Santana Castilho. ‘Não tenho senhores, penso pela minha cabeça’

Na segunda parte da entrevista ao SOL, Santana Castilho abre o livro da sua passagem pela política: a experiência como subsecretário de Estado na década de 80 e o corte com Pedro Passos Coelho. ‘As desilusões têm o tamanho das nossas ilusões’, vinca. Aos 78 anos, diz ainda estar longe de escrever as suas memórias. 

Fez 40 anos que foi subsecretário de Estado dos Assuntos Pedagógicos no Governo de Balsemão, pouco tempo porque se chateou na altura com o outro secretário de Estado, João de Deus Pinheiro. Qual foi o motivo?

Tínhamos visões completamente diferentes.

Li um testemunho do então ministro Fraústo da Silva, em que diz que uma das suas relutâncias em aceitar cargos ministeriais era a eventual intromissão partidária. Foi o mesmo motivo?

O ministro disse depois publicamente que o maior erro dele foi ter dado ouvidos ao João de Deus Pinheiro e não a mim e ficámos amigos. E eu hoje sou também amicíssimo do João de Deus Pinheiro.

Mas porque é que saiu e o que é tirou da sua experiência no Governo?

Conto a experiência toda. Eu na altura escrevia no Tempo e participava numa rubrica na RTP, de um programa que chamava Porque Hoje É Sábado. Eram uns programas semanais que tinham uma parte de debate político sobre educação. Na altura não existiam outras televisões e portanto tornei-me notado. Fui corrido da RTP por causa de um desses programas – o Proença de Carvalho, que era o presidente do conselho de administração da RTP na altura, disse que não podia continuar. Tinha confrontado os diretores-gerais da Educação ali ao vivo e em direto. Delicadamente, mas não era normal naquela altura, por isso foi uma bronca tremenda. Os programas de televisão, o eu ter sido diretor da Escola Francisco Arruda (em Alcântara), numa altura complicada porque fui substituir o Calvet de Magalhães… Tudo isto tem histórias, mas estou ainda muito longe de escrever memórias. Hoje às 6h da manhã estava a correr 10 quilómetros na 2.ª Circular, portanto ainda não estou acabado.

Corre 10km todos os dias?

Não todos os dias, mas costumo correr. Saio aqui de casa e vou pela 2.ª circular até ao Campo Grande. A vida é química e tento atrasar o meu envelhecimento biológico. Uma das minhas máximas é que um corpo forte comanda e um corpo fraco obedece. E nesse sentido quero um bom canastro mas não é para o exibir, é para o usar. O fundamental, que é o cérebro, necessita muito mais do meu braço do que o meu bíceps empenhado num grande esforço. Durmo pouco, três horas chegam-me, durmo profundamente. Faço compensações hormonais há 40 anos. Mas voltando ao Governo de Balsemão, um dia estou em casa, telefonam-me aqui para o telefone fixo e era a secretária do Balsemão. Diz-me: ‘Sr. Professor, o sr. dr. Balsemão está aqui reunido com o professor Fraústo da Silva e pedia se podia vir aqui a uma reunião com eles com a máxima urgência possível.’ Balsemão estava a formar Governo, já constava que Fraústo da Silva ia ser ministro, por isso percebi logo o que era. Da mesma forma que para falar consigo escrevi uma lista de questões para a situação atual da educação [na primeira parte da conversa, publicada na semana passada], sentei-me na altura na minha máquina de escrever e escrevi uma série de medidas. Entretanto disse à senhora: ‘Não me vai levar a mal, mas diga ao motorista do dr. Balsemão que me traga uma carta assinada por ele a dizer para ir aí ou então ao dr. Balsemão que venha ao telefone e fale diretamente comigo’. Mas porquê?, perguntou ela. ‘Não me leve a mal, mas pode ser uma brincadeira’.

Na sua organização de ter tudo escrito e registado.

Assim foi, veio o motorista com a carta buscar-me e tive tempo de escrever 12 medidas. Meti o papel no bolso e quando cheguei lá pediram-me que fizesse, na expressão usada então por Balsemão, ‘um voo planado’ sobre a situação da educação em Portugal. 

Era pior do que é hoje?

Era diferente, numas coisas pior, noutras coisas melhor. O país era obviamente mais pobre, mas era melhor em sindicatos que funcionassem e hoje não funcionam. Passado uma hora e tal, dizem-me ‘já chega de exposição’ e convidam-me para assumir a pasta dos Assuntos Pedagógicos. Puxei do papelinho, disse que imaginava que seria isso e que responderia já que sim se aceitassem aquelas 12 medidas. Leram os dois e aceitaram. Uma das primeiras medidas tinha que ver com um problema atual, a falta de professores profissionalizados. Naquela altura as pessoas faziam uma licenciatura e depois havia o estágio pedagógico: só havia possibilidade de entrar nos quadros da escola depois do estágio. Como não havia metodólogos suficientes, o processo ficava bloqueado e ninguém entrava nos quadros. E depois havia os professores provisórios, com habilitação suficiente, própria, sempre a mudar de escola, ao mesmo tempo que os quadros eram exíguos porque não havia capacidade para formar aquela gente toda. A minha primeira proposta era separar a formação dos professores da profissionalização. Ou seja, vamos colocar nos quadros quem já está no sistema há uma série de anos e a seguir vou dar formação de forma integrada aos professores, à medida das nossas capacidades. Era uma medida revolucionária, na estabilidade que vinha dar à carreira dos professores, e que nunca chegou a avançar.

Porquê?

Pelos corporativismos que sempre existiram e pela falta de coragem política para acabar com eles. Na altura havia duas grandes federações sindicais, como há hoje, a Fenprof e da FNE, uma PC e outra CDS-PSD. Eu não tinha filiação partidária e nunca tive. Nunca digo desta água não beberei, mas tanto quanto me conheço, a última coisa que alguma vez teria na vida era filiação partidária e fui convidado para o Governo duas vezes. E as duas aceitei logo, não continuei porque não aceitaram as minhas condições.

Estávamos a falar da primeira, com Balsemão, e a última foi com Pedro Passos Coelho.

Já lhe posso contar, mas concluindo esta primeira. O jornal O Jornal anunciou ‘cinco independentes para um ministério dependente’. Quem éramos? Fraústo da Silva, João de Deus Pinheiro, Santana Castilho, Romão Dias e René Rodrigues da Silva. Nenhum de nós tinha filiação partidária, mas o único que conhecia as escolas e tinha essa tarimba era eu, porque eles eram do Superior e o René era da Inspeção Geral do Ensino. Quando acabou a primeira reunião da equipa do Governo, fui levar o Fraústo da Silva a casa e disse-lhe: ‘Aquela história de cinco independentes é uma treta, eu hoje ao ouvir o Dr. João de Deus Pinheiro vi a cartilha toda do PSD e não me aquece a alma, porque aquilo que escrevi no papel vai ter oposição’. E assim foi, até acabar com uma carta de demissão do Fraústo da Silva em que ele agradece muito mas diz que eu sou uma pedra demasiado diferente. Teve tudo oposição, e eu entretanto, não conformado, ia mordendo tanto o Fraústo como o Balsemão.

Continuava a escrever nos jornais estando no Governo?

Sim, sob pseudónimo. Manuel de Reimonde.

E lá dentro sabiam?

O Fraústo sabia, depois ficámos bons amigos. Era um bom homem, um conciliador, uma cabeça brilhante, mas não tinha… Um dia disse-me isso: ‘Você é um quebra lanças, eu não sou. Devia tê-lo deixado a si quebrar as lanças’. E disse-o publicamente. Já quase na rutura, reúno uma vez com o Dr. Balsemão e digo-lhe: ‘O senhor primeiro-ministro aceitou isto, esta primeira medida era revolucionária. O senhor tem noção do que é 27 mil professores de um dia para o outro entrarem nos quadros, terem uma escola, deixarem de chegar ao fim do ano sem saber para onde vão?’ E ele disse: ‘Tenho, mas é uma medida política que eu não posso tomar sem que uma estrutura sindical a aprove e você não consegue convencer nem a Fenprof nem a FNE, dizem que isso destrói a formação. Se conseguir, avança’. Reuni-me com as federações: era na altura o António Teodoro o secretário-geral da Fenprof e era a Graça Fernandes na FNE. Tive uma reunião na 5 de Outubro terrível para tentar que a Fenprof aceitasse e nada. Às duas da manhã, cansado, soltei um impropério, que nem é o meu hábito, e disse ‘desisto’. Percebi que não aceitariam vindo de um Governo AD. Os sindicatos ficaram batizados para mim a partir deste momento.

Ficou desencantado com a política?

Foram nove meses. Não fiquei desencantado com a política porque já tinha uma noção, sempre li muito e acompanhava. Se me pergunta se eu não acreditava que seria possível fazer aquilo que propunha quando aceitei, acreditava, mas não fiquei desencantado. Todas as desilusões têm o tamanho das ilusões. A minha ilusão existia, mas não era muito grande, por isso a desilusão não foi muito grande. Ensinamentos? Seguramente que os tirei naquela altura. Quando defino educação como tudo aquilo que se acrescenta à simples natureza humana, isso não se passa só na escola: tudo o que nos acontece na vida nos educa e hoje, com a idade que tenho, não tendo tido uma vida política, tenho traquejo político, como os cidadãos têm, mesmo quando no nosso sistema qualquer português pode ser Presidente da Republica, mas não pode ser primeiro-ministro sem estar filiado num partido. Eu nunca me alistei.

Mas considera-se mais próximo da direita do que da esquerda? Tendo em conta que a segunda aproximação, 30 anos depois, foi da Passos Coelho.

Conto então essa história. Passos Coelho tinha sido eleito presidente do PSD há pouco tempo e temos um encontro na Vela Latina. Mais uma vez pede-me uma exposição sobre a educação e daquela vez não me interrompeu, foram duas horas e tal a falar. No final convidou-me para escrever o programa político do PSD para a área da educação. E eu respondi: ‘Deixe-me dizer o seguinte: se o convite que acaba de me fazer fosse feito pelo Francisco Louçã, eu aceitava. Se fosse feito pelo Jerónimo de Sousa, eu aceitava. Se fosse feito pelo Paulo Portas, eu aceitava. Se fosse feito pelo Sócrates, nem sequer me teria sentado a tomar uma bica. Dito isto, aceito, mas já percebeu que o programa não tem nada a ver com aquilo que conheço do PSD’.

Não aceitava para Sócrates ou para o PS?

Para Sócrates e para o PS que Sócrates representava naquela altura. A primeira pessoa nesta país que escreveu um artigo na imprensa dizendo quem era o Sócrates fui eu, numa altura em que ninguém ousava dizer nada contra o Sócrates, o menino de ouro. [‘Carta aberta ao engenheiro José Sócrates’, 6 de Junho de 2005, Público]. Mas respondendo à primeira pergunta, percebo a origem histórica da dicotomia esquerda/direita, mas houve alturas em que me conotaram com o PC, há quem diga que sou militante do PSD, tive uma fase em que era do PS. Não tenho senhores, penso pela minha cabeça. Na altura da guerra com os colégios, público e privado, fui muito crítico dos contratos de associação – havia colégios com alunos pagos pelo Estado para lá andar quando havia escolas públicas ao lado com vagas. Isto quer dizer que sou contra o ensino privado? Não. Fui eu até que dei autonomia pedagógica aos colégios – fazia parte de júris que iam fazer exames de sétimo ano ao São João de Brito… se os colégios estavam lá o ano inteiro a educar as crianças, depois tinham de ir fazer exames no público? Como sou crítico agora de as crianças no público terem manuais gratuitos e no privado não.

E é contra a ideia de um cheque-ensino, que voltou a vir ao de cima no ano passado quando o ministro da Educação disse que cada aluno no público custa 6200 euros por ano.

Sim e essas contas eram uma aldrabice irritante, porque se dividiam todos os gastos das escolas, incluindo ação social, pelos alunos. Agora o cheque-ensino é uma falácia: quando pagamos impostos, pagamos para que quase 2 milhões de pobres em Portugal possam ter aquilo que os meus netos e os seus filhos podem ter sem auxilio do Estado. Não pagamos impostos na condição de que o Estado nos devolva aquilo que não usamos. Felizmente eu não vou a um médico há 40 anos e, além dos impostos, desconto todos meses para a ADSE. Tenho consciência de que quando pago, estou a pagar para os desgraçados, também porque se investe na doença e não na saúde, que passam a vida lá. Tenho pena que façam mau uso daquilo que eu pago, mas isso é outra história. Se se criasse o cheque-ensino, o que é que ia acontecer? Os 20% da rede privada ficava cheia não era com os alunos das Galinheiras, e as Galinheiras iam ter menos recursos. 

Mais uma analogia com a saúde.

No SNS defendo exatamente o mesmo. Pagamos impostos e se um Belmiro de Azevedo for ao SNS deve pagar zero e deve continuar a financiar o sistema mesmo que não vá lá. Vai dizer: tenho um pensamento de esquerda. Se calhar sim numas coisas, noutras não. Voltando a Pedro Passos Coelho: avisei-o, comecei a trabalhar e houve um período em que tudo o que era educação passava por mim até no Parlamento. O diploma de avaliação de desempenho, que foi a primeira vez na vida que o PC votou num diploma do PSD, foi feito por mim. E foi torpedeado pelo Cavaco Silva. Chegamos à campanha eleitoral e Passos Coelho pede-me que aprimore o que tinha feito e que prepare um programa para a educação. Escrevi 27 páginas. Tenho os emails todos guardados de Passos Coelho a dizer que se reconhece em tudo aquilo. Ele sabia que sou noctívago e um dia telefona-me à 1 da manhã a dizer que tinha terminado a reunião da comissão política, queria falar comigo, se eu tinha disponibilidade para passar na Buenos Aires de manhã. Lá fui e diz-me que vamos ter de reduzir as 27 páginas a nove. ‘Já sei o que me vai dizer, mas a comissão política diz que os programas setoriais têm de ser reduzidos a um terço’. Tive um professor de pedagogia que dizia que um bom professor tem de ter boa figura, peito saliente, gesto belicoso e voz canora – e naquela altura disse a Passos Coelho olhando-o fixamente: ‘Tem noção de quem é que lê o programa dos partidos políticos?’ ‘Claro que tenho’, respondeu. ‘Se calhar a comissão política é que não tem’, respondi. ‘Dito de outra maneira: as 27 páginas têm coerência, foram escritas com cuidado. Reduzindo a um terço, fica incoerente e sem sentido e eu não faço’. Ele diz-me que já sabia que eu ia responder assim e que tinha outra ideia: ‘É preciso mesmo reduzir e depois o professor faz um livro com tudo e apresentamos um livro com um prefácio meu’. 

E surge assim o livro O ensino passado a limpo, que seria apresentado em maio de 2011.

Sim, mas disse-lhe que eu não cortava o programa, que arranjasse quem cortasse. Passou-se algum tempo e um dia, mais uma vez às tantas da noite, telefona-me, já em pré-campanha, a dizer que me acabava de enviar a versão final do programa e era a primeira pessoa a que estava a enviar. Quando vou abrir aquilo, não estava uma palavra do que eu escrevi. O resto… No dia em que Passos Coelho tomou posse, no programa Política Mesmo, do Paulo Magalhães, há uma entrevista minha em que eu digo: ‘O país acaba de empossar como primeiro-ministro a pessoa politicamente mais desonesta que eu conheci em toda a minha vida’. Depois de abrir o email telefonei-lhe: ‘O que é isto que o sr. dr. me mandou?’. Ele disse que já tinha avisado que ia ser cortado, que tinha sido a primeira pessoa a quem enviou. ‘O senhor leu?’, perguntei. E ali ele percebeu que havia problema. A minha convicção hoje é que Pedro Passos Coelho não sabia que tinham trocado o programa. E disse-lhe naquele dia: ‘Vou partir a loiça toda, mas só o faço depois da campanha eleitoral. Agora o senhor vai ter de me dizer como resolvemos um problema que temos: daqui a três dias vamos apresentar um livro em que diz que aquilo é um embrião do programa do PSD. ‘Sim, combinamos encontro para amanhã.’

Não aconteceu?

Não. De manhã telefonaram-me a perguntar a minha disponibilidade, disse que era 24/24 até ao lançamento do livro. Nunca mais me disse nada. Eu que tenho um certo traquejo de falar em público estava nervoso na sala do hotel, 400 pessoas. É aí que vejo Passos Coelho pela primeira vez. E pronto, o livro foi editado pela Porto Editora, houve aquela conversa de circunstância e depois falou Passos Coelho, que disse que o Santana Castilho tinha sido a pessoa que mais tinha colaborado com ele nesta área mas que não estava satisfeito com o programa do PSD anunciado e por isso ia ser mudado. Isto foi dito, estava lá a comunicação social. De tal maneira que o Sócrates nessa noite, obviamente, veio perguntar que confiança podiam ter os portugueses num sujeito que lança um programa há dois dias e porque um professor do ensino superior não gosta – nunca pôde comigo – vem dizer que vai mudar. Na apresentação eu disse que mais uma vez estava estarrecido com a tomada de posição dele, que não é vulgar um político ter aquela honestidade, que realmente era verdade que o programa apresentado não tinha nada a ver com o que eu tinha escrito…

E depois?

Ia a sair do hotel e soube que Passos Coelho estava à minha espera no bar. Disse-me: ‘Professor, temos aqui um problema, como vamos fazer isto?’ E eu disse: ‘Temos? Tira o que anunciou e coloca o programa’. Disse-me que não podia ser assim tão radical. Disse-lhe que era difícil, ‘mas como não quero que diga que estou de má vontade, vamos’. Falou-se então de mais uma reunião no dia a seguinte. Mais uma vez me ligaram, mais uma vez disse que a minha disponibilidade era 24/24 e nunca mais falei com o Passos Coelho. Evidentemente o programa não foi nada mudado.

Mas não tinha sido convidado para ser ministro.

Formalmente não, mas a conversa era sempre ‘quando formos Governo, como vamos fazer isto?’.

Sendo muito crítico atualmente do Governo PS, para si quais foram os piores anos para a educação?

O desmantelamento da escola pública começou com Maria de Lurdes Rodrigues, para mim a pessoa mais maliciosa no que estava a fazer. A grande coveira, como já disse, foi Maria de Lurdes Rodrigues. Mas é possível encontrar uma coerência, uma lógica e uma intencionalidade política que se entendia, que era proletarizar os professores, funcionalizar o sistema. É má, mas existia. Brandão Rodrigues não tem nenhuma e João Costa não tem nenhuma, é um navegar à vista com truques, manipulando estatísticas, criando tonterias como as filosofias Ubuntu.

Está a dizer que havia mais coerência política no Governo de José Sócrates?

Claramente, percebia-se o que é queriam, embora o mal tenha sido maior ainda. No Nuno Crato também se percebe a coerência e intencionalidade, o grande desastre foi, em meu entender, uma submissão doentia à ideia de avaliar tudo e querer medir tudo, que resultou numa incapacidade total de adequar o que faz sentido ao sistema de ensino sob o peso da tecnocracia. Agora não nos esqueçamos do período em que governou o Nuno Crato. Embora eu tenha sido um crítico acérrimo, e discordando em muitas coisas, reconheço a Nuno Crato uma capacidade de pensar a educação, uma visão e um conhecimento que deixa a anos-luz João Costa.

Na prática, chegamos a mais um ano que já disse que vai ser mau e que vai começar com uma grande falta de professores. Como se sai desta espiral?

Os professores têm de ter autonomia pedagógica, têm de ter liberdade, não são os ministros que devem definir doutrinas pedagógicas. Não há certo e errado, varia de aluno para aluno, de escola para escola, é um ónus do professor, que tem de ser formado para isso e avaliado pelos seus resultados. Se fosse ministro, uma das das primeiras coisas que fazia era acabar com agrupamentos e este modelo de gestão das escolas. A maioria dos diretores são incompetentes.

Que estado de espírito encontra nos professores?

Um desencanto, um cansaço mas também uma submissão que eu não aceito. Um conformismo terrível. Se há pessoa que defende os professores sou eu, mas isso não me impede de dizer que sendo uma profissão estruturante, como são os médicos ou os juízes, têm uma responsabilidade social e estão a aceitar com reverência políticas, imposições, normativos e diretivos que são um crime pedagógico. Se existisse esse crime, haveria muitas condenações.

Têm sido marcadas vigílias de insatisfação.

Tenho todo o respeito, mas não é disso que necessitamos. Não são cordões humanos, não são vigílias de reprovação, não são greves que mal provocam efeitos os professores claudicam. Aconteceu com Maria de Lurdes Rodrigues, com Nuno Crato. O que é que acontecia se, em contrapartida, um professor chegasse a uma escola pública e dissesse: ‘Quero que me indique então como vou ocupar as 35 horas na escola e notifico que daqui para a frente não faço nada em casa. Preciso de um computador para trabalhar, um local para ver provas e preparar aulas, tudo feito na escola’. Não perde um cêntimo do salário, não faz uma greve, bastava só os professores todos fazerem isto. Cordões humanos? Reuniões? Não estamos cansados de ver que isso não resulta? Os sindicatos andam há anos nisto. Escrevi-o há pouco tempo: estes sindicatos são santuários de conformismo, não vejo hoje que o mundo sindical defenda os professores. Dizem-me que os professores também estão acomodados… mas quer dizer, isto agora é discutir se o que o que veio primeiro foi o ovo ou a galinha. É preciso inverter este marasmo.

O que diria aos pais neste regresso às aulas?

A esmagadora maioria dos pais estão escravizados, têm problemas económicos, têm pouco tempo para estar com as crianças. Não é dizer mal dos portugueses, mas têm uma literacia pedagógica reduzida e estão bombardeados por uma máquina governamental que lhes diz coisas que são manipulações. São vítimas, como os professores foram, de ouvir dizer que os professores são uns malandros, que ganham muito, trabalham pouco.

Três meses de férias.

Sim, quando são uma profissão que devia ter sido acarinhada. E uma das coisas que este ministro e a maior parte dos políticos não entende e não admite é que felizmente ainda temos uma grande quantidade de professores que fruem interiormente e intrinsecamente da profissão. Quando se estuda a psicologia aprendemos que há dois tipos de motivação: a motivação extrínseca e a intrínseca. A extrínseca é a cenoura. Estes políticos só pensam atualmente em motivação extrínseca e para enganar: pôr a cenoura e tirar para que ninguém a coma. Não pensam que há, felizmente para as crianças e para os pais, muitos professores que sofrem, que têm motivação intrínseca para estar com os alunos e que é esse prazer que mantém a escola e é isso que se tem matado nos professores. A generosidade que eu via nos professores nas instituições de que fui responsável…

Hoje é menor?

Quando fui diretor da Francisco Arruda, não tinha problemas de absentismo. O mesmo na Escola Superior de Educação de Santarém… Quando estavam doentes ou tinham o marido ou alguém doente, recusava que apresentassem atestado. Quando tínhamos congressos, era preciso três funcionários a um sábado ou domingo e toda a gente se oferecia.

Não são outros tempos?

Pode ser também, mas a natureza humana tem esta dimensão intrínseca: há aí um ponto em si que eu sei que se lá tocar, tenho a sua adesão. O difícil é encontrá-lo. Agora se eu tentar perceber aquele ser que tenho à minha frente, aquele aluno, aquele professor, isso fica mais fácil. Temos essa diferença na própria origem da palavra educação, com dois étimos: educare e educere. E são diferentes. Num caso, passe a imagem, secciono a sua calote cranial, meto um funil e despejo o que decido e, no outro, remexo naquela massa encefálica tentando descobrir as suas potencialidades.

Já disse que isso no ensino de massas é difícil.

Mas não deixa de nos dizer como funcionam as pessoas. Temos organizações que cada vez mais se esquecem de que lidamos com pessoas, carregamos as pessoas nas escolas de tarefas que lhes retiram o prazer. Os altruístas são empedernidos hedonistas. Muitas das dificuldades dependem de como se lida com as pessoas e fico muito contente por continuar a receber mensagens bonitas de alunos até de há muito tempo.

Tem essa legião de seguidores, mas é muito crítico da elite nacional. Aos 78 anos, está muito chateado com o país?

Não, estou triste. Com tanta generosidade, com tantas características fabulosas que vejo em tanta gente, com tanta coisa boa, aquilo que vejo não me deixa feliz. Não estou a dizer que tudo o que fizemos foi errado, fizemos muitas coisas boas. Vivi o antes do 25 de Abril. Agora às vezes gostava de ter o meu 25 de Abril de volta. Muita generosidade que houve no 25 de Abril perdeu-se. Hoje quando falo com políticos e me censuram – ‘só vês o que está mal, não há altura nenhuma em que possas dizer bem nas colunas do jornal?’ – respondo: ‘Tenho 4000 carateres. Quando fazes bem, fazes aquilo que devias fazer, é para isso que estás no cargo.’ O David Justino, de quem sou muito amigo e que, discordando por vezes dele, é alguém com quem dá gosto falar, disse-me um dia: ‘Diga lá bem algum dia’. E já disse, mas não se nota. Muitas vezes as pessoas que me fazem essa crítica dizem se não vejo a diferença entre o que foi e o que é hoje. Respondo sempre: não comparo o que é com o que era, comparo o que é com o que podia ser se as políticas fossem diferentes. É isso que me preocupa.

O que vai acontecer à escola nesta trajetória?

O que já está a acontecer. Crianças que terminam o ensino básico sem saber ler e escrever, sem saber fazer contas; jovens que terminam o secundário sem ter a mínima noção da história do país, que é fundamental. Veja este conflito entre Rússia e Ucrânia: quantas pessoas que tomam partido neste conflito conhecem a história? E coitados dos professores de história, que têm uma disciplina ao longo do tempo reduzida e desprezada.

Está preocupado com o impacto da pandemia na saúde mental dos jovens?

O que me preocupa são os disparates que se fizeram neste país à pala da pandemia. Não me vai chamar negacionista, que não sou. Assumiu-se como negacionista qualquer pessoa que questione as medidas tomadas. É evidente que há um Sars-Cov-2, mas para mim também é evidente que houve um lançar de uma política de medo que provocou muito mais malefícios do que o vírus em si. O Conselho Nacional de Saúde Pública não recomendou o fecho das escolas.

Da mesma forma que diz que uma política de educação de massas nem sempre pode ser ideal, no início, perante a incerteza, a postura prudente não pode ter sido a única possível perante o que começava a ser a sobrecarga dos serviços de saúde?

Na minha visão a escola nunca teria fechado como fechou. Sei que é o contrário do que pensam a maioria das pessoas, mas é a minha visão, de que falsas informações foram dadas como constatações científicas quando não o eram. Eu não nego a gravidade da doença, o que digo é que as medidas foram incorretas e foram ditadas pelo medo e não pela racionalidade. 

Já me disse que não se vacinou para a covid-19, toma vários suplementos, corre. Sempre foi assim?

Tenho vacinas, não fiz a da covid-19. Sempre procurei cuidar da minha saúde e com essa consciência de que para que tudo funcione bem temos de pôr ao serviço disso o nosso canastro, não é para exibir, é para vivermos melhor. E na escola não fazemos o que devíamos fazer para ensinar às crianças o suficiente sobre o funcionamento do corpo humano. Cheguei a ter alunas de fim de curso, estagiárias, que não sabiam como funcionava o seu corpo. Sabiam que menstruavam, mas não conheciam nada do mecanismo. Não seria fundamental a escola ensinar sobre o corpo? É preciso cultivar nas escolas a ânsia do conhecimento, mesmo coisas cuja aplicação não é imediata. É uma obrigação das escolas e dos professores, interpelar, transmitir conhecimento.

Que questões existenciais tem aos 78 anos?

Tenho uma que é a acumulação de riqueza. E penso sobre isso, porque conheço pessoas com dinheiro, até de quando trabalhei para o Banco Mundial. E uma vez perguntaram-me: ‘Podias trabalhar menos, ter muito mais dinheiro’. Continuo ativo, dou aulas na universidade politécnica de Maputo, estou a preparar a defesa de vários professores de processos disciplinares, não que seja jurista, mas tive sete. Perguntei: ‘Conheces a história do Diógenes?’. Respondeu-me: ‘Lá vens tu com a filosofia’ – e a filosofia, como a história, é importante também por isto. Diógenes foi conhecido por andar numa rua com um lampião à procura do homem inteiro. Vivia num buraco, a comer mal, mas era um crânio. Conta-se que a determinada altura há um emissário que o interpela: ‘Ó Diógenes, se tu servisses o meu senhor não precisavas de viver na barrica e andar a comer lentilhas todos os dias’. E o Diógenes respondeu: ‘E se tu comesses lentilhas todos os dias, não precisavas de servir o teu senhor. Eu não tenho senhores, não quero riquezas, quero a minha liberdade e poder pensar livremente’. Já Dalai Lama diz isto: ‘Não entendo os homens ocidentais. Passam metade da vida a gastar saúde para amealhar dinheiro e na outra metade gastam o dinheiro que amealharam para recuperar a saúde’. Tem sido o meu lema. Gosto de coisas boas, de um bom champanhe – por curiosidade, fui chef de cozinha em França. Tenho mais que a maioria dos meus concidadãos, não que tenha a mais, mas porque tínhamos riqueza para todos terem, mas não tenho senhores. 

Se a vida começasse agora, teria sido professor outra vez?

Teria, embora também me visse médico. Tive aí uma altura da minha vida em que um dia ali sentado naquela cadeira, que é o meu divã de psiquiatra, em que pensei: ‘Com o que eu sei, será que ainda posso ser médico?’ No meu tempo do Instituto Nacional de Educação Física, onde me formei, tínhamos cadeiras dadas por professores de Medicina, devo ter assistido a mais de uma centena de partos porque um deles era da Maternidade Alfredo da Costa e as aulas eram dadas lá. Aprendíamos sobre Medicina, sobre Física.

E gostava de recomeçar?

Se pudesse recomeçar com o que sei hoje, gostava, mas dificilmente aceitava algumas coisas.

Só com uma lista de condições.

[Risos] Sim. Há coisas pelas quais passei até na infância que hoje reconheço que me fizeram muito bem e estou grato, mas que na altura… Estou aqui a lembrar-me da minha irreverência desde pequeno. A minha mãe ensinou-me que quando nos ofereciam alguma coisa agradecíamos e aceitávamos, mesmo que não gostássemos. A primeira vez que comi um dióspiro foi numa situação dessas. Uma pessoa qualquer que nos veio visitar, ofereceu dióspiros e no fim perguntou: ‘Manelinho – é o meu primeiro nome – gostaste?’ Tinha para aí cinco aninhos e respondi: ‘Gostei mas é a última vez que como’ [risos]. Há coisas que me ensinaram muito, mas não gostava de as voltar a viver. Se o voltar cá tivesse de passar por isso, não me apetecia. Se pudesse limpar alguns momentos com as tais condições, queria estar cá mais algum tempo. Às vezes os meus amigos perguntam-me: ‘Achas que vais durar até aos 120?’ Não sei, mas sei que só se estiver bem. Defendo a eutanásia ainda não se falava disso cá.