A certa altura houve um conjunto de editores, autores e outros intervenientes sem uma posição demasiado clara ainda que seriamente interessados nesse mapa desdobrado à escala mais íntima e que, através dos contrastes e também das semelhanças que havia entre eles, nessas oposições complementares e mesmo sem rejeitar um embate extremado que tinha também algo de teatral, se permitiram aguçar o sentido de urgência e a articulação do espaço entre todos para que se afinassem diferenças firmes, deste modo foi-se estabelecendo um diálogo gerador de ecos fortes, levando ao aparecimento entre nós de um público da literatura, esse mesmo que regrediu nos nossos dias e viu o seu espaço ocupado por hordas de farsantes nostálgicos. Hoje só muito raramente surgem entre nós iniciativas que não sejam meros cadafalsos, novas cedências ao desgostante espectáculo em que tudo redunda, mas verdadeiras oportunidades para que se possa esboçar um desses confrontos mais firmes, de modo a que quem assiste e mesmo quem vem a tomar conhecimento da coisa por ecos ou rumores, possa de algum modo reconhecer essas potências em conflito e situar-se face a elas, participando assim nesse debate.
A cultura nasce desse apelo, dessa convocatória que nos sacode do estupor em que estamos distraídos de tudo o que diz respeito a um plano colectivo, e nos seduz para esse jogo de disposições contrastantes, dando gosto ao tempo, não permitindo que este se escoe sem um sentimento de perda. Hoje, a época parece dirigir-se por todos os caminhos às formas mais certas de dissolução. Isto justifica essa sensação de que só nos resta agora o tempo que se perde, sem nenhum sentido de aproveitamento. Logo depois de se procurar uma efeméride qualquer onde ancorar umas festividades de tom culturalizante, saímos ainda mais alheados, mais conformados perante a perspectiva de que não havia que aspirar a algo mais inquietante, a encontros que produzissem em nós algum abalo, ficando depois uma espécie de vibração ou música a tremer nos ossos. Assim, uma vez mais os canais mediáticos dispuseram-se a publicitar e recomendar uma série de iniciativas que caracterizam já esse regime inescapável de uma cultura que se entrega repetidamente à sua extrema-unção-enxovalho, servindo-se do Dia Mundial da Poesia para nos lembrar como nos contentamos com essas patéticas encenações para as quais se chama sempre o mesmo elenco, reencenando aquela peça exausta engendrada a meias entre o tédio e a falta de imaginação. No fim de todas essas iniciativas não restará o menor sobressalto, nem nada que justificasse uma notícia. Por isso é que o nosso cartaz vive de anúncios, mas nunca chega a tomar conta de qualquer tipo de ocorrências. No fundo, sobre aquilo que depois vem a ocorrer, não há nada que justifique o esforço de deixar um registo.
Em sentido contrário, a Tigre de Papel tem procurado ser um lugar de confronto sério no meio dessas ilhas desagregadas e quase fugitivas que são hoje estes espaços culturais, incluindo as chamadas livrarias independentes. Situada na Rua de Arroios, com um programa cultural que, sendo embora bastante intenso, não recaiu naquela sensaboria de um espaço que atrai uns informes grupúsculos acolhendo qualquer desses lançamentos que não diferem em muito de festas de anos, baptizados ou outras cerimónias ou ritos próprios desse folclorismo idiota que vem triunfando sob a etiqueta da cultura, esta livraria tem apontado uma direcção num tempo sem propostas nem uma verdadeira indagação ou conflito a partir das tensões ou contradições do momento presente. Depois de uma primeira sessão em fevereiro na qual o convidado foi Vasco Santos, responsável da VS. Editor, na passada sexta-feira a série de conversas com editores contou com a presença de Luís Oliveira, da Antígona, num esforço não apenas útil, mas crucial de se procurar traçar algumas coordenadas na ausência de qualquer trabalho minimamente sério no sentido de cartografar no passado ou no presente o campo da edição entre nós.
E este exercício, que deveria surgir como uma necessidade fundamental para se poder compreender minimamente um dos eixos centrais no espaço cultural, é algo que nenhuma entidade pública ou outra se lembrara até hoje de fazer. E, na verdade, isto só provocará espanto a quem não esteja já acostumado ao perpétuo descaso que, mais do que um sinal da nossa menoridade cívica obrigatória, é o traço mais expressivo do ambiente da cultura oficial, que, dos caldos de portaria aos burocratismos apopléticos, no que diz respeito a cumprir com alguma dignidade as suas funções básicas, se aproveita de qualquer asterisco no calendário para organizar em permanência esses sumptuosos banquetes publicitários, sejam centenários, celebrações disto e daquilo, canonizações de bispotes ou membros desse outro clero académico, um número sem fim de actividades com que essas figurinhas obscuras que os partidos ou os aparelhos cativados pelos grandes grupos editoriais se fazem enaltecer, mantendo-se a dirigir órgãos cuja acção se limita a comprar as consciências mais delicadas deste nosso regime paroquial.
Em sentido diverso, é graças ao esforço de algumas pequenas e médias editoras afastadas desses centros que submetem o espaço cultural a um modo de inanição das perspectivas críticas, mantendo sempre um ambiente de feira, em que “as mediações principais impõem uma assimilação da literatura ao lúdico, ao sentimental, ou ao decorativo” (Silvina Rodrigues Lopes), que lançam ainda um campo de jogo onde novas possibilidades e o próprio acaso não foram ainda abolidos. E disso mesmo procurou dar conta o editor da Antígona, numa altura em que esta editora está escassos meses de cumprir os seus 44 anos de existência, lembrando como em julho de 1989, no volume comemorativo dos 10 anos da editora, havia explicitado uma linha de demarcação e manifesto: “A existência humana só terá sentido se os homens e as mulheres trabalharem para se tornarem diferentes e exímios, criando e desenvolvendo uma consciência crítica.”
Num texto que fez questão de ler no início da sessão que decorreu na Tigre de Papel, o editor vincou que era essa a perspectiva que orienta a acção da sua editora face “aos poderes constituídos e demais valores decrépitos”. Mais revelador foi uma espécie de parábola relatada por Luís Oliveira na tentativa de distinguir o seu projecto face ao encadeamento da mecânica negocial que se impôs “nesta época burlesca e diligentemente desgraçada, em que tudo tende a tornar-se um formigueiro de empresas”. Eis o breve relato: “Alguém se dirigiu à sede de um grande grupo editorial e pediu para falar com o patrão. Foi mandado seguir até ao fundo do enorme corredor e, no fim, encontrando um empregado, perguntou onde era o gabinete do patrão. «Siga até ao primeiro andar e aí lhe indicarão o gabinete de trabalho do patrão.» Assim fez, e ao chegar indicaram-lhe o último andar. Ao chegar lá deparou-se com uma grande sala e uma mesa no centro com um jarro de flores. É evidente que o patrão não existe, está simbolicamente representado por um jarro de flores.” Luís Oliveira esclareceu ainda que esta história “é ilustrativa do estado em que hoje se encontra a edição e a completa ausência de empenhamento ou dedicação ao livro”.
Tendo contado com tantos outros motivos de reflexão e até de contenda, esta sessão que, apesar disso, não chegou a ser tão instigadora como a conversa que Fernando Ramalho (livreiro) conduziu em fevereiro, tendo Vasco Santos como interlocutor, é importante tentar compreender porque tem sido tão difícil superar esse registo redundante que nos levam uma e outra vez para aquele culto espontâneo do narcisismo, ficando tão difícil estabelecer-se um diálogo aberto ou mesmo um debate virulento mas revelador e que possam libertar-nos daquele regime pitoresco dos egos bairristas e santos populares pregando para as respectivas paróquias. Ora, o problema nem é já essa incipiência trágica que faz com que todos os aspectos da nossa vida pública se satisfaçam enquanto arremedos de uma farsa, mas é algo mais da ordem desistência de qualquer sentido dramático, como se não pudesse subsistir qualquer sentido mais conflituante na narrativa dos eventos ou episódios e da forma como estes são por nós sentidos.
No que aos ecos do que acontece no campo cultural diz respeito, vivemos hoje enredados na eterna ingenuidade de um público mais ou menos ignaro ainda que bastante desfalcado e que se anima com a oferta das nossas feiras multimediáticas, desses certames envolvidos num “celofane sacralizante”, e que depende desse engodo dos títulos, dos prémios e das medalhas, num enredo cada vez mais patusco, e, por outro lado, abandonados por todos os outros, que rejeitando essa encenação ilusória, entregam-se a uma outra, a de uma marginalidade inócua e que não oferece qualquer resistência aos avanços dessa disciplina voltada para a massificação. Não é assim de estranhar que acabe por vigorar entre nós este clima de unanimismo forçado, de beatitude acrítica, o qual veio, de resto, a tornar-se para muitos uma espécie de segunda natureza nacional, o tal “país de brandos costumes” ao qual se alude para sinalizar como, neste rincão, após tantas levas de emigração, se foi apurando um povo amansado, amorfo, estéril em tudo menos no ímpeto de traição, de revirar tudo de modo a que nada se altere, transformando a paisagem mental num imenso pântano, num enredo confrangedor de areias movediças.
Em nenhum outro traço geralmente nos reconhecemos, e mais ainda aos que nos envolvem do que nesse da “passividade lusa”, num gosto malsão da ordem que nos destina facilmente como carne para canhão. Já Fernando Pessoa no ensaio sobre “O Preconceito de Ordem” assinalava como, entre “as feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência.” E vale a pena alargarmo-nos nesse exame de que tem sido tão difícil ilibarmo-nos, seja colectiva ou individualmente, hoje como ontem. “Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica.”
Hoje, toda a acção cultural entre nós se dissolve nesse diagnóstico de uma doença da Autoridade que Pessoa diagnostica, e quase impossível não deprimir ao ver como estamos sempre sujeitos a ver reconhecidos os mesmos, em que todas as distinções acabam por ser frívolas dada a sua redundância, por virem firmar em mais outra placa o nome daquele a quem já se fez a estátua, e os prémios são todos por bom comportamento em vez de servirem para dar protecção e santuário aos artistas e autores que actuam segundo outro compromisso que não a mais canina conivência. Assim, em vez de servirem para dar ânimo e algum alívio do sufoco, as próprias distinções participam num regime de humilhação e de censura, para impor a tal disciplina e nos forçar a “acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objectiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da acção”.
Hoje, o literato é uma caricatura da personagem quezilenta e comprometida com aquele ambiente de terror das corrosivas diatribes que outrora ainda animavam o espaço literário. Os que têm o hábito dos livros parecem cada vez mais corresponder à imagem de seres que vivem imersos, entregando-se a formas de escapismo, dissolvendo-se nesse retrato mais geral que aponta para a íntima e incurável sonolência e desistência anímicas que caracterizam “os portugueses”. E mesmo se a atitude que exibem tantos desses supostos marginais os leva a praticar uma militância do não-alinhamento, Fernando Pessoa também encontra aí uma forma de conformidade, já que essa não passa de “uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida”. E acrescenta: “Refilamos só de palavras. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou.”
Quase sempre é necessário lembrar esses que não estão dispostos a serem desassossegados de que as almas também precisam de levar porrada. De que a cultura não é outra coisa senão um convívio com esses elementos formativos que a todo o momento são capazes de nos pôr em causa, de desancar-nos nas nossas presunções e preconceitos, e que desde logo expõem as fragilidades de egos que, parecendo dados à grandeza, são, na verdade, demasiado frágeis, incapazes de suportar a menor provocação, tão susceptíveis, buscando sempre um rumo entre as coisas da cultura que os dispense de um auto-exame demolidor. Não é de estranhar, assim, que neste “país de cavadores líricos”, mergulhando em delírios e sonhos compensatórios absurdos nesses esforço de redenção caseira, o Dia Mundial da Poesia se tenha ficado pelas habituais comemorações pindéricas, com a Casa Fernando Pessoa uma vez mais a estampar versos avulsos, os mais desdentados de Pessoa, para a sua mordida não ter hipótese de causar outra coisa senão um certo agrado com essas bandeiras coloridas, um certo conforto. Ficamos a aguardar que estes versos da Ode Marítima, numa futura edição desta evocação decorativa, venham a merecer o devido destaque nas fachadas de Campos de Ourique: “Moços de esquina — todos nós o somos — do humanitarismo moderno!/ Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,/ Sem coragem para ser gente com violência e audácia,/ Com a alma como uma galinha presa por uma perna!”
Até lá, temos de suportar que aquela instituição seja mais outro organismo saneador, mais outra instância das que servem apenas para nos afundar em clichés, nos lamentáveis e primários lugares-comuns, na banalização que vem trucidando a língua portuguesa, nesse ambiente de expropriação de uma cidade que está em acelerada conformação de forma a responder à pressão turística de forma a tornar-se num gigantesco parque temático. Neste momento, é aos poetas que aquela Casa está vedada. Esses que Fernando Pessoa procurava encorajar e incitar naquele seu ensaio: “Trabalhemos ao menos — nós, os novos — por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós próprios, a desintegração mental como uma flor de preço. Construamos uma anarquia portuguesa. Escrupulizemos no doentio e no dissolvente. É a nossa missão, a par de ser a mais civilizada e a mais moderna, será também a mais moral e a mais patriótica.” Mas é claro que tudo isto está distante do programa de contorções para o qual são treinados os funcionários destas instituições, esses tristes empregados de uma vocação tão ostentatória quanto inane, e que, desde a maravilhosa revolução dos cravos, não têm feito outra coisa senão garantir que a cultura opera meramente como uma dinâmica diluente levando a cabo a metamorfose daquela em degradante banquete dos “cravas”, para usar a formulação de Eduardo Lourenço.
E é importante lembrar que, mesmo entre os sintomas dessa doença da Autoridade, é possível descobrir variações que não caem todas para o mesmo lado. Pois leiam-se estas palavras que nenhum político português teria o atrevimento de citar: “Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma “revolução” foi para implantar uma coisa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a brandura com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências. Ficámos miserandamente os mesmos disciplinados que éramos. Foi um gesto infantil, de superfície e fingimento. Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido… Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral.”
Na ausência de um fulgor crítico, tem persistido entre nós uma incapacidade de relação, de estabelecermos um absorvente enredo feito de disputas claramente assumidas, sem recair em subterfúgios, sem se esquivar à última procurando miseráveis justificações, frustrando qualquer hipótese de um combate frontal e leal que permita chegar a ver triunfar uma posição sobre outra. Por esta razão, temos “estado ausentes da nossa própria realidade”, e mesmo a nossa literatura é quase toda ela um ensejo de tomar balanço para emigrações imaginárias, desertar de algum modo, e, por essa razão, a maioria dos nossos escritores vivem obcecados com as distinções, com essas cerimónias de coroação por bom comportamento, e toda a sua revolta é por não terem entrado no quadro de honra, acabando por formar apenas essas confrarias da lamúria, estabelecendo essas hierarquias da lisonja provincial, tentando convencer-se de que tudo estaria certo se o prémio fosse deles e não dos outros, sem chegar a perceber que o problema é tudo isto ser um sonho medíocre. E por esta razão ninguém escapa à envenenada tentação do ressentimento, e somos, por fim, os traidores de qualquer valor de convivência e admiração, de qualquer sentido de honestidade ou lealdade para com nós mesmos e face aos outros.
Como nota Eduardo Lourenço: “Os portugueses não convivem entre si, como uma lenda tenaz o proclama, espiam-se, controlam-se uns aos outros; não dialogam, disputam-se, e a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de um outro, a menos que seja pai ou mãe…” Por essa razão é que Portugal é já em si mesmo o exílio, uma traiçoeira pátria onde a ninguém é dado o seu reflexo e todos fogem de si mesmos, fabricando a sua sombra de ilusão, escavando nela essa evocação incandescente, delirada. Assim, a nossa crise é quase de ordem lírica, e daí este sufoco labiríntico em que nos perdemos, procurando por todos os meios esquivarmo-nos aos nossos reflexos, entregando-nos a essa forma de autocomplacência que é o pior dos venenos, pois nem sequer tem a decência de nos matar, mas adia-nos, faz de nós seres que, estando sujeitos a esse atraso demencial, vivem e alimentam-se da sua própria decomposição.