O Governo anunciou apoios para o setor social, nomeadamente para apoiar ao nível da fatura do gás…
Estamos a falar de um apoio de 120 milhões, mas há uma discrepância de cinco milhões entre o discurso do ministro da Economia e o documento que o Governo nos enviou.
Essa verba é suficiente?
Essa verba ainda não está regulamentada, portanto é preciso ver como vai ser distribuída. Não é contabilizar as instituições e dividir pelo total que existe. Mas como vai ser feito? Vai ser distribuído pelo número de utentes? É pelo consumo? E pelo tipo de consumo? Ainda por cima, o gás é fornecido de muitas maneiras: há quem compre botijas de gás – como é o caso do interior – há quem tenha gás canalizado, como em Lisboa e no Porto, e há muitos que têm aqueles depósitos de gás que são parecidos com os de gasolina. Vamos ver como o Governo regulamenta isto.
O que seria desejável?
Só gosto de falar do que sei e pedimos ajuda a uns especialistas porque estamos perante preços diferentes, aumentos diferentes e, como tal, estamos a tentar perceber de que forma é que pode ser mais equitativa e até para sabermos como podemos reagir quando vier a proposta do Governo para podermos trabalhar melhor sobre ela. Para ter uma ideia, há aumentos de gás de 400% e há aumentos de 20% ou 26%. É tão díspar o número, que temos de perceber por que é que estas variações acontecem. Esta equipa de especialistas irá propor um modo de distribuição destas verbas para que seja equitativo. E, se percebermos a discriminação, se percebermos qual é a sua causa e se esta faz sentido ou não, podemos atuar de melhor forma. Confesso que estamos a tentar saber como é que tudo isto funciona e estamos a pedir a pessoas desta área que nos ajudem.
E em relação à linha de financiamento que também foi anunciada?
Essa linha é também de 120 milhões de euros, maus aí já estamos a trabalhar com o Governo, uma vez que esse financiamento vai ser agilizado pelo Banco de Fomento Ainda não sabemos como vai funcionar, mas presumo que a ministra está a ouvir as pessoas que dentro das instituições têm responsabilidades nesta área para encontrar uma proposta equilibrada, o que me parece muito sensato.
Mas uma linha de crédito implica juros….
Uma coisa é crédito de curto prazo, outra coisa é de médio ou de longo prazo. Também não sabemos se há prazo de carência ou não. E no caso de haver ainda não sabemos qual vai ser esse prazo. um ano, dois anos, seis meses? Tudo isso tem de ser bem esclarecido e é diferente pedir dinheiro a pagar em cinco, sete, 10 ou 15 anos. Pode haver aqui uma variedade grande que também exige um olhar nesta fase, claro que vamos olhar para isto com atenção. Mas, como disse, uma linha de financiamento representa sempre custos extras e estamos muito preocupados com a sustentabilidade das instituições. Isto é, toda a gente diz ‘o setor faz’, mas o setor social tem disponibilidade para fazer se lhe derem meios, portanto o Estado apostar no setor social é uma boa aposta, agora também sabemos que sem ovos não se fazem omeletes. E precisamos dos ovos mínimos para fazer omeletes e, neste momento, estamos confrontados com quatro vetores que estão a prejudicar profundamente essa sustentabilidade.
E quais são esses quatro vetores?
Primeiro é o aumento do salário mínimo. Achamos que este aumento é justificadíssimo, mas nada tem a ver com o seu destinatário, mas os acordos dos últimos anos que não têm tido repercussão, ou seja, o Estado não tem sido capaz de fazer repercutir nos acordos esse aumento do salário mínimo. Mais uma vez, não está em causa a justeza desse aumento, até porque são pessoas que trabalham com idosos, com deficientes, nos hospitais, nas unidades de cuidados continuados. Faz-me todo o sentido que ganhem mais, mas, como estamos a cooperar com o Estado, este tem de suportar esses aumentos. A segunda questão tem a ver com a energia, falámos do gás, mas a energia também tem subido muito. É verdade que na eletricidade é mais fácil encontrar uma solução para isso.
Qual é a solução?
Passa por um aumento, já que estamos a falar de instituições que consomem muita energia – no outro dia falei com um provedor que disse que já tinha os aquecimentos ligados nesta altura – e, por isso, deveria haver uma diferença, não diria entre o interior e o litoral, mas entre as zonas mais frias e as menos frias de Portugal. Mas também aqui há uma solução potencial que o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) devia ajudar e não o está a fazer, como é o caso da instalação de painéis fotovoltaicos. É verdade que há programas para instalar painéis fotovoltaicos, mas esse programa é de uma complexidade total e exigem documentos que tornam o processo complexo, quando devia ser mais rápido, mais ágil e fácil para as instituições. E isso não acontece. Em relação ao terceiro vetor, diz respeito aos transportes. Apesar do preço do gasóleo ter melhorado e, neste momento, os valores estarem quase iguais aos que estavam há um ano, e, por isso, é o que pesa menos nesta equação. Depois temos os aumentos dos bens essenciais e isso vê-se quando se vai ao supermercado. Por exemplo, há três semanas a minha mulher pediu-me para ir ao supermercado e uma das coisas que me impressionou é que havia muito menos pessoas e os sacos eram mais estreitos. Ou seja, as instituições não ficam alheias a estes aumentos. E, tendo em conta estes quatro vetores, o Estado português tem de olhar para isto. No outro dia ouvi Luís Marques Mendes a dizer que só a TAP gasta cinco vezes mais do que os apoios todos, mas depois ficamos admirados, porque estamos a falar de gente pobre, que precisa, e de pessoas que cuidam de gente pobre porque os nossos funcionários também são pobres.
Então estas medidas anunciadas para o setor social não são suficientes?
São interessantes, mas não chegam. No entanto, vamos ver como tudo isto evolui. Se amanhã acabar a guerra e os preços dos alimentos descerem, então aí pode ser que sejam suficientes. Claro que vejo sempre estas medidas como positivas, mas, como disse o primeiro-ministro, são medidas para agora. Mas quando ouvimos dizer que há seis mil milhões de euros de receita a mais, então já não é assim tão suficiente. E depois há uma questão mais profunda: esta semana, estavam todos muito excitados por causa de um vídeo horrível que foi difundido em Boliqueime, no Algarve, de uma senhora que tinha formigas a passar por cima. Falei com a provedora e, independentemente da atuação da Misericórdia, aquela senhora entrou pela Segurança Social com um pé amputado, cheia de escaras, com uma sonda nasogástrica e como esta é incomodativa então a senhora arrancava-a e, por isso, optaram por imobilizar-lhe as mãos. Mas pelas imagens já acusam de estar amarrada na cama. O que quero dizer é que esta senhora está mal num lar, devia estar numa unidade de cuidados continuados. O lar não tem capacidade para tratar destes casos e depois dizem que os idosos são maltratados. Precisava de estar numa unidade de cuidados continuidades. E por que não está? Porque não há. E porque é que não há? O Estado não paga minimamente o que custa. A questão não é se ganhamos dinheiro, isso não entra na cabeça de ninguém no setor social. É claro que temos de ter resultados positivos da exploração porque o vidro parte, o carro precisa de ser substituído, a máquina de lavar avaria. E o dinheiro para isso vem de onde? Do resultado positivo da exploração, mas nos cuidados continuados há prejuízo todos os meses.
E depois não há vagas…
Não há. Se um quilo de carne custa sete ou oito euros, não pode chegar lá e querer pagar com dois euros. E mais, isto é uma rede pública e é o Estado que seleciona as pessoas que vão para lá. É o Estado que diz quanto tempo ficam, quanto é que vão pagar e nos casos em que há co-pagamento, se as pessoas não pagarem, a dívida não é do Estado é da Misericórdia. O Estado diz assim no co-pagamento: ´Esta pessoa paga 10 euros por dia, ao fim do mês são 300 euros’. Há tempos, fiz as contas acumuladas e estávamos com seis milhões de euros, porque grão a grão esvazia a galinha o papo. E isso não tem a ver com a crise, a crise torna tudo mais complicado e os prejuízos aumentam. Percebemos que o Estado nos apoiou e, em alguns casos, até acho que nos apoiou bastante bem. Por exemplo, durante a covid tivemos um conjunto de apoios, as câmaras que também são Estado apoiaram-nos de uma forma geral – claro que há sempre uma dúzia ou duas de câmaras que, por razões várias, não apoiaram, mas a grande maioria sim – e agora que julgávamos que íamos ter um bocadinho de folga levámos com a guerra. E, ao mesmo tempo, levámos com a subida dos juros por parte do BCE e com os custos acrescidos por causa da transição energética. Já há muito tempo que se dizia que não se podia usar o gás da Ucrânia, o gás da Rússia, etc. O que quero dizer com isto? Nós, com calma, mas com determinação e com força temos que dizer que o Estado português tem de olhar pelas famílias e tem de cuidar delas.
O Governo anunciou também medidas de apoios para as famílias…
Deve também ter recebido como eu um conjunto de anedotas sobre os 125 euros. Não sei se isso é solução ou não, vamos ver como vai ser o futuro. Tenho para mim que a grande preocupação das famílias jovens é controlar o crédito à habitação, porque corre o risco de subir muito. Percebo o drama de muitas famílias com um filho ou dois, que, perante estas subidas, vão ter uma série de preocupações. Mas isso numa família com dois filhos faz uma diferença muito grande, mesmo na classe média. Mas curiosamente também vamos aos restaurantes e estão todos cheios.
Há dinheiro para umas coisas mas não há para outras…
Se calhar os portugueses têm que se habituar a viver de uma maneira diferente. No outro dia ouvi o presidente da Câmara de Cascais a dizer uma coisa que achei muito violenta, mas depois fiquei a pensar nisso durante o fim de semana todo. Disse que ‘o mundo que nós conhecemos acabou’ e nem sequer é possível ficar no mundo antigo, mesmo que queiram. Em relação a isso acho que temos de ser implacáveis no sentido de exigir do Estado que cumpra as suas responsabilidades, mas também temos de ter uma atitude positiva, no sentido de encontrarmos soluções novas perante dificuldades novas. Não podemos estar apenas à espera do subsídio, temos de atuar de outra maneira. Ainda esta semana ouvi uma provedora de Cascais a dizer que uma empresa a contactou para pôr painéis fotovoltaicos e apesar de ter dito achava a ideia muito gira, não tinha dinheiro para isso. A empresa disse que não gastava nada porque o investimento era deles, então aí disse que a conversa era interessante, mas como não conseguia gastar a eletricidade toda que estava prevista podia ser contemplada a energia inclusiva. Então apresentaram um projeto giríssimo, em que aquilo que sobra serve para apoiar 50 ou 60 famílias que pagam tarifa social à volta do lar. Ora está uma coisa interessante. Isto é, tendo em conta aquela Misericórdia, consegue-se dar uma resposta que baixa substancialmente o seu consumo de energia porque durante praticamente o dia todo a energia não era aproveitada, mas ainda consegue apoiar as pessoas à volta. O que é certo é que o critério da Misericórdia foi muito bom porque decidiu ajudar as pessoas que pagam tarifa social. Uma coisa é exigir do Estado que pague o custo das coisas, outra é sermos capazes de colaborar nesse custo, com uma atitude positiva, inventiva e com uma postura de abertura.
Mesmo a classe média vai deparar-se com a subida dos juros, com o aumento da inflação. E mesmo quem não tinha problemas financeiros é capaz de se deparar com algumas dificuldades. É mais um desafio para as Misericórdias?
As Misericórdias também ajudam um bocadinho nisso, não é só para o tempo das vacas gordas. As Misericórdias são mais precisas no tempo das vacas magras, mas o Estado não nos pode passar para toda a responsabilidade. Isso não está na Constituição. Não queremos mais do que nos é devido, mas temos que ter o que nos é devido.
Tem dito que as Misericórdias são as maiores instituições das comunidades. Ganham maior importância neste contexto?
Não quero dar apenas protagonismo às Misericórdias, acho que todos somos necessários e só todos a trabalhar em conjunto é que conseguimos. É todo o setor solidário que aguenta com esta crise.
E a pandemia é um problema do passado ou ainda há riscos?
Enquanto houver pandemia há risco e o que ouvimos é que a pandemia não desapareceu, mas também é verdade que a guarda baixou bastante. Temos dito às Misericórdias para estarem atentas e para vacinarem toda a gente e o plano de vacinação já avançou. Claro que a vacina não resolve tudo.
Chegou a dizer que ‘Portugal é um país de velhos’ e não estava preparado para a pandemia…
Quis dizer isso, mas onde queria chegar é dizer que o próprio SNS foi pensado e construído para um país que tinha uma pirâmide etária completamente diferente daquela que temos. Quando foi pensado, a pirâmide era um triângulo, agora é um cilindro e, em alguns aspetos, até é uma pirâmide invertida, por causa dos idosos. O que quero dizer com isso? É que o próprio SNS não se organizou para esta mudança demográfica que aconteceu no nosso país.
E temos em cima da mesa um dos grandes problemas que é o envelhecimento em Portugal…
Claro, ainda esta semana apresentámos dois livros, um sobre as mulheres no feminino e outro sobre o que significam as obras das Misericórdias ao longo do século XX, mas na próxima quarta-feira vamos apresentar dois livros sobre o envelhecimento.
Os dados são assustadores em relação ao retrato do país?
Não. Os dados já são conhecidos, a ideia é tentar identificar o diagnóstico e perceber que não temos recursos. Temos muito coração, mas é preciso que esse coração seja dirigido bem. E mais do que ter números, o problema é saber como se cuida dos idosos, como é que se vai a casa das pessoas, como é que se limpam, etc. E nos lares? E o que se faz com os casos de demência? O livro é mais sobre isso.
Tem falado na necessidade de avançar com um novo modelo de serviço de apoio domiciliário, adequado às características e necessidades da nova geração de idosos. O que tem falhado para avançar?
Um dos livros que vamos lançar chama-se Mais Estado, o outro é Envelhecer. Sei que a ministra está muito preocupada com isso, sei que é uma pessoa muito voluntariosa, mas os serviços precisam de melhorar. Temos algumas ideias que achamos boas e o livro é para suscitar críticas, comentários sobre estes temas.
Sei que tem tido reuniões com a ministra Ana Mendes Godinho. Tem estado recetiva a estas novas ideias?
Está muito recetiva. É uma pessoa com quem gostamos de trabalhar e é uma pessoa de quem o setor gosta.
Mas dá as respostas que são precisas?
Nesta coisa do envelhecimento não há a resposta, mas há respostas no sentido de que tudo isto tem de ser integrado. Vejo sempre as coisas do lado positivo e acho que a vida também se pode levar com alguma alegria. Temos de dizer as coisas a sorrir, mesmo que sejam muito sérias. Esta coisa de meter os idosos num lar é uma coisa que mete alguma confusão, porque podem querer estar em casa, mas, para isso, precisam de um apoio à séria, de um apoio domiciliário como deve ser. Sei que as fragilidades vão aumentar, mas também estamos a fazer coisas interessantes, experiências engraçadíssimas que, às vezes, podem parecer que são jogos mas que não são. Por exemplo, apostando na tecnologia podermos pôr uma espécie de um chip no frigorifico. Imagine que a pessoa se sentiu mal, não se pôs em pé, logo não abriu o frigorifico. Nesse caso, o chip dá o alerta disso, o que merece uma investigação para se ver o que se passa, nem que seja para perceber por que é que essa pessoa não abriu o frigorifico. Mas também há o contrário, há o senhor que abre 100 vezes a porta do frigorifico, isso pode significar que está perante um processo de desorientação e estar o Alzheimer a dar provas. Isto pode ser feito sem invadir a vida da pessoa, sem ser uma espécie de Big Brother, mas permite proteger a pessoa. Este era o salto tecnológico que gostávamos de dar para que as pessoas estejam em sua casa mais protegidas. Há mais exemplos, como ter um chip na pele que dá alerta se cair. Neste momento, se não se fizer nada quando a família chega a casa constata o óbito. Todas estas coisas que as novas tecnologias permitem fazer podemos eventualmente transportá-las, até porque os novos velhos estão mais ligados aos benefícios da tecnologia. Já não vivo sem computador, sem o iPhone, sem smartphone.
Aliás, as novas tecnologias deram uma grande ajuda durante a pandemia, quando os idosos não podiam receber visitas nos lares…
Essa foi outra questão de que se falou, nessa altura, e que estava relacionada com a saúde mental das pessoas, porque estavam fechadas dentro dos lares durante a covid. Esse foi um problema real, mas curiosamente tínhamos muita gente nas Misericórdias no interior, antes da pandemia, que já utilizavam normalmente essa tecnologia porque as pessoas dos lares não recebiam visitas porque tinham a família emigrada.
Outro calcanhar de Aquiles diz respeito aos lares ilegais…
Dizemos que há dois tipos de lares ilegais: uns que são legalizáveis e outros que são inaceitáveis. No primeiro caso, há situações em que o Estado pode ser mais flexível. Já no caso dos inaceitáveis não há nada a fazer, a não ser acabar com eles. O único problema é que fecham aqui e abrem depois na porta ao lado. É um trabalho difícil e, mais uma vez, ninguém mete ninguém com boa vontade num lar ilegal, mas é certo que os custos são muito mais baixos. E é também por causa disso que ficam rapidamente inaceitáveis.
A diferença de valores é grande?
Depende. Nos ilegais legalizáveis nem sempre, nos outros sim.
Mas, aí, o Estado tem de intervir…
O Estado faz o que pode, não posso apontar o dedo ao Estado porque reconheço que é difícil e o Estado tem feito o seu trabalho. E assim que se depara com uma situação dessas, o lar é fechado imediatamente. E o bem ganha sempre sobre o mal.
E a revisão das reformas em 2024? Poderá comprometer quem estiver nesta fase?
Vamos ver. Ainda é cedo para me pronunciarmos.