Ainda não foi desta. A votação na especialidade do projeto de lei que descriminaliza a morte medicamente assistida foi novamente adiada na Comissão de Assuntos Constitucionais, com o aval do PS e PSD. Uma alteração de última hora ao documento feita pelos socialistas deitou o processo por terra. O novo texto de substituição levou o Chega a pedir o adiamento da votação, tendo os dois maiores partidos concordado em conceder mais tempo para a análise da proposta.
Em causa está a supressão de uma alínea no artigo referente à Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos da Morte Medicamente Assistida, que tem um papel na autorização de cada pedido de eutanásia. Até aqui a proposta previa que este órgão fosse composto por juristas indicados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo Conselho Superior do Ministério Público; um médico indicado pela Ordem dos Médicos; um enfermeiro indicado pela Ordem dos Enfermeiros; e um especialista em bioética indicado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Na redação anterior do artigo constava a menção de que esta comissão entraria em funcionamento “no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo previsto no número anterior [20 dias a contar da entrada em vigor da lei] ou logo que tenham sido designados todos os seus membros”.
Agora, esta alínea é eliminada, uma questão que assume especial relevância após a Ordem dos Médicos ter já garantido que recusaria indicar um representante, o que podia inviabilizar o funcionamento da comissão.
Perante a alteração, o líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, justificou o pedido de adiamento com o pouco tempo para estudar o novo texto de substituição. Na reunião, a socialista Isabel Moreira pediu desculpa pela hora a que chegou o texto final para votação e afirmou que terá havido uma falha nos serviços, justificando que, por risco de “manchar” o processo legislativo “por falta de democraticidade”, o Chega tinha razão ao pedir o adiamento.
Já sobre a alteração realizada, a deputada do PS argumentou que era “juridicamente mais sólido” fazer a eliminação da alínea. Questionada pelos jornalistas, no final da reunião, sobre se esta mudança pretende contornar a exigência de que a comissão só possa funcionar com todos os membros presentes, dado o problema colocado pela Ordem dos Médicos, a deputada socialista disse que quer afastar qualquer interpretação jurídica que fosse nesse sentido.
Na verdade, a formulação atual do artigo não tem qualquer referência que diga que têm de ser designados todos os membros nem em sentido contrário. Contudo, essa não é a leitura à luz do Direito Administrativo, tal como explica Paulo Otero ao i. “Há duas regras fundamentais: a primeira é que um órgão colegial só está legalmente constituído quando todos os seus membros estão designados, a segunda é que um órgão colegial só pode validamente deliberar se estiverem presentes a maioria mais um, isto é, o quórum dos respetivos membros.”
Segundo o professor de Direito Constitucional, qualquer outra solução que não esta é inválida, o que significa que, para funcionar, a comissão tem de ter todos os seus membros designados.
Para Paulo Otero, também os conceitos confusos – como por exemplo quando a proposta falava de doenças ora “incuráveis”, ora “graves”, ora “fatais” como condição para alguém requerer a eutanásia – levantam dúvidas na constitucionalidade do diploma. “As emendas são piores que o texto original. O texto original já era mau e estas alterações conseguem ser ainda piores do que o mau”, critica.
O problema é que pode haver mais dúvidas, nomeadamente da parte de Belém e do Palácio de Ratton, assim que a lei acabar por ser aprovada. Ainda assim, o constitucionalista rejeita a hipótese de se avançar para um referendo, como tem vindo a pedir o Chega. “A vida humana não está sujeita a referendo. A vida humana é inviolável, eu diria ponto final parágrafo. Portanto, a vida terminal deve é ter condições de dignidade através de cuidados paliativos. Compreendemos que seja mais barato uma injeção letal, do que ter unidades de cuidados paliativos, mas esse é um problema de natureza financeira do Estado”, afirma, acrescentando que falta também saber se uma pessoa, perante uma doença grave, fatal ou incurável, está na posse de todas as suas faculdades para poder tomar uma decisão destas.
O diploma deverá ser votado na próxima semana, a menos que haja novo adiamento. Entretanto, o Chega pediu uma audiência ao Presidente da República para solicitar a Marcelo Rebelo de Sousa que vete a lei, caso seja aprovada pelo Parlamento. André Ventura considerou que “a pressa em levar este processo a uma finalização sem um trabalho jurídico de fundo sério vai levar a um inevitável chumbo por parte do Tribunal Constitucional”, sustentando que “são muitas as inconstitucionalidades deste texto”.