que não tem a Andaluzia. Mas para isso precisamos de ter um comboio de alta velocidade para depois ligar obviamente Lisboa, Madrid, Porto, Salamanca. A questão dos transportes é absolutamente central, assim como a da ferrovia. Há fundos europeus para isso, mas também é preciso fazer parcerias público privadas, como evidente. Tem de se meter os privados nisso, não têm de ser empresas do Estado a gerir o comboio de alta velocidade, como é óbvio. Não é assim em França porque é que tem de ser assim aqui?
Há uma tendência para que seja gerido pelo Estado…
Mas não deve ser, o que tem que ser do Estado são as linhas ferroviárias. Depois a exploração deve ser feita por privados. É o que acontece com a Fertagus na ponte sobre o Tejo e que corre bem.
Vê-se pelo caso da TAP que foi privatizada e depois o Governo socialista reverteu o processo…
Em termos teóricos, acho que as companhias de aviação não têm de ser do Estado, nem as de comboios, nem o metro. Têm de funcionar como transportes públicos, mas em sistema de parcerias público-privadas ou privados com contratos públicos. O Estado tem de ser forte em regular. Esse é o caminho que temos de seguir. O Estado tem de ser mais regulador e menos prestador. Isso é que é a força do Estado, que não tem atualmente. Nesse cenário fica mais livre financeiramente e consegue regular melhor. Mas está a falar com um socialista liberal.
Acha que o PRR devia ter sido usado para os projetos de da alta velocidade?
A verba já foi toda distribuída. Não estou lá dentro, nem conheço os dossiês e a negociações com a União Europeia. Mas para mim havia duas áreas fundamentais para os fundos europeus: ferrovia de alta velocidade/ ferrovia interurbana e painéis solares. Isso é que é investimento público, não é uma despesa. Depois há um terceiro, que é a questão da água. Vamos ter de dessalinizar, temos de ter transvases do Norte para Sul. Não quer dizer que essa água seja para beber, mas pode ser usada em jardins, em campos de golfe, para lavar os carros. Mas sempre houve estes fundos públicos e continuarão a haver. No entanto, é preciso ter uma estratégia e saber o que é prioritário para Portugal
Mas esta é que é a famosa bazuca…
Acho que o próximo fundo comunitário já não vai ser uma bazuca, vai ser um míssil hipersónico. Portugal tem de saber aproveitar esse dinheiro para aquilo que necessita. Acho que a questão energética, a competitividade energética e os transportes são vitais para qualquer país. Se tiver alta velocidade vai ter menos aeroportos e vai andar menos de avião.
Como socialista como viu a polémica em torno novo aeroporto?
Como socialista liberal – há socialistas conservadores, católicos e liberais que, infelizmente, são poucos – acho que tem de haver outro aeroporto. E se houvesse um comboio de alta velocidade Beja/Lisboa estaríamos a falar de uma distância de 40 minutos. Podíamos ter em Beja aviões de longo curso, o que já libertaria alguns aviões de Lisboa. Daí dizer que é prioritário a questão da alta velocidade. Mas não tenho a resistência de ser do contra, se houver privados que façam o aeroporto e parece que o grupo privado francês que gere a ANA quer fazer o aeroporto e gastar o dinheiro então porque é que não o devem fazer? Se esse dinheiro não sai dos meus impostos, para mim, encantado da vida. Façam um segundo aeroporto no Montijo ou onde quiserem.
Mas acha normal o ministro das Infraestruturas ter avançado com uma solução que foi depois recusada pelo primeiro-ministro?
Isso já é outra conversa. Isso já é um problema de comunicação entre o ministro e o primeiro-ministro, mas não me quero pronunciar.
E qual deles acha que ficou mais fragilizado?
Acho que com essas coisas toda a gente perde, mas isso já passou. Nessas polémicas não quero entrar. Tenho uma missão na SEDES que é pensar no país a médio prazo. Uma coisa que a malta não gosta. Não quer dizer que não tenha opinião, claro que tenho.
Disse no final do ano passado que o PSD tivesse um líder carismático, o Chega desapareceria. Luís Montenegro é esse líder carismático?
Os líderes carismáticos só se veem quando ganham eleições e isso é uma análise baseada na história. A direita portuguesa, mas também a europeia é uma direita napoleónica. Vive muito de lideranças carismáticas. Quando não têm líderes carismáticos, normalmente são engolidos. O CDS não era um partidozinho e foi engolido.
Enquanto médico como vê estas polémicas na saúde?
A seguir a uma pandemia que abalou de tal maneira o sistema de saúde é evidente que iria haver disfunções. Acho que a pandemia afetou-nos a todos psicologicamente. E estou a falar de todos os portugueses e os médicos são pessoas como os outros. Por exemplo, neste verão todos precisámos de ir passar férias ao Algarve. E também houve aqui um outro fenómeno, em que mal houve calor e com uns feriados pelo meio, como foi o 10 de junho – por acaso até fiquei a trabalhar a corrigir o livro da SEDES – foram todos de férias. Toda a gente quis ir de férias, percebo isso, é a natureza humana. E não aconteceu só com os médicos. No aeroporto de Lisboa, no mesmo fim de semana, não havia pessoas do SEF para ver os passaportes porque tinham ido de férias. Todos meteram férias na mesma altura e é muito difícil aos chefes, aos diretores impedirem isso, Aqui também tive essa dificuldade, mas eu fiquei. Além disso, o sistema de saúde em si mesmo, passou e ainda está a atravessar um grande stresse. Temos de ter um Serviço Nacional de Saúde do século XXI, adaptados ao tempo que temos hoje. Tive o o privilégio de ser muito amigo e muito próximo de António Arnaut que foi o fundador do SNS e a sua ideia era que todos tivessem acesso a cuidados de saúde, ou seja, que fosse universal e gratuito. Isto é todos pagamos os nossos impostos, todos somos bons cidadãos e cumpridores e quando precisamos de um sistema de saúde ele tem de estar lá e não temos de pagar nada, independentemente de sermos ricos ou pobres. O que é que se passa hoje? As pessoas não são as mesmas dos anos 70. Hoje vivemos na era digital, vivemos na era da livre escolha, em que as pessoas têm mais informação do que tinham e o meu doente tem mais informação do que um doente tinha há 20 ou 30 anos, que é o Dr. Google e alguma dessa informação está corretíssima. Então se as pessoas têm mais informação e conhecimento também querem escolher. O que é que isto significa? Que temos de adaptar o sistema de saúde todo: público, privado, social, para que os cidadãos possam ter esse direito de escolha, mas que, ao mesmo tempo, o Estado não vá à falência. Isto é, o Serviço Nacional de Saúde Público tem de ser gerido de uma maneira profissional, uma vez que, a despesa não é ilimitada e, ainda por cima, temos outro problema que é o facto de hoje vivermos mais.
Mas atualmente o serviço de saúde vive tempos atribulados…
Isso tem a ver com a gestão e com o facto de o público ter perdido atratividade para o privado, porque em Portugal o setor privado cresceu muito. Dou-lhe um ótimo exemplo: Estamos aqui e temos o Santa Maria, os Lusíadas e o Hospital da Luz, na mesma avenida. Então o que é que acontece? Todos os portugueses têm direito a vir a Santa Maria, mesmo que sejam de qualquer sítio do país, mas à Luz ou aos Lusíadas só pode ir ou se tiver dinheiro – e aí não são todos os portugueses, já que só uma minoria é que tem dinheiro para pagar do seu bolso – e depois outra minoria que têm seguros privados de saúde ou que têm seguros públicos. Os funcionários públicos têm ADSE e podem ir aos privados. O que é que isso significa? Há quem possa ir aos três, mas há uma metade que não tem seguro, não têm ADSE e não tem dinheiro e só tem hipótese de vir aqui. Isto já mostra uma desigualdade. Portanto, os mais ricos, os que têm maior capacidade financeira têm hipótese de ir a qualquer lado e podem escolher. Mas também mostra que, quando têm um AVC ou um enfarte do miocárdio recorrem a Santa Maria, quando a coisa é mais ligeira, como ter um filho ou uma hérnia vão para os privados. Isto gera um desequilíbrio e tem de se criar uma solução para existir a livre escolha. Claro que o sistema público tem de melhorar a sua gestão e pagar melhor aos que se dedicam exclusivamente ao sistema público. É muito difícil encontrar uma solução.
O Bastonário dos Médicos diz já foi ultrapassada a linha vermelha…
O Bastonário está no nosso grupo de trabalho, temos todos aqueles que sabem do assunto. O diagnóstico está feito, é preciso melhorar, mas sem rutura. É preciso fazer mudanças graduais. E essas mudanças têm de ser feitas com os profissionais, não é possível mudar se for contra os médicos, contra os enfermeiros. Tem de haver uma adesão por parte dos que cá trabalham e com o conhecimento dos que estão no terreno e isso inclui os administradores hospitalares. O poder político tem de ser capaz de sentar toda esta gente toda na mesa e isso inclui os atores privados e sociais, como as Misericórdias, e encontrar um entendimento para que melhore o sistema público. Claro que é difícil, também a França está com um problema muito complicado. A Inglaterra também. Todos os países estão a enfrentar este berbicacho. E Portugal tem muito mais sistema privado do que tem Inglaterra ou Espanha.
Concorda com a recondução da ministra da Saúde depois do desgaste que teve durante a pandemia…
É muito difícil ser ministro da Saúde em Portugal porque apanha-se pancada de qualquer maneira. Todos apanharam. Um ministro da Saúde é uma espécie de saco de pancada. Marta Temido se tivesse sido egoísta teria saído, poderia ter pedido para não continuar, porque saiu bem com a pandemia, apesar de ter sido muito esgotante, muito violento. Mas ela é nova, é enérgica, acha que é possível e então está com vontade. Sou um bocado suspeito porque tenho boas relações com ela e gosto dela .Já disse isso várias vezes: os lugares mais difíceis da política em Portugal é o líder da oposição e o ministro da Saúde. Não me lembro de nenhum ministro da Saúde que saísse bem e alguns são notáveis, mas só depois de saírem é que são bem tratados. O mesmo aconteceu com Adalberto Campos Fernandes que, ainda assim, foi o menos maltratado. Mas todos foram maltratados, como o professor Correia de Campos que é da SEDES e a quem muito o sistema de saúde muito lhe deve. Também Maria de Belém, Leonor Beleza. É muito difícil encontrar alguém que saía dali bem.
O caso de Leonor Beleza foi mais polémico…
Pois foi, mas também foi um processo muito injusto. A saúde é uma área muito difícil, mas também tem uma razão de ser: é uma área que tem a ver com a vida e com a morte. Não é para brincar. É um assunto sério, em que as pessoas, como é obvio reagem com o coração porque tem a ver com o sofrimento. O caso da obstetrícia, claro que é grave fechar as maternidades, mas apesar de tudo, nem é o mais greve. A maior consequência da pandemia, no geral não é só um problema português, é o problema da oncologia. São os atrasos, são os doentes com cancro que não puderam ser operados, em que agora estamos a recuperar e a operar. Felizmente não foram fechados esses serviços. Mas também acho que, em Portugal damos demasiada importância mediática à saúde. Somos um bocadinho hipocondríacos. É excessivo em relação a outros países. Quem aterrar em Portugal deve pensar que somos um país de doentes, porque se fala demasiado na saúde, mas sempre foi assim.