Inflação e juros. Mais pobres chamados a pagar a crise

BCE garantiu que as famílias com rendimentos mais baixos serão duramente atingidas pela inflação e pelas subidas das taxas de juro. Economistas contactados pelo i não se mostram surpreendidos, mas afastam déjà-vu em relação à troika. 

Os alarmes voltam a soar para as famílias mais vulneráveis. Desta vez foi Banco Central Europeu (BCE) ao afirmar que aqueles com rendimentos mais baixos irão ser “duramente” mais atingidos pela inflação e pelas subidas das taxas de juro a partir do final deste ano e correm mesmo o risco de não conseguir pagar as suas dívidas.

Um alerta que não surpreendeu os economistas contactados pelo i. João César das Neves diz mesmo que “o risco não é futuro, mas presente”, garantindo ainda que “já estamos a viver essa realidade e  que ela vai agravar-se nos próximos tempos”.

Uma opinião partilhada por Paulo Rosa, economista do Banco Carregosa, ao apontar para um aumento do risco de incumprimento de crédito em 2023, à medida que os juros mais elevados diminuem o rendimento disponível das famílias, penalizando os que têm orçamentos mais apertados, já por si debilitados pela elevada inflação. “O crédito à habitação em Portugal é maioritariamente indexado à Euribor, uma taxa de juro variável e que aumenta à medida que a taxa de juro do BCE sobe, aumentando os custos dos empréstimos dos portugueses, colocando as famílias de rendimentos mais baixos num contexto de insolvência”. 

Também Nuno Mello, analista da XTB, diz que a inflação alta vai continuar durante o último trimestre deste ano e durante todo o ano de 2023. “O BCE irá continuar a subir as taxas de juro e neste momento, o mercado de swaps aponta para uma probabilidade de quase 44% de subida de 75 pontos percentuais na reunião de dezembro do BCE. Certamente que serão as famílias com rendimentos mais baixos que serão as mais afetadas e, por isso, cabe aos Governos europeus tomarem medidas de alívio que venham desagravar a situação financeira dessas mesmas famílias. O Governo português já tomou algumas medidas como a possibilidade de negociação do crédito à habitação para quem atingir uma taxa de esforço de 35%. Mas estou convencido que não será suficiente e que terá que ir mais além”, refere ao nosso jornal.

Créditos em risco A entidade liderada por Christine Lagarde diz também que os países nos quais os bancos teriam empréstimos mais problemáticos devido aos incumprimentos devido à inflação e ao aumento das taxas de juro são Chipre, Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal. E que os bancos destes países já tinham uma percentagem mais elevada destes empréstimos antes de os preços subirem tanto. 

César das Neves reconhece que, “embora tenhamos melhorado a solidez da nossa situação bancária nos últimos anos, continuamos entre os mais frágeis da generalidade dos nossos parceiros” e, apesar de reconhecer que “não é alarmante” admite que “também não é irrelevante”.

Nuno Mello lembra, no entanto, que o atual contexto marcado pela inflação em Portugal leva a que as famílias recorram aos créditos ao consumo para fazer face ao aumento das despesas, que subiram comparativamente ao ano de 2021. Também o montante concedido para crédito à habitação é atualmente superior a 100 mil milhões de euros e continua a crescer numa base mensal. “Se analisarmos os dados vemos que é precisamente nesses países onde o crédito à habitação e ao consumo mais cresceu em 2022 e, portanto, os bancos desses países estão mais expostos ao risco de incumprimento”.

O BCE diz também que as famílias de baixos rendimentos gastam 70% dos seus rendimentos em despesas básicas tais como alimentação, energia ou habitação, em comparação com 34% das famílias de rendimentos médios. Números que levam César das Neves a garantir que “era previsível e não podia ser evitado”, acrescentando que “em todas as situações de choque nos preços, como a que vivemos devido a dois dramas gigantescos, a pandemia e a guerra, é evidente que os mais pobres são também os mais vulneráveis. Não se podia evitar, mas pode-se tratar. Infelizmente por cá o tratamento tem sido muito reduzido e ineficaz, pois os pobres não têm voz nem relevância numa situação política dominada pela classe média”.

Paulo Rosa lembra ainda que as famílias com rendimentos mais baixos tendem a gastar quase todo o seu orçamento no consumo de bens essenciais, restando pouco dinheiro para poupar. “A propensão marginal ao consumo tende a diminuir à medida que o rendimento aumenta. Logo o fenómeno inflacionista, a alta dos juros e um aumento da taxa de desemprego tendem a penalizar menos à medida que os rendimentos aumentam. É a teoria económica a funcionar e Portugal não é exceção, e sempre que existe uma alta dos juros, as famílias endividadas com menores recursos são as mais penalizadas”. Mas também chama a atenção para o facto de que “é este o preço a pagar pela alta dos juros para travar a inflação, subida esta do índices de preços no consumidor que é principalmente impulsionada pelas famílias de rendimentos baixos e médios, e não pelos rendimentos elevados. Por isso, a par da postura restritiva do BCE para travar a inflação, os Governos devem acautelar os rendimentos das famílias de recursos mais parcos”. 

Também o analista da XTB reconhece que Portugal é um dos países com uma percentagem de créditos à habitação com taxa variável mais elevada, superior a 90% e face a este peso garante que é natural que o aumento das taxas de juro afete as famílias com rendimentos mais baixos que veem a sua prestação agravada e, como tal, têm pouca margem financeira para amortecer os preços mais elevados dos alimentos e da energia, “especialmente porque Portugal é um dos países com as taxas de poupança mais baixas”. No entanto, garante que “este cenário poderia ter sido minimizado, pelo menos, se o Governo tivesse incentivado a poupança com o aumento da remuneração dos certificados de aforro, ou incentivos fiscais maiores à subscrição de PPR [Plano Poupança Reforma], entre outras medidas”. 

Entre imposição e interesse O BCE diz também que o impacto da subida das taxas de juro é menor no curto prazo para empréstimos a taxa fixa, mas muito maior para empréstimos a taxa variável. Mas que a médio e longo prazo, o aumento do preço do dinheiro traduzir-se-á em taxas hipotecárias mais elevadas, aumentando assim fortemente o custo do reembolso da dívida das famílias que contraíram hipotecas em anos em que as taxas de juro eram muito baixas.

Para evitar carteiras de crédito mal parado, no início deste mês, o Governo aprovou um diploma, em que prevê que que a renegociação dos créditos à habitação pode ser feita quando a taxa de esforço atingir os 36% ou quando se verifique um agravamento de cinco pontos percentuais. Já no caso da taxa de esforço chegar aos 50%, ou seja quando metade do rendimento familiar for para o pagamento da prestação, a renegociação passa a ser obrigatória.

Uma situação que leva César das Neves a garantir que a banca estará aberta a uma negociação, mas para “seu proveito, não para facilitar a vida aos devedores”, referindo que “o Governo preferiu impor algumas exigências, não negociáveis, que têm como consequências facilitar a vida a alguns devedores, complicando as negociações de outros”.

Uma opinião partilhada por Nuno Mello ao referir que o setor financeiro tem todo o interesse “em evitar que haja um descalabro no incumprimentos” e, por isso, acredita que a banca estará disposta a ir “mais longe do que o Governo propôs e, em alguns casos, à semelhança das moratórias bancárias durante a pandemia, congelar o pagamento das prestações da casa, nos contratos indexados à Euribor com taxa variável, durante o período de tempo em que as taxas diretoras do BCE se mantivessem altas, de modo a atenuar o impacto da subida dos juros e da inflação nos orçamentos familiares e minimizar o incumprimento”,

Déjà-vu da troika? Para César das Neves o atual cenário é diferente do que se viveu durante a troika. “A situação concreta é muito diferente da do programa de ajustamento (felizmente), mas, como vai ser uma nova crise, nesse sentido, é um déjà-vu. Déjà-vu nos resultados, não nos mecanismos que geram os resultados”, salienta ao i. Também Nuno Mello acredita que ainda é cedo para colocar esse cenário em cima da mesa, assim como Paulo Rosa.