Nascido em Dublin em 1952, Pat Cox foi eleito deputado europeu pelos democratas cristãos do Fine Gael em 1989. Ocupou o cargo de presidente do Parlamento Europeu entre 2002 e 2004, ano em que foi distinguido com o Prémio Carlos Magno pelo seu papel no alargamento da União Europeia. Numa entrevista por Zoom, analisa as consequências da invasão russa, pronuncia-se sobre a adesão da Ucrânia à UE e não foge à questão da sobrecarga burocrática nas instituições europeias.
Passaram seis meses e uns dias desde que o exército russo invadiu a Ucrânia. Se estivéssemos a falar há um ano seria difícil acreditar que iríamos assistir a um conflito com esta escala. A jogada de Putin apanhou-o de surpresa?
Fiquei surpreendido. Não estava à espera que Putin revelasse uma atitude tão agressiva. Penso que isto mostra que, ao longo do tempo, o seu gosto pelo risco foi crescendo e a sua ideia do papel da Rússia no mundo se foi tornando mais nítida e acutilante. Há quase um sentimento de imperialismo oitocentista subjacente a esta guerra provocada.
Em princípio, esperar-se-ia que o Presidente russo agisse de uma forma mais racional…
Sim. Eu, pelo menos, não esperava uma invasão declarada de um estado soberano vizinho. Mas já havia, claro, alguns indícios, como a intervenção na Chechénia, assim que Putin assumiu a presidência, ou a operação militar na Geórgia e na Ossétia do Sul em 2008. Mas repito: não esperava uma invasão deste tipo. E penso que, ao desencadeá-la, Putin mudou por completo a geopolítica da Europa. Quanto a mim, este é o acontecimento geopolítico mais significativo do século XXI.
Há quem veja a invasão como uma resposta aos avanços europeus para tirar Kiev da esfera de influência russa. Este ‘aliciamento’, esta tentativa de ocidentalizar a Ucrânia não teve algo de provocação a Putin?
Acho que é muito importante que a Europa e o Ocidente não se voltem para si mesmos à procura de explicações para o motivo que levou o Sr. Putin a adotar esta atitude agressiva. Claro que houve tensões diplomáticas e políticas entre a Rússia e o Ocidente desde o colapso da União Soviética, mas não podem ser usadas como justificação para a agressão brutal à soberania de um estado vizinho. A segunda questão que importa aqui saber é se um estado soberano tem liberdade para escolher o seu próprio rumo. Isto colocou-se a diferentes nações em diferentes momentos. Por exemplo, a Portugal depois de Salazar, a Espanha depois de Franco, à Grécia depois da ditadura dos coronéis.
Fazendo uso da sua soberania, escolheram aderir à União Europeia. Depois da queda do comunismo, vários antigos membros do Pacto de Varsóvia [países da Europa de Leste que obedeciam e estavam sob a ‘proteção’ de Moscovo] também fizeram uso da sua autodeterminação para decidirem onde queriam situar-se enquanto estados soberanos. Isso gerou um grande ressentimento entre os nacionalistas na Rússia, e não há dúvida de que o Sr. Putin acumulou um grande rancor.
De certa forma, talvez veja esta e outras ações militares da última década como uma retaliação. Mas cada uma destas intervenções diz-nos mais sobre a Rússia, o seu nacionalismo, o punho firme do poder centralizado de Putin e dos seus parceiros da elite governante, do que sobre o Ocidente e as escolhas soberanas das nações que se libertaram do que consideravam ser o jugo da opressão soviética. Ninguém perguntou à Polónia, à Hungria, à Checoslováquia, quando foram invadidas em 1941, ou aos estados Bálticos, o que queriam.
No caso dos países da Europa Central e de Leste, acabaram a ser usados como moeda de troca na conferência de Yalta, em 1945, sem ninguém perguntar nada aos próprios povos. Finalmente, quando tiveram uma palavra a dizer sobre como queriam posicionar-se e estruturar-se, viram o seu futuro no espaço Euro-atlântico. Esta opção foi aceite e acomodada com a adesão à União Europeia e, no caso da Europa de Leste, com a adesão à NATO. Tratou-se de um ato de respeito pela soberania destas nações há muito estabelecidas, e que agora voltavam a ser estados independentes. Talvez a elite russa tenha visto esse ato de respeito como uma ofensa. Mas a soberania conta. E não é só para a Rússia.
Parece quase certo que Putin esperava que a guerra fosse curta, que provavelmente pensava que Kiev cairia em poucas semanas e poderia facilmente substituir o governo. Em vez disso, o conflito tem-se arrastado. Na sua opinião, quem beneficia mais com a passagem do tempo?
Parece-me correto observar que o plano original do Sr. Putin era o que toda a gente tem designado como uma blitzkrieg [guerra relâmpago, uma tática muito usada pelos nazis]. Essa blitzkrieg destinava-se a decapitar o poder em Kiev e instalar uma administração-fantoche amiga da Rússia, que convocaria um referendo ou qualquer outro expediente para legitimar uma intervenção ilegítima. A tentativa falhada para tomar Kiev e para substituir o governo foi um importante revés estratégico para o Sr. Putin. E o mesmo se pode dizer das mudanças geopolíticas na região.
Vimos, por exemplo, os dinamarqueses a aprovar num referendo a retirada da clásula que determinava a sua exclusão da Política Comum de Segurança e Defesa. E a decisão da Finlândia e da Suécia de se juntarem à NATO mostra que, embora insista que a Ucrânia nunca deve pertencer à NATO, o Sr. Putin acabou por empurrar a Finlândia nessa direção, juntando um país com uma fronteira 1340 km mais longa do que a da Ucrânia com a Rússia como potencial membro da NATO.
Ou seja, nesse sentido a invasão foi completamente contraproducente.
Isto é uma gigantesca derrota estratégica. Se virmos no prazo mais curto, das próximas semanas e meses, a guerra tem consequências chocantes em termos de tragédia humanitária, de perda de vidas, de feridos, de destruição de infraestruturas. Mas se nos afastarmos um pouco, a guerra é um exercício empírico em que temos duas forças num processo de atrito. Enquanto falamos, por exemplo, está a haver, ao que tudo indica, uma contraofensiva ucraniana no oblast de Kherson. E digo que é um exercício empírico porque, no fim de tudo isto, cada um dos lados terá as suas cartas na mão.
E a batalha territorial, para já, é para ver quem fica com os maiores trunfos – uma ‘boa mão’ ou uma ‘mão aceitável’ com a qual pôr em marcha um processo de negociação pelo menos para um cessar-fogo, ao início. E a minha sensação é que a determinação dos ucranianos de levar isto até ao fim está cada vez mais fortalecida. Uma das consequências políticas desta guerra é que alguma dúvida que pudesse subsistir em relação à tese do Sr. Putin de que os ucranianos não são uma nação está definitivamente morta.
O sacrifício de sangue que o Sr. Putin exigiu a esta geração de ucranianos é agora o renascimento do que será um sentido de nacionalidade ucraniana fortíssimo e sustentado. Vladimir Putin é o principal motor da consciência nacional ucraniana, com esta invasão criou uma determinação e um sentimento que não conseguirá derrubar. Como acabará essa guerra empírica é algo que ainda não sabemos. Mas ficou absolutamente claro que qualquer presunção de uma deriva ucraniana em direção à Rússia morreu no campo de batalha, morreu nos blocos de apartamentos e nos hospitais destruídos. Essa pretensão do grande ensaio publicado por Putin no último verão, de que a Ucrânia não existe e o governo de Kiev é uma conspiração neonazi, pode agradar a Putin e aos seus compinchas, mas vale zero.
Há pouco referiu-se à adesão da Finlândia à NATO. Acha que a entrada deste país e da Suécia é a melhor forma de refrear o apetite expansionista de Putin?
A Suécia manteve uma política de neutralidade ativa ao longo de dois séculos. Por que haveria de querer aderir à NATO? Partia do princípio de que, embora pudessem ser agressivas, a retórica e as ações russas em diferentes lugares nas últimas duas décadas estavam de certa forma contidas. Mas quando o Sr. Putin lançou esta invasão total – ainda que por razões de propaganda interna lhe chame ‘operação militar especial’ – estilhaçou por completo essa ilusão e mostrou com quem estávamos a lidar.
A primeira regra de um sistema de governança global aceitável no pós-Segunda Guerra Mundial é não invadir o território soberano de um estado membro, como aliás está explicitado na Carta das Nações Unidas. E portanto penso que a invasão da Ucrânia funcionou como um toque a rebate para todos.
A Suécia e a Finlândia são os vizinhos na primeira linha – além de o Báltico ser um espaço importante para os russos, onde têm baseada a frota de Kaliningrado – e decidiram que encontrarão mais conforto estratégico dentro da NATO do que se permanecerem isoladas. É preciso ver que temos um acontecimento geopolítico sem precedentes com um regresso ao neoimperialismo que todos julgávamos circunscrito aos livros de história. E estávamos enganados. É por isso que este toque a rebate levou a Finlândia e a Suécia a procurarem conforto numa comunidade de segurança e defesa mais alargada.
Falou-me em trunfos e negociações. Depois das iniciativas falhadas de Macron e Erdogan, pensa que ainda há espaço para uma solução diplomática? Ao mesmo tempo, será que alguém pode acreditar nas garantias dadas por Putin?
Se eu fosse um negociador ucraniano e estivesse a negociar como Sr. Putin um cessar-fogo, ou em última análise uma tentativa de atingir uma paz sustentada, o meu maior receio era que o compromisso representasse uma vírgula, e não um ponto final.
Enquanto o Sr. Putin e a sua forma de nacionalismo agressivo segurarem as rédeas no Kremlin, os ucranianos terão de ser muito cautelosos antes de assumirem que qualquer discussão vai produzir um ponto final e não apenas uma vírgula. O segundo elemento que temos de ter em conta quando falamos sobre um acordo negociado é se o processo tem de ser decidido e liderado pelos próprios ucranianos.
Mas não são eles a parte interessada?
Há muitas circunstâncias externas, como o suprimento de armas ou o abastecimento de munições a partir do exterior, ou até a capacidade dos governos da Europa ou dos Estados Unidos de manter o equilíbrio político, pois temos o custo de vida e a crise dos preços da energia a bater à porta neste inverno. Todos esses são desafios fora do controle da Ucrânia. Mas seja qual for o resultado destes desafios na política internacional, tem de ser a Ucrânia a definir o quais as condições que considera aceitáveis. Impor condições a partir de fora não é uma boa receita para atingir uma paz sustentada. No final terão de ser os políticos ucranianos a decidir na hora das negociações.
Quanto a mim, essa fase ainda não está iminente, mas quando chegar vai ser preciso fazer cedências difíceis. Por vezes as próprias sociedades podem ter divergências internas muito acentuadas acerca do que é ou não aceitável. Por enquanto, penso que a Ucrânia está muito empenhada naquilo a que chamei a ‘guerra empírica’ para ter d fazer o mínimo de cedências e para melhorar as hipóteses de uma paz sustentada a longo prazo. Isso significa, quanto a mim, que no futuro imediato vamos assistir à continuação das hostilidades.
À medida que nos aproximamos do inverno, intensificam-se as preocupações com o gás na Europa. Devemos apontar o dedo a Angela Merkel pelas suas políticas energéticas que deixaram a Europa à mercê do gás na Europa?
Se voltássemos atrás, não teríamos feito as coisas da mesma maneira e não teríamos chegado a este ponto, certo? Nisso estamos todos de acordo. Mas durante um longo período esta dependência do gás russo mostrou-se uma estratégia de abastecimento fiável. É verdade que nalgumas ocasiões o Sr. Putin tentou usar o gás, ou o preço do gás, como arma. Mas de uma forma geral as linhas de abastecimento foram asseguradas mesmo em períodos de tensão política ou diplomática.
Sem dúvida a continuidade desta política, em particular com o Nord Stream 2 [gasoduto que atravessa o Báltico e alimenta a Alemanha com gás natural russo, duplicando assim o volume de abastecimento do seu ‘irmão’ Nord Stream 1], e o aprofundar da dependência por Angela Merkel retrospetivamente vão ser vistos como um disparate estratégico. Mas Merkel herdou um sistema que já estava bem cimentado.
A política americana para a antiga República Federal Alemã [Alemanha Ocidental], quando a Alemanha ainda estava dividida, procurava sempre desenvolver e manter tão aberta quanto possível a porta com Moscovo. E depois da queda do Muro de Berlim e da implosão da União Soviética, sucessivos chanceleres alemães, incluindo, obviamente, Gerhard Schroeder [que depois de sair do poder assumiu um cargo na Gazprom] e outros, já tinham adoptado completamente essa via.
A política de Merkel foi de continuidade com o aumento da dependência trazido pelo projeto do Nord Stream 2. E claramente, aqui chegados, colocou-se à Alemanha e a outros países o problema importantíssimo da transição energética, que neste período vai ser muito desafiante. Mas a transição acabará por ser feita e a dependência da Europa de combustíveis fósseis vai diminuir, provavelmente até ser reduzida a zero. Devemos ter presente, claro, que a Alemanha não é o único país europeu dependente do gás russo. Alguns dos estados da Europa Central e de Leste têm um nível de dependência muito maior.
O caso mais extremo é o da Hungria, e a Itália também tem está muito dependente. Para todos os que estão nessa situação, esta crise geopolítica, como a crise de segurança de que falámos antes, é um toque a rebate. E, dado o valor que tudo isto representa para a economia russa e para o sustento do Sr. Putin e da sua elite no poder, a escolha europeia de diminuir este abastecimento e esta dependência ao longo do tempo representa, a médio e longo prazo, um alto custo estratégico, económico e político que o Sr. Putin vai ter de pagar por esta invasão.
Quanto ao ónus da transição energética, penso que se vai fazer sentir sobretudo na Europa neste inverno e talvez no próximo. E ainda não sabemos quais serão os seus efeitos ao nível da política doméstica dos diferentes estados-membros.
Durão Barroso, o antigo presidente da Comissão Europeia, disse há pouco tempo que a Ucrânia não está preparada para aderir à UE, uma vez que não cumpre muitos dos critérios de Copenhaga. Acha que conferir ao país o estatuto de candidato foi uma boa decisão?
Esse estatuto foi solicitado pela Ucrânia num momento em que vivia uma crise extraordinária. A invasão russa foi um insulto ultrajante que exigia um gesto de solidariedade. E penso que as instituições europeias, ao fazerem esse gesto, tomaram a decisão correta. Mas a decisão de conceder o estatuto de candidato não deve ser confundida com uma adesão rápida à União Europeia. Não sei qual será o prazo, mas os critérios de Copenhaga e toda a dimensão muito técnica do acquis communautaire [acervo comunitário, conjunto de legislação que «constitui a base comum de direitos e obrigações que vinculam todos os Estados-Membros» (Wikipedia)], que se estende por 30 capítulos, são algo complexo.
A Ucrânia estará preparada para cumprir alguns dos requisitos, através do Acordo de Associação e do Acordo para a Zona de Comércio Livre Abrangente e Aprofundado, que já está a vigorar. Mas é um processo muito complexo e a partir do momento em que a paz – no sentido, pelo menos, de não estar em guerra – chegar à Ucrânia, e o processo de reconstrução se iniciar e o diálogo se intensificar, todos estes assuntos terão de ser discutidos, trabalhados ao pormenor. Acontece que já antes da guerra a Ucrânia estava longe de cumprir os critérios de Copenhaga.
Podíamos ter dito: ‘Bom, temos todos estes critérios para cumprir, por isso a nossa resposta, neste momento de grande angústia, é não estamos interessados na vossa adesão. Voltem mais tarde quando tiverem resolvido a questão da guerra e nessa altura logo se vê’. Penso que isto teria passado uma mensagem errada. A Ucrânia está a sangrar, as pessoas estão a morrer, a economia está de rastos. E estes sinais – pois é disso que se trata, a substância vem depois – são importantes, porque significam estender a mão a uma nação angustiada e dizer aos seus líderes e ao seu povo que os aceitamos, que eles podem ser como nós, um de nós, embora haja um percurso a ser feito.
Nesse sentido, penso que em termos estratégicos conceder à Ucrânia o estatuto de candidato foi uma boa decisão. Admito que o caminho está cheio de buracos e obstáculos e há muito trabalho para fazer. Mas foi uma decisão importante e que, a seu tempo, é passível de ser posta em prática.
E não pode criar assimetrias ou desequilíbrios na União Europeia?
Os condicionalismos continuam a ser válidos. O que é a União Europeia? Esta é a questão central: somos uma comunidade de compromisso voluntário. Muitos ditadores e impérios tentaram criar uma ideia de Europa ao longo dos séculos. O espaço da União Europeia, onde hoje vivemos, não foi criado com uma espingarda apontada nem sob o gume de uma espada imperial. Foi criado pela vontade livre de povos livres e soberanos. E, de facto, embora eu lamente profundamente a saída do Reino Unido, o Brexit é a prova viva da natureza voluntária desse compromisso pois, tal como podemos candidatar-nos a entrar, também podemos escolher sair. A Europa não é um espaço de coação ditatorial ou imperial. É um espaço de escolhas livres.
E, nesse sentido, se a Ucrânia, o seu governo e o seu povo quiserem fazer essa escolha em liberdade, será algo muito dentro do espírito europeu. E é exatamente o contrário desta linha geopolítica de rivalidades, poderes esmagadores e neoimperialismo. Por isso, quando Zelensky e o Verkhovna Rada, o parlamento de Kiev, solicitaram o estatuto de candidato para a Ucrânia, estavam a dizer-nos: ‘Queremos fazer parte deste projeto baseado em valores melhores do que os que nos trouxeram à situação que vivemos’. Considero que a Europa fez bem em aceitar, em vez de ficar presa a condicionalismos rígidos – que não desaparecem, mas não eram a questão mais importante. E juntos, no futuro, vamos trabalhar para dar resposta às aspirações dos ucranianos.
Falou da complexidade, da demora e dos vários passos do processo para a adesão da Ucrânia à União. Muitas pessoas pensam que as instituições europeias estão sobrecarregadas pela burocracia, com o desperdício de tempo e dinheiro que isso implica. De acordo com a sua experiência, acha que esta ideia corresponde ao que acontece em Bruxelas?
Quando era um jovem membro do Parlamento Europeu, trabalhámos arduamente nas várias diretivas para criar o Mercado Único. Era uma tarefa interminável, passávamos horas e horas a discutir nos comités, tínhamos de ouvir diferentes grupos de interesse, de lidar com as propostas da Comissão Europeia, e os estados-membros tinham de fazer o mesmo ao nível dos conselhos de ministros. E sim, foi complicado.
E quanto mais estados temos, mais complicado se torna porque temos de construir consensos. Mas no final, toda essa complexidade permitia que, quando tínhamos uma diretiva, fosse qual fosse o produto que você tinha no seu mercado interno, podia vendê-lo em qualquer um dos estados-membros.
As pessoas podiam dizer: ‘Aqui está esta espécie de floresta da regulação europeia’. Mas é uma floresta menor do que as 27 florestas individuais de cada um dos estados, que foram abatidas para se criar esta floresta única. Eu vivo num pequeno estado da periferia da Europa [Irlanda]. Mas quando o Brexit e os seus efeitos na nossa ilha e na fronteira com a Irlanda do Norte se tornaram uma enorme preocupação para nós, a Europa assumiu essas preocupações, embora tenhamos uma população muito pequena e representemos uma pequena fração do PIB da União. Nesta questão, não éramos um pequeno espaço isolado. E isso deveu-se a sermos um membro desse espaço maior.
Ou seja, a União Europeia também ajuda a enfrentar e a resolver problemas individuais dos estados?
Se olharmos para a primeira metade do século XX, a Europa era uma zona de tragédia. Dezenas de milhões de europeus morreram em guerras. O continente ficou devastado. E os dois grandes elementos que definiram o pós-guerra foram a Pax Americana – através da adesão à NATO – e o surgimento da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que acabaria por transformar-se na União Europeia de hoje.
O que isso criou foi um modus vivendi entre poderes que antes se guerreavam, uma reconciliação entre poderes imperiais ou fascistas, que passaram a viver em paz – em parte Pax Americana.
A Europa foi o instrumento dessa paz sustentada, através desse processo de reconciliação entre estados e do consentimento em ceder alguma soberania e assim criar interesses comuns, graças aos quais a guerra se tornou impensável. Para a geração fundadora, o processo de integração europeia era um processo de paz. Mas à medida que essa geração foi desaparecendo, foram surgindo todos estes assuntos de que estamos a falar e a burocracia, os mercados, a regulação tornaram-se a visão dominante do que é a Europa. O Sr. Putin, infelizmente, fez-nos voltar a ter a noção da importância da paz e da reconciliação, e de que estas são as fundações sobre as quais assenta todo o edifício.
A prosperidade sustentável não é possível sem uma paz sustentável. E por isso Putin, de forma brutal, levou a Europa ao seu ponto de partida, fez-nos pensar: ‘Qual é o je ne sais quoi que constitui a essência do processo europeu?’. Não é a burocracia. O corpo e alma do projeto é manter relações harmoniosas entre estados soberanos dispostos a prescindir de parte da soberania e a trabalhar em conjunto para o bem comum. De certa forma, esta invasão trouxe o renascer do que significa ser europeu e de para que serve realmente a União Europeia.
Mário Soares, o antigo Presidente da República português, costumava recordar que uma vez por mês o Parlamento Europeu se muda de armas e bagagens de Bruxelas para Estrasburgo, o que implicava, na altura, que camiões e camiões andassem de um lado para o outro com milhares de caixotes de documentos que os deputados muitas vezes nem se davam ao trabalho de abrir. Testemunhou esse e outros exemplos de ineficiência das instituições europeias?
Tenho uma grande consideração por Mário Soares, e respeitosamente discordo dessa perspetiva, não dos factos. Os caixotes são levados carregados nos camiões e levados de Bruxelas para Estrasburgo. Isso são factos. No exterior de cada gabinete é colocada um caixote onde cada um coloca os documentos que quer levar. Por isso, se não abriam os caixotes, era porque levavam coisas de que não precisavam.
Quando eu era deputado europeu, sentava-me com as pessoas que trabalhavam comigo e víamos do que é que íamos precisar. Depois disso não tínhamos de nos preocupar mais porque era tudo reunido e entregue à porta do gabinete em Estrasburgo. Assim que lá chegávamos, esvaziávamos a caixa e tínhamos tudo o que precisávamos para trabalhar. O problema, aqui, é como é que se explica isto às pessoas. Como justificar os desperdícios que implica?
Não podiam simplesmente ficar em Bruxelas, em vez de andarem de um lado para o outro?
Isto vem do facto de Estrasburgo, a capital da Alsácia, ter mudado várias vezes de mãos, entre os franceses e alemães, no espaço de poucas décadas. Os alemães invadiram a Alsácia-Lorena em 1871, e voltaram a invadir em 1914, e mais uma vez na Segunda Guerra Mundial, em 1939 e 1940. Estrasburgo era a primeira cidade francesa do lado de lá do Reno e adquiriu um enorme simbolismo.
Devido a esse simbolismo, foi escolhida no pós-guerra como sede do Conselho da Europa e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. E sempre que a assembleia da Comunidade do carvão e do Aço se reunia, fazia-o em Estrasburgo, no edifício do Conselho da Europa. Mas à medida que a União cresceu em dimensão e escala ao longo dos anos, a atividade foi-se concentrando em Bruxelas.
Esta questão já foi a votos e o mais provável é que a maioria dos deputados preferisse trabalhar num único local. Porque é que não têm? Quando o tratado de Maastricht foi negociado, uma das questões em cima da mesa era em que estados ficariam as sedes das instituições europeias. Por exemplo, o Banco Central Europeu foi para Frankfurt, a Agência Veterinária foi para a Irlanda e a Agência do Ambiente para a Dinamarca.
Quando houve uma reunião em Edimburgo, durante a presidência britânica, para acertar os pormenores do Tratado de Maastricht, o Presidente Mitterrand disse que vetaria qualquer acordo a menos que o Parlamento Europeu ficasse em Estrasburgo. Isso ficou no documento e por isso hoje tem força de lei. Podemos ter um Parlamento que ignora a lei ao mesmo tempo que funciona como legislador? A resposta é não. E por isso chegámos a este beco sem saída, a este dilema.
O que achava disso quando era deputado?
Eu vivia na periferia e ir para Estrasburgo não era a coisa mais simples, até porque a cidade não tinha as infraestruturas de uma capital – hoje é mais fácil porque tem o TGV. Ainda assim, tal como acontece com outras coisas da Europa do pós-guerra, algumas destas cedências dizem-nos mais sobre o respeito mútuo que existe entre os estados do que sobre eficiência.
Mas, no fim de contas, o respeito mútuo é parte do cimento que mantém o projeto europeu de pé. Por isso sou menos crítico do que outros em relação a estas ineficiências. Admito que a questão não está bem resolvida, mas não tem grande importância. Foi uma exigência de Mitterrand e só demonstra o respeito que temos pelo que a França deseja.