O texto final de despenalização da morte medicamente assistida foi aprovado na quarta-feira na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais e está pronto para ir a votos no plenário da Assembleia da República na próxima sexta-feira. O PSD ainda tentou, sem sucesso, um novo adiamento da votação na especialidade, alegando querer esperar pela decisão do presidente da Assembleia da República sobre a admissibilidade do projeto dos sociais-democratas para referendar a legalização da eutanásia.
O diploma acabou por ser aprovado, com os votos a favor do PS, Bloco de Esquerda e Iniciativa Liberal, a abstenção do PSD e os votos contra do PCP e Chega. Mais tarde, o presidente da Assembleia da República rejeitou o projeto do PSD que propunha a realização de um referendo à despenalização da eutanásia, dando razão ao Chega que tinha levantado a possível inconstitucionalidade de se apresentar uma nova proposta de referendo quando o mesmo assunto já tinha sido debatido e votado nesta sessão legislativa.
A recusa foi anunciada pela porta-voz da Conferência de Líderes, Palmira Maciel. A decisão de Augusto Santos Silva exposta aos líderes parlamentares terá por base um artigo da lei fundamental que refere que um projeto de lei ou de referendo que já tenha sido chumbado não pode voltar a ser apresentado na mesma sessão legislativa.
A questão da não admissão não foi pacífica, com o PS, Chega, IL e Livre a saírem em apoio da decisão do presidente do Parlamento, e BE e PAN a puxarem de outros argumentos. O PCP não se pronunciou.
O líder da bancada socialista, Eurico Brilhante Dias, subscreveu a análise jurídico-constitucional de Santos Silva, lamentando que o PSD “à ultima da hora tenha tido esta iniciativa fora de tempo”. “O PS já votou uma vez contra [o referendo] e será assim que voltaremos a votar se e quando esta circunstância se vier a colocar”, garantiu.
Pelo Chega, André Ventura, que concorda com o referendo, afirmou que “era evidente para todos que este projeto não seria admitido” e seria apenas “um número político”. O líder do partido acrescentou ainda que até sexta-feira, dia em que está prevista a votação final global, “tudo fará para impedir que o texto final seja aprovado”.
Também a IL, que contribuiu para a redação do diploma para a despenalização da morte medicamente assistida, deu razão a Santos Silva, acusando o PSD de querer evitar a votação. “A questão do referendo introduzida à última hora apenas pretende ser uma medida dilatória”, atirou João Cotrim Figueiredo.
O deputado único do Livre concordou com a rejeição da proposta de referendo, mas disse que gostava de ter votado esta questão por “razões substanciais éticas e políticas” e não por razões de “secretaria” . “Não temos culpa que o PSD tenha aparecido tarde”, referiu Rui Tavares, defendendo igualmente que a eutanásia não deve ser referendável.
Apesar de rejeitarem que possa haver um “referendo sobre direitos fundamentais”, os bloquistas discordaram da decisão de Santos Silva. Pedro Filipe Soares considerou que “a proposta devia ser admitida”, uma vez que estão em causa “preceitos constitucionais como a liberdade de iniciativa e o direito de iniciativa de grupos parlamentares e de deputados”.
A mesma posição foi partilhada pela deputada única do PAN, que apesar de se mostrar contra o conteúdo do projeto dos sociais-democratas, considerou que a iniciativa deveria ter sido admitida deixando críticas ao Chega e ao presidente do Parlamento. “Para o PAN não deixa de ser absurdo que um dos partidos que se diz ser a terceira força política em Portugal possa de alguma forma estar a limitar os direitos da própria oposição”, atacou, argumentando que os artigos da Constituição levantados pelo Chega para defender a sua posição contra a admissão da iniciativa estão “profundamente datados”.
“E mais, uma coisa era se fosse a mesma força política a apresentar uma iniciativa, tratando-se de forças políticas diferentes, o PAN não pode acompanhar esta posição do presidente da Assembleia da República”, justificou.
Pela voz de Hugo Soares, o PSD acusou Augusto Santos Silva e André Ventura “de braço dado, sozinhos” contra os sociais-democratas terem decidido rejeitar o projeto de referendo. “O que aconteceu hoje é um atropelo ao normal funcionamento do Parlamento e é o exemplo máximo da cumplicidade e do conluio entre o Chega e o presidente da Assembleia da República, com o patrocínio do primeiro-ministro”, criticou, devolvendo a colagem ao Chega ao PS, já depois de esta semana Isabel Moreira ter encostado os sociais-democratas ao partido de André Ventura. “O referendo à eutanásia já foi apresentado na Assembleia da República e chumbado duas vezes. Uma delas, a última, era uma iniciativa do Chega. Montenegro já é presidente do PSD desde o dia que sabemos. Mas foi hoje que acordou para este número político lamentável e que nos confirma que com ele temos Chega. Não queremos”, atirou a deputada socialista nas redes sociais aquando da apresentação da proposta de referendo do PSD.
O secretário-geral do PSD argumentou ainda que, nesta legislatura, Santos Silva já decidiu de forma diferente, “curiosamente sobre uma iniciativa legislativa que se referia ao Chega e que foi aceite”. “Há precedentes. Se este entendimento [sobre a admissibilidade de um projeto] fosse levado a cabo sempre, só restavam iniciativas do Governo”, ironizou. Os sociais-democratas vão agora esperar que a recusa do presidente do Parlamento seja comunicada por escrito para recorrerem dessa decisão para plenário.
A despenalização da morte medicamente assistida deverá ter aprovação final garantida, considerando as votações na generalidade, em junho passado. PS e PSD darão novamente liberdade de voto às suas bancadas nesta votação final. A lei da eutanásia já foi aprovada, em votação final, por duas vezes, mas não passou no crivo de Belém: uma das vezes, o Presidente da República remeteu para o Tribunal Constitucional que detetou inconstitucionalidades no diploma, da outra vez Marcelo Rebelo de Sousa vetou politicamente. Depois de sexta-feira, o assunto volta pela terceira vez às mãos do Presidente da República.
O fim do processo legislativo está longe de ser alcançado, mas a luz verde da maioria dos deputados para aprovação final de uma lei que se arrasta em discussão na Assembleia da República já mereceu a reprovação da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Os bispos portugueses acolheram a notícia com “tristeza”, lamentando que tenha sido “quebrado o princípio ético fundamental que se traduz na proibição de provocar intencionalmente a morte”.
Para a CEP, o diploma agora aprovado não garante “o justo equilíbrio entre a proteção da vida e o respeito pela autonomia do doente, ao legalizar a eutanásia e o suicídio assistido para além das situações de doença terminal”.
“Ao apresentar a morte provocada como resposta e solução para as pessoas que sofrem devido a doenças, em fase terminal ou não, ou ainda devido a deficiências graves, o Estado e os serviços de saúde veiculam uma perigosa mensagem a estas pessoas que, em situação de desespero, podem ser levadas a desistir de viver”, dizem ainda os bispos portugueses.