A existência de duas correntes – uma mais conservadora, a outra mais progressista – é uma novidade ou sempre existiu no seio da Igreja.
Diria que isso faz parte da própria natureza humana. Quando a gente olha para a sociedade, somos todos coetâneos, mas há aqueles que ainda vivem com uma mentalidade pouco democrática. Há pessoas que se vivem muito mal no meio das novas tecnologias, por exemplo, e há pessoas que vivem na frente. Vivem programando o futuro, pensam nos problemas, nas vantagens, nos perigos, nas ameaças. Isso, diria, faz parte da própria natureza humana e da sociedade em geral. Concorda comigo?
Sem dúvida.
Isso também acontece – e sempre aconteceu – na Igreja. Há aqueles que acompanham os tempos, acompanham os sinais dos tempos, e há aqueles que se fixam, aqueles que pretendem imobilidade. Os cristãos – e os católicos, em particular – têm de pensar aquilo que é o essencial. E o essencial é pouco e é tudo. O que é o essencial? O essencial da Igreja é acreditar no sentido fundo da palavra, que é entregar-se confiadamente ao Evangelho à mensagem de Jesus. E qual é a mensagem de Jesus? ‘Deus é bom, Deus é Pai – e Mãe’. Acho que é a mensagem maior de libertação, de salvação que a humanidade já ouviu. E Jesus deu a vida por essa mensagem, para dar testemunho da verdade e do amor. Porque esta mensagem é libertadora mas nem todos estão de acordo. Se Deus é bom, eu também devo ser bom. Se Deus não se vinga, também não me posso vingar – é ou não é? Se Deus é Pai e Mãe de todos não pode haver guerras, sobretudo em nome dele. Já na altura Jesus punha em questão muitos interesses, nomeadamente os interesses dos sacerdotes do templo, que viviam da religião, e os interesses do Império Romano, porque os impérios não vivem para a fraternidade, vivem fundamentalmente para dominar. Esses interesses – Jerusalém (o templo) e o Império Romano – coligaram-se e crucificaram Jesus. Jesus não se acobardou, foi até ao fim. O essencial da Igreja é acreditar nesta mensagem. Isto é que é o decisivo. Agora, os tempos evoluem e a Igreja também tem de evoluir. Como aplicar essa mensagem de Jesus aos diferentes tempos? Alguns ficam ali imóveis e rígidos numa determinada estrutura e organização, há outros que veem mais claro e dizem: ‘Mantendo o essencial, temos de avançar’.
Falou dos interesses que Jesus pôs em questão. Hoje também há interesses que se opõem a essa evolução?
Então não há interesses? Porque é que temos uma guerra? Não é só uma guerra, o mundo parece que está em guerra. Esta diz-nos mais, porque a Ucrânia está mais próxima, mas há guerra em Myanmar, na África, no Iémen. Isto é tudo por causa de interesses.
E na Igreja?
Dentro da Igreja também há interesses. O Papa Francisco chegou e encontrou escândalos terríveis, ao nível do Banco do Vaticano. Então não há interesses? A própria pedofilia é uma tragédia. O que está em causa na pedofilia é abuso de poder, abuso de confiança. São interesses.
Disse que a Igreja se deve atualizar e acompanhar os tempos. Mas são tempos complicados. Não há um conjunto de valores que a Igreja deve defender independentemente dos tempos que se vivem?
Exatamente. E que valores são esses? Eu trago sempre a imagem do Professor Adriano Moreira do eixo da roda. A roda anda, mas o eixo da roda é imóvel. Isto são os valores. Quais são os grandes valores do Evangelho? Se Deus é bom também devemos ser bons. A bondade. Jesus veio não para ser servido mas para servir. Isto é outro valor fundamental. Não se deve procurar o poder para dominar mas para servir o bem comum. Isto faz parte do eixo da roda. Outro valor fundamental: a fraternidade. Se Deus é Pai e Mãe, somos todos irmãos. No fundo é a igualdade. Porque é que as mulheres hão de ser discriminadas na Igreja? Isto é um escândalo. Jesus tinha discípulos e discípulas. A Igreja tem de dar o exemplo.
Concretamente, tivemos há 500 anos a separação entre católicos e protestantes. Acha que há o risco de uma nova cisão na Igreja entre conservadores e progressistas, isto é, os conservadores não se reverem no Papa e quererem fundar uma igreja diferente?
Se me pergunta se há um perigo de cisma, diria que não é de excluir esse perigo. Mas espero que não se concretize. E por isso é que o Papa Francisco está a caminhar para o Sínodo. Este é um processo que começou na base, nas várias dioceses, agora já estamos a nível continental e vamos chegar ao Sínodo em outubro deste ano exatamente para mostrar que estamos unidos no essencial e que nos respeitamos a amamos na diversidade, na pluralidade.
Mas como se vai chegar a esse consenso se o famoso Relatório de Portugal foi tão contestado, se a síntese final recebeu tanta crítica de uma parte dos sacerdotes?
Ouça, não foi assim… acho que em Portugal não estamos com ameaça de cisma. Estive recentemente na Alemanha e de facto há muita gente descontente, eles estão no processo a que se chama o caminho sinodal. E quais são as grandes exigências? Acho que temos de estar todos de acordo nessas grandes exigências. Temos o celibato. Não é o celibato enquanto tal, é a lei do celibato obrigatório. Onde é que está essa lei? Está no Evangelho? Até o S. Pedro era casado, pelo menos tinha uma sogra. Depois, nas cartas mais tardias fala-se na necessidade de haver uma autoridade na Igreja e diz-se que o bispo seja casado e tenha dado o exemplo na educação dos filhos. Está lá claramente. Não se exige o celibato. Não é tolerável esta discriminação das mulheres. As mulheres têm de ter igualdade de direitos com os homens. Jesus tinha discípulos e discípulas. Foi Maria Madalena a primeira que teve aquela experiência avassaladora de fé de que o Jesus crucificado está vivo e lhe disse para o ir anunciar aos outros, de tal modo que ela é conhecida como a Apóstola dos Apóstolos. O celibato obrigatório não pode ser mantido como lei, não pode haver discriminação entre homens e mulheres. E é preciso haver transparência nos dinheiros da Igreja e no Banco do Vaticano. O Papa Francisco tem feito esforço nesse sentido. E acho que estamos todos de acordo que é preciso acabar com esta peste da pedofilia e é preciso acabar com o clericalismo, que é também verdadeiramente uma peste dentro da Igreja, como diz o Papa Francisco. Tem de haver simplicidade dentro da Igreja, não acha? Quando a gente olha para Jesus na sua simplicidade, como é que vai admitir toda a ostentação dentro da Igreja?
Há cardeais com um estilo de vida luxuoso, é isso?
Então não se vê? Isso é claro. A que propósito é que os cardeais que estão na Cúria Romana, com tudo pago, ganham cinco mil euros? Porquê? O verdadeiro cristianismo tem de ter por determinante, volto a dizer, Jesus. E Jesus era simples. Jesus servia. E estava com aqueles com quem ninguém está, os pobres, os desgraçados, os excluídos pela própria religião. Jesus comia com pecadores. É preciso ir ao encontro daqueles de quem Jesus foi ao encontro. A Igreja não está aí para excluir. Pelo contrário. Está para acolher, para ajudar, para salvar.
Quando diz o Banco do Vaticano, porque não fala do que se passa em Portugal, uma vez que não há contas de Fátima há não sei quantos anos?
Por isso é que eu digo: tem de haver transparência, tem de haver prestação de contas. Se nós exigimos – eu, pelo menos, exijo – que haja contas limpas e transparência ao nível do Estado, também exigimos isso dentro da Igreja. Os cristãos dão dinheiro para a Igreja, é preciso saber para onde é que ele vai. E também em Fátima.
É estranho que não aconteça isso, não é? Houve um tempo que se prestava contas. Nos últimos anos isso não tem acontecido.
Em relação aos excluídos, outro dos ‘pontos quentes’ é a comunhão dos recasados, bem como a aceitação dos homossexuais.
Nós sabemos que há homossexuais. Porque é que não hão de ser acolhidos? E porque é que não se há de dar uma bênção aos casados do mesmo sexo? O Papa Francisco vai dizendo: ‘Quem sou eu para excluí-los?’. Estamos entendidos? Em relação aos recasados, o próprio Papa Bento XVI, quando era pura e simplesmente Professor Joseph Ratzinger, ele próprio admitiu essa possibilidade. Porque as coisas às vezes correm mal. O Evangelho apresenta o ideal de um amor fiel e estável, mas a vida é o que é e pode acontecer chegar a um ponto em que o divórcio é quase obrigatório – quando há violência, por exemplo. Desde que se estabeleça a justiça em relação ao primeiro casamento, e se depois se inicia um novo amor, se há fidelidade, se se educa os filhos também na fé cristã, porque é que não se há de dar a comunhão? Na minha igreja – não sou pároco, sou professor da universidade, mas há uma comunidade onde vou celebrar –, há pessoas que estão nestas circunstâncias que falaram comigo, e eu dou-lhes a comunhão.
Ainda em relação ao celibato, gostava de colocar-lhe duas perguntas. A primeira é, como ouvimos dizer tantas vezes, que o padre tem de ter uma disponibilidade total. Se for casado, não pode dar a mesma atenção à paróquia.
Não pode dar a devida atenção? Há tanta gente casada que tem de trabalhar e dá atenção. Porque é que não havemos de ordenar também homens casados? Fui aluno daquele que provavelmente foi o maior teólogo do século XX, Karl Rahner, e na altura, em finais da década de 60, já ele dizia que a Europa caminharia para pequenas comunidades. E à frente da comunidade porque é que não há de estar um homem casado ou uma mulher casada? No princípio era assim. Porque é que as mulheres não hão de poder presidir à eucaristia? Isso já aconteceu historicamente. Portanto há esse ideal do celibato mas não se pode impor por lei aquilo que Jesus entregou à liberdade. Isto quanto à sua primeira pergunta. A outra qual era?
Acha que existe uma relação causal entre a pedofilia e o celibato?
À primeira vista não há relação de causa-efeito. Porque é preciso sublinhar que a maior parte dos casos de pedofilia passa-se na família. Isto é sabido. Entre pessoas casadas. Portanto aparentemente não há essa relação de causa-efeito entre celibato obrigatório e pedofilia. Mas quando a gente olha para a história, o que acontecia é que iam para o seminário muito miúdos. A grande tentação era a mulher mas não havia nada de feminino dentro dos seminários. Portanto cresceram, passaram pela adolescência sem a presença do feminino – como era a grande tentação, a mulher devia ser excluída. E pode ter acontecido que nalguns casos isso tenha desembocado naquilo a que eu chamo uma sexualidade distorcida. Que depois desembocou para a pedofilia. Exatamente por causa disto: uma formação em seminários sem presença feminina, em que a grande tentação era a mulher, cresceu-se numa sexualidade eventualmente distorcida que depois pode desembocar nesta tragédia da pedofilia.
Até me estava a recordar dos senhores da guerra afegãos onde não há presença de mulheres e todos eles têm um menino que violam.
É uma tragédia. E as crianças são inocentes. O drama maior nesses casos é que foram pedofilizados por um poder sacro, que era o poder do padre. As crianças confiavam no padre. E com a pedofilia essa confiança foi traída. E depois pode haver até perversão. Li um relatório dos Estados Unidos no qual se narra que o padre entrava em casa, era Deus que entrava, depois o padre pedofilizou os filhos e dizia-lhes: ‘Não podem dizer nada a ninguém, se não vão para o inferno’. Isto é perversão. E cá está outro valor essencial: o respeito pelas crianças. Não conheço maior condenação do que a de Jesus. Jesus disse: ‘Venham a mim as criancinhas’. E acrescentou: ‘Ai de quem escandalizar uma criança. Era melhor atar-lhe a mó de um moinho ao pescoço e deitá-lo ao mar’. Isto é terrível.
Ainda em relação à aceitação dos homossexuais, a Igreja teve sempre a posição de que as relações sexuais eram admissíveis tendo em vista a procriação. Ora, ao aceitar os homossexuais…
De facto hoje temos outra visão. A sexualidade não é pura e simplesmente para procriação, também há uma dimensão de prazer, de união, a sexualidade como união de liberdades, união corpórea de liberdades. Isso é que é verdadeiramente a sexualidade humana. Nem toda a relação é para a procriação, também há uma dimensão de prazer. Hoje sabemos que há homossexuais, que há lésbicas, e portanto é preciso acolher essas pessoas.
Tínhamos a impressão de que isso era um pouco um tabu para a Igreja.
Mas cá está, é mais um caso em que a Igreja tem que abrir. Inclusivamente hoje temos uma visão mais aberta até do ponto de vista da exegese bíblica. Não podemos ler a Bíblia à letra, porque se vamos ler a Bíblia à letra, meu Deus, vamos começar a matar aí muita gente.
[risos] Há pouco falou do regresso da Igreja à simplicidade. O Papa Francisco tem dado esse exemplo.
Exato. Logo quando ele foi eleito eu estive na televisão e as pessoas ficaram muito admiradas quando eu disse: ‘Este Papa é um Papa cristão. E não é cristão por ser baptizado. Não, é cristão porque age como Jesus’. Aquilo de que falámos logo no princípio: Jesus era simples. Mas andava com todos, porque ia também comer a casa dos ricos. Imagine o Zaqueu [chefe dos cobradores de impostos]. O Zaqueu convidou Jesus, queria vê-lo, e Ele foi lá a casa. Era rico. Era pecador. Mas Jesus não o excluiu. Jesus ia comer com prostitutas. Aquilo era escandaloso. Depois até se convertiam. O próprio Zaqueu disse: ‘Eu roubei mas vou restituir. E com juros. E também vou partilhar com os pobres’. O grande valor da fraternidade. Deus é pai e mãe, somos todos filhos dele. Isto tem consequências históricas. O maior filósofo vivo chama-se Jürgen Habermas e é agnóstico. E sabe o que ele diz? Que a democracia também vem de Jesus. Um homem, um voto: vale tanto o voto de um professor catedrático como o voto de uma senhora analfabeta lá da aldeia. De onde é que isto vem? Diz o Jürgen Habermas que isto não é se não a tradução para a política daquela afirmação da fé cristã de que cada homem, cada mulher é filho ou filha de Deus.
Jesus era simples mas fez uma revolução que incomodou muita gente.
Até o mataram. Porquê? Porque incomodava.
O Papa Francisco também incomoda.
Então não incomoda? Agora até esteve em África e disse que África não é para explorar. Não podeis servir a Deus e a Dinheiro. Não podeis servir a Deus e a Poder, com maiúscula. Dinheiro não é Deus, Poder não é Deus. Deus é omnipotente, mas não é um poder de domínio, é força infinita de criar. Como um professor ajuda a crescer, o poder está aí para que cada uma, cada um se realize na plenitude nas suas possibilidades humanas. Isto é uma revolução. A primeira missão da Igreja é precisamente dar sentido e dar outro horizonte de compreensão à vida. Não é para andar aí agachado, encolhido. Não! Os cristãos não andam aí agachados, pelo contrário, promovem os direitos e a dignidade. E andam erguidos, direitos, inteiros. Aquilo que era preciso era os cristãos todos – acho que o Papa já faz isso –, cardeais, bispos, padres, perguntarmo-nos a nós próprios: ‘Isto é bom? Eu ando aqui nesta mensagem do Evangelho na Igreja. É bom para mim, é bom, realiza-me, torna-me mais feliz?’. É preciso cada um responder a esta pergunta. Se é bom para mim, vou anunciar aos outros também.
Mas então estamos perante dois mundos completamente diferentes: os cardeais que estão no Vaticano e ganham cinco mil euros…
Entre quatro e cinco mil euros.
E depois temos todo o outro mundo de que falou, que não se compadece muito com esse comportamento. A visão deste Papa não entra em confronto com essas personagens?
Isso já acontece. É a lei da vida. Por isso é que digo: é preciso os católicos converterem-se, a começar pelos cardeais. Cardeais, bispos, cónegos… converter-se a Jesus, ter Jesus como determinante da vida. Pelo menos fazer um esforço. Porque cristão mesmo plenamente só houve um. E mataram-no. Nós temos de tentar ser cristãos. E vale a pena, porque dá alegria e sentido à vida.
Quando se olha de fora, tem-se a ideia de que há lutas pelo poder dentro da Igreja.
O grande problema da Igreja é esse: o carreirismo e o poder para dominar. Mas Jesus disse: ‘Eu vim não para ser servido mas para servir’. Tão simples como isso. Não sou anarquista, tem de haver organização e autoridade na Igreja, mas essa autoridade é para a promoção do bem comum. Todo o poder só se justifica na medida em que seja para o bem comum. Também o poder dos políticos. Os políticos precisam de se converter. Quando olho para este país, com tanta corrupção… Agora, a Igreja tem de dar exemplo.
E o que acha que se pode fazer para diminuir os casos de pedofilia na Igreja?
É preciso reparar, é preciso pedir perdão, eventualmente ajudar financeiramente…
Pagar indemnizações?
Eventualmente, porque houve vidas destroçadas. E a pedofilia, para lá de pecado, é crime. É preciso denunciar, os pedófilos devem ser acusados e seguir aquilo que está estabelecido no direito criminal. É preciso tirar todas as consequências canónicas, civis e criminais. Houve uma política do encobrimento, isto é, preferiu-se salvaguardar a instituição a salvar as vítimas. Ora, é preciso estar do lado das vítimas antes de estar do lado da instituição. E se houvesse mulheres no topo da Igreja estou convencido de que a pedofilia não tinha tido esta amplidão. As mulheres têm de participar na vida da Igreja em igualdade com os homens.
Como vê estes cem casos de padres que supostamente são pedófilos mas, como os crimes já prescreveram, continuam no ativo da Igreja?
Os bispos nesses casos devem seguir aquilo que está no Código de Direito Canónico. Até houve casos no estrangeiro de bispos a quem foi retirado o mandato e aqui também pode haver a suspensão.
Como sabe, é considerado uma das pessoas mais rebeldes da Igreja…
Quem?
O padre Anselmo Borges.
Eu sou considerado rebelde?
Não acredita que Nossa Senhora tenha aparecido aos pastorinhos.
Mas isso qualquer pessoa pensante vê que não apareceu. Até Bento XVI disse isso. Eu fui ordenado padre em Fátima e quando vou a Fátima rezo. Mas o grande milagre de Fátima são os seis milhões de pessoas que lá vão – exatamente falar com a Mãe. Eu tenho muita compreensão para com o sofrimento humano. As pessoas vão lá falar com a Mãe – Maria é a Mãe. Não sou contra Fátima. Agora, Nossa Senhora não apareceu em Fátima. Porque aparecer é uma realidade objetiva. Se Nossa Senhora aparecesse mesmo todos a tinham visto. Mesmo as crianças, repare: a Lúcia via, ouvia e falava com ela; a Jacinta via e ouvia – mas não falava; o mais pequeno, o Francisco, via mas não ouvia nem falava. Já viu a diferença? Portanto, Nossa Senhora não apareceu. O que acontece é que houve ali uma experiência religiosa, por isso é que chamam uma ‘visão’, uma ‘aparição’. Uma experiência religiosa de crianças e à maneira de crianças.
Há uma grande polémica em torno da confissão. O que acha da história do confessionário fechado?
Nunca entrei num confessionário fechado e recebo pessoas que vêm confessar-se até vindas de Lisboa. Atendo todos, porque às vezes precisam mesmo de confessar-se. Mas não podemos obrigar à confissão individual auricular. Essa só nasceu no século VII. E por isso eu dou a absolvição coletiva duas vezes no ano: no domingo antes do Natal e depois no Domingo de Ramos. E as pessoas vão porque precisam de se reconciliar. Precisam de pensar no mal feito e precisam de acolher o perdão de Deus para mudarem de vida. O Evangelho, a palavra de Jesus, como começa? ‘Mudai’ – metanóia. ‘Mudai a vossa mente. Convertei-vos’, isto é: ‘Sede bons, não andeis aí a estragar a vida dos outros. Não estragueis a vossa vida nem a vida dos outros’. Isto eu julgo que se pode fazer com a absolvição coletiva.
Não é preciso então o fiel dizer ao padre que pecados cometeu, basta pensar neles?
A pessoa é que precisa de saber o pecado que cometeu, para não voltar a pecar. Foi isso que Jesus disse: ‘Deus é bom, perdoa-te, compreende-te, não voltes a pecar’. Eu preciso de saber o pecado que a pessoa cometeu porquê? Mas volto a dizer: há pessoas que vêm confessar-se e faz-lhes bem. A confissão fez e faz muito bem a muita gente. Não recuso a confissão a ninguém, pelo contrário, estou sempre atento, e muito do meu tempo é para escutar as pessoas.
Em relação à Jornada Mundial da Juventude, o que achou destes excessos que foram tão discutidos?
O que achei? Nós temos de seguir a simplicidade de Jesus. A que propósito é que lá no altar vão estar mil bispos? Para quê? Tem de haver dignidade, não pode haver ostentação. Para ser sincero, não penso que a fé se deva apresentar em grandes multidões. Mas acho que pode ser uma experiência magnífica de interculturalidade, de diálogo entre os jovens, até porque hoje vivemos num mundo verdadeiramente global, interdependente. O grande filósofo Peter Sloterdijck fala de uma coisa fabulosa: dado que vivemos todos interligados, devia haver uma declaração de dependência universal. Está a ver? Uma declaração de dependência global porque estamos todos dependentes uns dos outros. [A JMJ] Pode ser uma experiência excelente para nos entendermos e mostrar a possibilidade da vivência da fé em múltiplas culturas, a unidade na pluralidade. Agora, temos de distinguir entre a dignidade da celebração e a ostentação. Estavam previstos cinco milhões de euros, ainda por cima com mil bispos lá no altar?! Isso serve para dar exemplo de Jesus?
Jesus fez a apologia da pobreza, por isso…
Jesus não faz a apologia da pobreza e da miséria. Disse é que não pode haver os muito ricos que vivem à custa dos pobres, tem de haver justiça social.
A apologia do despojamento, se quiser.
Jesus é contra os ricos que vivem à custa dos pobres. Temos de lutar pela justiça social, é outro valor fundamental. Se somos todos dignos, se somos todos irmãos, o mundo é de todos e para todos. Não pode haver 1% que possui tanto como 99%. Tudo começa pelo coração. O rico, o explorador, presta culto não a Deus Pai e Mãe mas à deusa dinheiro. A salvação não está no dinheiro, a salvação está em Deus Pai e Mãe. E começa pelo despojamento. Começa por converter o coração.
E aí muita gente vê um altar que custa cinco milhões e começa a questionar se não há alguma contradição entre o discurso e a prática da Igreja.
Por isso houve esta indignação, e justa, mas acho que estamos a aproximar-nos de uma situação mais partilhada e por isso mais digna.
Acha que o facto de não se conseguir encontrar bispos se deve ao núncio apostólico não conseguir encontrar candidatos que tenham a ‘ficha limpa’? Estamos sem dois bispos e vão-se reformar uma série deles. A que se deve este vazio?
O núncio apostólico veio do Chile…
Onde foi muito contestado.
Onde foi muito contestado e ele, do ponto de vista profissional, como núncio, não foi particularmente exemplar, porque não preveniu o Papa. O Papa Francisco só mais tarde percebeu que estava a cair numa armadilha. De tal modo que todos os bispos do Chile foram chamados a Roma e alguns foram demitidos.
Mas o Papa nomeou-o para Lisboa.
Às vezes a gente pensa que o Papa tem todo o poder. Bento XVI disse que isto não é verdade. Até há aquele dito famoso de João XIII. Um dia um jovem estudante perguntou-lhe lá em Roma: ‘Papa, como é ser o primeiro?’. E ele respondeu: ‘Eu, o primeiro? Estive a contá-los e devo ser o quarto ou o quinto’. Fiz-me entender? Às vezes pensa-se que o Papa tem todo o poder mas não tem.
Mas o que falta para encontrar os bispos em Portugal?
Não sei, não estou dentro dos segredos dessas investigações, mas agora, perante este abalo, perante este sismo, que não é apenas em Portugal, abrange praticamente todo o mundo, evidentemente que é preciso reconstruir tudo a partir da base e vai ser mais difícil encontrar vocações para bispo.
Para usar a sua metáfora, quando houve o grande terramoto de Lisboa, em 1755, aproveitou-se para fazer uma cidade nova, com ruas largas e edifícios com sistema à prova de sismo. Este sismo da pedofilia também pode ser uma oportunidade para a Igreja?
A partir de agora temos de reconstruir voltando a Jesus, voltando ao Evangelho, que é isso que constitui a Igreja. A Igreja não pode ser em primeiro lugar uma instituição de poder, tem de ser a assembleia daqueles que acreditam em Jesus e no seu Evangelho. A reconstrução tem de ser exatamente sobre fundamentos sólidos – Jesus e o seu Evangelho.
Há alguma coisa que queira acrescentar?
Acho que já falámos o suficiente. Viu? Afinal talvez eu não seja tão rebelde como disse. [risos]