Mikhail Gorbachov não será homenageado na Festa do Avante!, neste fim de semana, na Quinta da Atalaia, no Seixal. Porque Gorbachov, uma das figuras maiores do século XX, foi quem foi. E o PCP não perdoa.
A queda do muro de Berlim é um dos grandes marcos da História da Humanidade a que a minha geração teve o privilégio de assistir.
Não pela desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – que Putin ainda sonha em recuperar num delírio em que, para além dos seus mais acérrimos seguidores e beneficiários em Moscovo e arredores, talvez só o Partido Comunista Português ainda acredite –, pelo fim do Pacto de Varsóvia e da cortina de ferro que separava Leste e Ocidente ou pela negação da utopia do homem novo comunista. Mas porque, com o muro, caiu também a máscara de uma ideologia que alimentou totalitarismos ignóbeis, que condenaram povos à miséria económica, social e humana.
Mikhail Gorbachov, com seus planos reformistas da Glasnost e da Perestroika, foi o grande obreiro dessa abertura do mundo soviético à liberdade e à democracia, que culminaria no derrube do muro de Berlim e no desabamento de toda a arquitetura soviética e comunista.
Por isso, Gorbachov é tão notável. Um homem de outra dimensão e, sobretudo, de coragem, que ousou enfrentar e logrou vencer o Politburo e a Nomenklatura do Partido e do Estado.
Daquele dia inesquecível de novembro de 1989 em que os alemães das então República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã celebraram o reencontro e começaram a desfazer o muro ao outubro do ano seguinte da reunificação da Alemanha, à desagregação da URSS, ao fim da guerra fria e da cortina de ferro foi um ápice. Os alicerces do mundo comunista desabaram como castelo de cartas.
Com a queda do muro, triunfou a democracia, a liberdade, os direitos humanos, os valores. Mikhail Gorbachov deu, assim, uma nova esperança aos povos do Leste europeu e ao mundo. Que se expandiu ao longo de toda a última década do século e milénio passado.
Infelizmente, o fim da guerra fria e da corrida ao armamento e a inexistência de dois blocos que se balanceavam em equilíbrios aparentes, não se traduziu no reforço da paz e da prosperidade no mundo, com a afirmação de valores, o reforço da família como sustentáculo da sociedade e o respeito pelos direitos humanos, individuais e coletivos.
Ao longo dos últimos anos, a crise das ideologias e a perda ou vacuidade de referências acabou por traduzir-se numa crise maior de valores, quando não mesmo num ataque desenfreado aos que restavam e alicerçavam a esperança numa sociedade melhor.
Se a geopolítica tratou rapidamente de estabelecer os seus mecanismos de compensação e de estabelecer novos condicionalismos bi e multilaterais na política internacional – com a emergência da China enquanto grande potência mundial diretamente concorrente com os Estados Unidos da América –, a crise da ética e da moral e a sobreposição dos interesses das minorias aos das maiorias desfizeram rapidamente a esperança num futuro melhor.
A sociedade – à escala global – não progrediu com mais liberdade e mais democracia. Pelo contrário. Tem-se servido delas para abalar os seus próprios pressupostos. O que é um risco enorme, desde logo para a própria democracia e para a liberdade.
A igualdade como princípio absoluto nunca foi democrática. Nem a liberdade. Há limites. Tem de haver limites. É como os muros: nem todos são para derrubar. Porque é o edifício da Humanidade que pode ficar em causa. E está em causa.
A subversão de valores em marcha acelerada é como uma bola de neve, ou seja, é tanto mais difícil de travar quanto maior for ficando. As crises civilizacionais – que, historicamente, foram momentos de retrocesso – começaram quase todas assim.